Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Nem Jesus na causa: reflexão sobre a exaltação bíblica no segundo debate presidencial

Publicado originalmente pelo objETHOS.

Em época de eleições os debates televisivos atuam como ferramenta fundamental da democracia, proporcionando debate de ideias entre os concorrentes sobre as mais diversas áreas e questões sociais que assolam o país. Bom, pelo menos deveria ser um debate de ideias, mas, o que podemos perceber após analisar o segundo debate entre candidatos à presidência da República, é que elas ainda precisam amadurecer, ou, no mínimo, transparecer com mais clareza aos eleitores que acompanham as discussões pela TV.

Assim como no encontro anterior realizado no dia 9 de agosto pela Rede Bandeirantes de televisão (Band), o segundo debate, promovido agora pela Rede TV!, no dia 17 de agosto de 2018, contou com a presença de oito dos 13 candidatos: Alvaro Dias (Podemos), Cabo Daciolo (Patriotas), Ciro Gomes (PDT), Henrique Meirelles (MDB), Jair Bolsonaro (PSL), Geraldo Alckmin (PSDB), Guilherme Boulos (PSOL) e Marina Silva (Rede). Estiveram de fora os candidatos João Amoêdo (NOVO), João Goulart Filho (PPL), José Maria Eymael (DC) e Vera Lúcia (PSTU), devido ao fato de seus partidos e coligações não possuírem pelo menos cinco parlamentares (deputados federais e senadores) no Congresso Nacional, requisito estabelecido nas regras eleitorais atuais.

Mesmo preso em Curitiba após condenação em um processo conturbado, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aparece como líder nas pesquisas de intenção de voto, mas foi novamente impedido pelo Tribunal Superior Eleitoral de participar do debate. Um nono púlpito estava reservado para ele, mas foi retirado por decisão da maioria dos candidatos. Apenas Guilherme Boulos (PSOL) foi a favor de deixar o espaço vazio no palco.

Destacando-se pela transmissão multiplataforma, além do canal aberto de televisão, o debate também podia ser acompanhado simultaneamente pelo portal da emissora (www.redetv.com.br), pelo UOL, na página principal do Facebook Brasil e também na página da emissora na rede social, em seu perfil no Twitter e em seu canal no YouTube. Tal particularidade fez com que, ainda no primeiro bloco, a hashtag #DebateRedeTV ficasse em primeiro lugar no trending topics do Twitter mundial.

Falta de poder de síntese, sobra de propostas genéricas e cristianismo

Em um contexto geral de oportunidade para apresentação de propostas, muito se falou, mas pouco se disse. Diante de um debate com mediadores rigorosos com o tempo, destacando-se pelo corte de microfone nas vezes em que o cronômetro estourava, pode-se perceber a inabilidade de alguns candidatos em sintetizar suas falas e responder as perguntas. Tal fato foi percebido já no começo com a questão “Por que o senhor(a) quer ser presidente da República e o que é preciso mudar no combate à corrupção?”. Houve postulantes que, ao invés de responderem, ocuparam os 45 segundos para se apresentarem, outros responderam de forma genérica com a promessa de aprofundarem no decorrer da discussão. Para esse tema, porém, não existiu um depois, ainda que os próprios candidatos tivessem a oportunidade de criar as perguntas nos blocos seguintes.

Se faltou síntese, no tempo que tiveram sobrou ataques, desvios sorrateiros de argumentos, distorção de termos e exaltação cristã. Nesse último ponto, ironicamente, trata-se de concorrentes a presidência de um estado laico.

É óbvio que carregamos em nossas afirmações a carga cultural e ideológica a que fomos inseridos desde a infância, mas é preciso ressaltar que quando se trata de política as ações irão atingir dentro e fora de nosso círculo, ou pelo menos espera-se que seja assim em uma democracia. Nesse sentido o primeiro passo para a formulação de propostas é entender os anseios da sociedade, analisar o sentido literal das inquietações e lutas da população, sem distorcer os termos para favorecer os próprios posicionamentos.

No diálogo entre Cabo Daciolo (Patriotas) e Jair Bolsonaro (PSL), os dois debateram sobre o “Kit Gay”, além da “liberação” do aborto. Colocando-se como defensores da família tradicional brasileira e tementes a Deus, se posicionaram contrários a essas medidas, o que desperta o questionamento se eles desconhecem ou ignoraram propositalmente os termos originais dessas discussões para reforçarem seus argumentos.

