Publicado originalmente em objETHOS.
Num processo eleitoral atípico, ímpar na história recente do país, a imprensa protagonizou talvez uma de suas piores performances, paradoxalmente à inegável capacidade técnica e tecnológica de produzir um insumo democrático tão valioso que é a informação jornalística. O processo eleitoral se dá ainda no curso de um golpe institucional (protagonizado pelo Congresso, Judiciário, mídia hegemônica, com respaldo de forças políticas mais retrógradas da sociedade), que interrompeu a recente experiência democrática em curso, desde 1989. Neste texto, esboço respostas para a questão: qual a responsabilidade da mídia tradicional e hegemônica na desconstrução democrática por que passa o país, nos últimos cinco anos, em especial?
No começo de agosto, uma pesquisa do Ibope Inteligência apontava o peso da informação jornalística nas eleições: 7 em cada 10 eleitores afirmavam que usariam as notícias para decidir seus votos: “Mesmo com o advento da internet, a pesquisa mostrou ainda que a mídia mais usada pelo brasileiro para se informar sobre política é a televisão (62%). Depois, vêm a mídia tradicional na internet (33%), redes sociais e blogs (26%), jornais impressos (17%) e rádio (17%)”.
Estes dados são corroborados pela audiência aferida nos principais portais noticiosos e nas referências de audiência de televisão, citados pela jornalista Paula Cesarino Costa (ombudsman da Folha de S.Paulo):
A Folha teve 41,4 milhões de visitantes únicos em seu site em setembro (2018), a melhor performance mensal em 2018. As entrevistas com presidenciáveis aumentaram a audiência dos telejornais da TV Globo e mais do que quadruplicaram a da Globo News. O G1 atingiu a maior média diária de visitas (12,8 milhões) de sua história, com um total de 385 milhões no mês. O site da revista Veja bateu recorde de audiência, com 35 milhões de usuários, e os 20 conteúdos mais acessados tratavam de eleição (https://bit.ly/2zXmU4x).
O peso da instituição imprensa na construção ou desconstrução da democracia advém de seu poder de fala e de sua capacidade de produzir um tipo de conhecimento, que alimenta uma robusta circulação social da informação, fenômeno único na história da humanidade. Em jogo permanente, a disputa da hegemonia das ideias na sociedade. Contudo, o jornalismo brasileiro está mergulhado, de um lado, numa crise de sustentabilidade financeira, enquanto indústria da informação; ao mesmo tempo, suas taxas de credibilidade estão em queda livre: o Índice de Credibilidade Social (ICS), medido pelo Ibope Inteligência em julho de cada ano, aponta uma queda de confiança de 71%, em 2009, para 51% em julho de 2018.
Em parte, a perda de credibilidade se explica por efeitos da expansão das redes sociais. Cerca de 120 milhões de brasileiros usavam o aplicativo WhatsApp, em agosto de 2018, segundo levantamento feito Mensageria no Brasil, promovido pela Panorama MobileTime e Opinion Box. O Facebook, segundo dados da própria empresa, em julho de 2018, alcança a casa dos 127 milhões de usuários. O Twitter conta 41 milhões de usuários. Por estes canais, circularam dezenas de milhares de posts e uma profusão de fake news que impactaram os resultados, especialmente na disputa presidencial – algo particularmente difícil de ser mensurado. Os primeiros dados da Agência Lupa mostram “que as 10 notícias falsas mais populares flagradas por seus checadores desde o mês de agosto tiveram juntas mais de 865 mil compartilhamentos no Facebook”.
Militância Antidemocrática
Nas primeiras horas da manhã deste primeiro turno (07/10), observei o que diziam os editoriais e os principais colunistas dos três jornais impressos mais importantes do país – Folha de S.Paulo (FSP), O Globo (OG) e O Estado de S.Paulo (OESP). De modo geral, a cobertura da campanha nos principais veículos de comunicação foi rasa, errática e se resumiu, nas principais emissoras de televisão aberta, por exemplo, à divulgação das agendas dos candidatos a presidente da República. Isso marcou todo o período oficial de campanha, a partir de 16 de agosto (liberação para comícios, carreatas, divulgação de material impresso das campanhas) e, de forma mais específica, entre 31/08 a 04/10/2018, 45 dias de propaganda eleitoral gratuita em rádio e televisão.
