Publicado originalmente em objETHOS.
Em poucas semanas, o maior país da América Latina pode eleger um governo ultraconservador, militarista, declaradamente racista, homofóbico, machista e com uma retórica calcada no ódio e na simplificação. E, acredite, essa tragédia política pode acontecer no Brasil com a ajuda dos maiores meios de comunicação. Seja por adesão a um projeto de extrema-direita ou omissão travestida de isenção profissional.
O Brasil tem mais de 147 milhões de eleitores e um conjunto igualmente grande de problemas econômicos, políticos, sociais e morais. É um país profundamente desigual, onde os seis homens mais ricos têm riqueza equivalente a 100 milhões de pessoas. É um país com maioria de mulheres, mas que ainda discrimina, persegue e mata essa parte da população, sendo o campeão mundial também das agressões a gays, lésbicas e transexuais. Não bastasse tudo isso, tem um legado escravocrata que ainda insiste manter, e sua jovem democracia mal completou quatro décadas. Em 129 anos de república, o Brasil já teve 14 presidentes militares, e a maioria deles ocupou o cargo por golpes de estado ou atuando em juntas governativas em períodos de turbulência. A América Latina sabe muito bem o que é isso, mas apesar dos muitos avisos, o último domingo de outubro de 2018 pode trazer os militares de volta ao poder no país, sinalizando perigosamente para toda a região.
Igualdade falsa
Já defendi neste espaço que a imprensa brasileira deveria dizer a verdade na cobertura das eleições deste ano. Meu argumento central era que a linguagem usada por parte da mídia produzia efeitos de sentido que não expressavam a realidade nacional. Enfatizando alguns aspectos em detrimento de outros, não dizendo as coisas por seus verdadeiros nomes e ignorando temas e posições, os jornais e as emissoras de TV deixavam de cumprir seu importante papel na democracia: o de prover informações para que o cidadão possa tomar melhor as suas decisões.
O que vimos nas últimas semanas é mais um capítulo da novela de manipulação midiática brasileira. Exatamente um dia após centenas de milhares de pessoas — a maioria delas, mulheres — fazerem protestos em todo o país contra o candidato da extrema-direita, o jornal mais influente do país, a Folha de S.Paulo, trouxe um editorial na sua primeira página, equivalendo os dois candidatos mais bem posicionados nas encuestas: o da extrema-direita e o da centro-esquerda, herdeiro de Luiz Inácio Lula da Silva. A comparação foi criticada por diversos formadores de opinião em outros veículos, que chamaram a atenção do jornal para um fato: o que opõe os candidatos não é uma questão de linguagem, mas de valores e de compromisso com a democracia. O jornal não fez autocrítica sobre essa perigosa equivalência, nem mesmo por meio de sua ombudsman, Paula Cesarino Costa. Sinal de que acredita que eles são iguais mesmo.
Não são. Em momento raro, um dia após a votação do 1º turno, a colunista Miriam Leitão, da TV Globo, colocou os pingos nos is: “Há muita gente que compara os dois, mas eles não são equivalentes” (https://globoplay.globo.com/v/7072186/, aos 4’10”).
O jornal mais influente do Brasil pode estar tacitamente aderindo a um programa da extrema-direita, mas vamos dar o benefício da dúvida. Poderíamos considerar o editorial da Folha de S.Paulo como uma atitude extrema no cacoete da grande mídia em buscar isenção jornalística. A ideia por trás disso é que em coberturas eleitorais, é necessário dar o mesmo tratamento a todos os candidatos, seja nas críticas ou nos afagos. E como a cartilha jornalística diz que a imprensa não deve fazer afagos, um movimento involuntário é colocar todos os candidatos na linha de tiro. Mas isso é um erro e um deslize ético. O erro é de avaliação, pois a parcialidade não se combate apenas com a oferta de espaços iguais aos concorrentes numa eleição. Um exemplo: garantir o mesmo tempo de cobertura para um candidato que representa uma minoria inexpressiva, mas que defende valores extremistas, pode superdimensionar sua presença no espectro político, e isso distorce a realidade. Foi o que aconteceu em pouco tempo no Brasil, contribuindo para a mitificação de um personagem até então desimportante na política e transformá-lo num fenômeno de votos. Em situações como essa, as redações deixam de fazer jornalismo e passam a atuar como agências de publicidade involuntárias, e este é um problema ético porque afasta jornalistas de suas esperadas funções na sociedade.