Li com espanto e assombro algumas das principais colunas dos três maiores jornais – Hélio Schwartsman (FSP), Eliane Cantanhêde (OESP) e Miriam Leitão (OG). Numa disputa entre o campo democrático (com matizes ideológicos do PSTU ao Partido Novo, passando pelo PSOL, PT, PDT, Rede, MDB, PSDB e Podemos) e uma candidatura que simboliza valores antidemocráticos e flerta abertamente com princípios fascistas – defesa da tortura, apologia ao estupro, racismo, agenda econômica ultraliberal etc. – nenhuma palavra dos colunistas em defesa dos valores democráticos duramente conquistados pela sociedade brasileira. A movimentação da imprensa tradicional, aqui representada por estes colunistas, foi no sentido de configurar dois polos extremos (PT x Bolsonaro), artificializando com falsas equivalências uma polarização simplista e, no limite da irresponsabilidade, antidemocrática.
Schwartsman (FSP) indagou no título: “A festa da democracia?”. Num raciocínio típico da falsa equivalência, o colunista escreve: “Apesar do discurso radical e irresponsável, concretamente Bolsonaro nada fez que possa ser descrito como uma violação às regras democráticas”. Do candidato Fernando Haddad, disse: “O problema com o PT é que ele parece invulnerável ao aprendizado econômico. Seu programa insiste em algumas das teses que, sob Dilma, produziram a megarrecessão”. Entre ironias e o conselho de cuidado com os discursos “exaltados”, encerrou endossando o clichê da extrema direita: “Depois de hoje estaremos reduzidos a escolher se enterraremos a democracia elegendo Bolsonaro ou nos tornaremos uma Venezuela optando por Haddad”.
Num argumento conservador e militante mais intenso, como tem sido sua marca, Eliane Cantanhêde (OESP) passou longe de mediar ou de defender a democracia no texto “As duas seitas”:
“O confronto é entre duas seitas, lulistas e bolsonaristas, mas viva a democracia! Se a seita PT obedece a tudo o que seu mestre Lula mandar, a seita bolsonarista bate continência a todas as ordens do capitão Bolsonaro”.
Ao reduzir o confronto entre o campo democrático e o projeto fascista a uma disputa entre “seitas”, a colunista do Estadão presta um desserviço à luta pela democracia como valor estratégico à convivência social contemporânea.
Míriam Leitão (OG) foge da perspectiva de repercutir o ódio disfarçado de “neutralidade”. A boa tentativa esbarra em vieses próprios da cobertura, especialmente na Globo News. No texto “Lições das eleições dadas pelo avesso”, ela escreve que “a democracia brasileira foi desafiada por inúmeros eventos nessa campanha” (cita a facada no deputado carioca, o peso do voto evangélico – “muitos pastores reinstalaram o voto de cabresto” ou 50% do eleitorado evangélico votou no candidato do PSL – e, por fim, a ameaça que empresários passaram a fazer aos seus trabalhadores, pressionando-os a votar em Bolsonaro – caso de Luciano Hang, da Havan). Para manter-se pretensamente equidistante, Miriam critica o PT, que segundo ela “achava que conseguiria por imposição externa que o ex-presidente Lula fosse candidato”, mas “no último dia legal, anunciou Fernando Haddad, que passou a ideia de ser tutelado”. A colunista d’O Globo finaliza, no entanto, acreditando que o vencedor do 2º turno, seja quem for, “só terá chances de ser bem-sucedido se entender a opção brasileira pela democracia. Essa foi a escolha que já fizemos”.
Corrupção da opinião pública
O jornalismo informativo é um patrimônio da sociedade democrática contemporânea. Seu potencial de mobilização em prol de causas públicas, socialização de informações de interesse da população, o faz agente da construção do Estado Democrático de Direito. Contudo, quando abandona as perspectivas universais, guiadas pelo interesse público, e se amesquinha a defender interesses particulares (em geral, jamais ditos com clareza à audiência), converte-se num poderoso instrumento de desconstrução da democracia. A grande mídia jornalística brasileira abandonou a perspectiva de vigilância do poder público, a defesa de valores humanos universais como a igualdade social e os direitos das minorias e, por último, abriu mão de ser espaço equânime para as disputas políticas entre os diferentes atores e seus partidos.
Notem, leitores e leitoras, que nenhum/a eminente colunista, espécie de porta-vozes das empresas em que trabalham, faz qualquer menção ao impacto nefasto do jornalismo produzido por eles e seus pares sobre a formação da opinião dos mais de 147 milhões de eleitores, no jogo intenso e incessante da disputa da hegemonia das ideias na sociedade. Ante a este fenômeno, recorro ao cientista político Venício de Lima, em artigo publicado no site Carta Maior, que resume numa sacada lapidar: “a maior de todas as corrupções é a corrupção da opinião pública”.
**
Samuel Lima é jornalista, professor do Departamento de Jornalismo da UFSC e pesquisador do objETHOS.