O jornalismo não apenas informa, ele também dota de valor um dado, uma informação. Por isso que repórteres e editores escolhem noticiar alguns fatos e não outros, e por isso também que dão mais ênfase em alguns aspectos e não outros. Ao forçar uma equivalência para defender a ideia de que se está sendo justa, balanceada e imparcial, a mídia distorce a realidade, adequando os fatos a uma ideia precária e simplista de justiça e equilíbrio. Ao forçar uma igualdade que não existe e não denunciar suas muitas nuances, a mídia se omite. Em cenários turbulentos como o do Brasil e da América Latina, isso é nitroglicerina pura.
Fact-checking e interesse público
O Brasil está dividido como nunca, e essa polarização política tem sido terreno fértil não só para a disseminação dos discursos de ódio dos extremistas, mas também para o espalhamento de muitas notícias falsas. As fake news distribuídas por serviços de mensageria como WhatsApp foram um importante motor para turbinar a campanha eleitoral do candidato à presidência pelo Partido Social Liberal (PSL), conforme mostrou reportagem do El País, da Espanha.
Diferente de qualquer eleição no país, esta tem sido uma disputa política orientada por uma avalanche de conteúdos compartilhados sem qualquer cuidado de verificação e distribuída por sujeitos que consideramos confiáveis, os nossos parentes e amigos. Tanto é que ter mais tempo na propaganda eleitoral na TV não foi garantia de sucesso.
Embora haja consistentes iniciativas de fact-checking no Brasil, elas se esforçaram, mas não conseguiram deter o tsunami de desinformação. Quatro fatores foram determinantes: 1. O volume de conteúdo falso ou deliberadamente enganoso é muito superior à capacidade de confirmação dos checkers. 2. Embora o Tribunal Superior Eleitoral tivesse declarado guerra às fake news, ele pouco ou nada fez para inibi-las. 3. As fake news se disseminaram com uma velocidade impressionante em grupos familiares, fechados e de difícil penetração. 4. Quando era possível checar, atestar a falsidade e apontar a informação verdadeira, os leitores se deparavam com um paywall.
Este último fator me parece um grande complicador no combate à desinformação, afinal são as próprias empresas de comunicação que erguem tais muros. Alguns fact-checkers chegaram a pedir que os muros fossem baixados durante o período eleitoral para facilitar o debunking, mas prevaleceu o ânimo de lucro e não o interesse público.
Quando as pessoas estão mergulhadas em boatos, memes, informações falsas e propaganda política, e quando jornalistas comprometidos não conseguem garantir o esclarecimento, os resultados podem ser muito preocupantes.
Nas semanas que antecederam o primeiro turno, emissoras de televisão se acotovelaram para entrevistar o candidato ultra-conservador, seja no hospital – quando ele se recuperava do atentado que sofreu em setembro – ou em casa. Fazer entrevistas com candidatos é uma prática necessária para coberturas eleitorais, mas essas emissoras procuraram os demais oponentes? Desta vez, não. Não se preocuparam em forjar uma ideia de equilíbrio e imparcialidade, e deram um tratamento privilegiado a um dos lados da disputa. É crime eleitoral, mas o TSE não fez nada a respeito.
Coube a uma editora do The Intercept Brasil desmitificar a falácia da imparcialidade das redações. “Vou deixar isso aqui para todo mundo que vier falar de **** isenção **** jornalística nessas eleições. A gente tem lado sim e é esse aqui”, escreveu Tatiana Dias em seu Twitter, reproduzindo trecho do Código de Ética do Jornalista Brasileiro, que diz ser dever do jornalista “opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos”…
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O leitor deve ter notado que em nenhum momento citei nominalmente o candidato da extrema-direita neste texto. Foi de propósito. Não quero alimentar essa espiral de ódio e intolerância, que pode ameaçar minorias e grupos marginalizados da sociedade, e que pode constranger o trabalho dos jornalistas e restringir as liberdades de imprensa e expressão. É uma decisão moral minha, mas um dever deontológico também.
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Rogério Christofoletti é professor da UFSC e pesquisador do objETHOS.