No que se refere ao primeiro tópico, o “Caderno Escola sem Homofobia” não era destinado ao ensino de crianças a partir de seis anos como afirmou o candidato do PSL, mas sim a professores, gestores e profissionais, visando dar a eles subsídios para um possível debate, especialmente com estudantes do ensino médio, sobre orientação sexual, diversidade e identidade de gênero.

Já no que tange ao aborto, o que está no foco da discussão não é a liberação, mas sim a descriminalização. De acordo com Amorim (2018), estima-se que o aborto é a quarta causa de morte materna no Brasil, principalmente pelo fato da lei proibir a prática, salvo as exceções de estupro, risco de vida para a mãe ou caso de anencefalia (o bebê não possui cérebro). A busca pela descriminalização não visa estimular o aborto como subtende-se no debate político, mas sim evitar que mulheres recorram a métodos inseguros e clínicas clandestinas para fazer o procedimento, diminuindo assim o risco de morte da genitora.

Se no primeiro debate a pérola de Cabo Daciolo (Patriota) sobre a “Ursal” (União das Repúblicas Socialistas da América Latina) ganhou destaque, no segundo foi a troca de farpas entre Marina Silva (Rede) e Jair Bolsonaro (PSL) que ganhou as redes. Questionada sobre a posse de armas de fogo, a candidata se afirmou contrária e retrucou o posicionamento anterior de Bolsonaro (PSL), quando ele disse que não havia necessidade do presidente se preocupar com os direitos das mulheres no trabalho, pois estes estão garantidos pela CLT.

Esquivando-se do assunto, o candidato questionou a moralidade de Marina (Rede) lutar por direitos das mulheres, visto que ela, sendo evangélica, defende um plebiscito para a legalização da maconha e aborto, enquanto ele, temente a Deus, é a favor da castração química para estupradores e de permitir o porte de arma para a mulher “de bem e preparada” que assim desejar. Na tréplica, que ganhou repercussão na mídia, Marina Silva (Rede) questionou em tom de preocupação o fato do candidato, se eleito, querer resolver tudo “no grito e na violência” enquanto ela irá zelar para que as mães vejam seu filho “sendo educado para ser um cidadão de bem”.

Reforçando sua inspiração religiosa e sem muito tempo para rebater, Bolsonaro (PSL) disse para Marina (Rede) ler o livro de Paulo, o que gerou ainda mais debate nas redes sociais, por este livro apresentar uma das passagens mais machistas. De acordo com a bíblia, na I Carta de São Paulo aos Coríntios, capítulo 14, os versículos 34 e 35 reforçam a submissão das mulheres a seus maridos:

“As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei. E, se querem aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é vergonhoso que as mulheres falem na igreja.” (1 Coríntios 14:34,35)

Posteriormente, em entrevista ao jornal O Globo, o candidato disse que não se lembrava com certeza, mas estava se referindo a passagem bíblica de Paulo onde Jesus diz para os discípulos empunharem espada. A passagem referida está, no entanto, no livro de Lucas, capítulo 22, versículo 36 onde está escrito “Disse-lhes pois: Mas agora, aquele que tiver bolsa, tome-a, como também o alforje; e, o que não tem espada, venda a sua capa e compre-a”(Lucas 22:36), reforçando assim o argumento do candidato de que a bíblia defende o armamento.

Ironicamente, alguns versículos abaixo, o próprio Jesus repreende um discípulo que usou a força: “E, vendo os que estavam com ele o que ia suceder, disseram-lhe: Senhor, feriremos à espada? E um deles feriu o servo do sumo sacerdote, e cortou-lhe a orelha direita. E, respondendo Jesus, disse: Deixai-os; basta. E, tocando-lhe a orelha, o curou.” (Lucas 22:49-51).

Intrigas pessoais, indignação por Lula (PT) não ter sua candidatura barrada, ausência de propostas claras, exaltação cristã “sem caráter de pregação do evangelho”. De todos esses pontos ressaltados no debate, o último é preocupante. Um candidato ter uma religião não é problema, mas diante de um cenário político confuso, com várias medidas retrógradas e conservadoras sendo implementadas e discutidas, descontextualizar a Bíblia e utilizá-la literalmente para justificar propostas políticas é colocar em xeque o estado laico e a democracia.

É certo que ainda haverá novas oportunidades para os candidatos apresentarem de fato suas propostas em rede aberta, seja no horário eleitoral, seja no debate televisivo, mas é preciso que os mesmos ressaltem nesse momento o desejo por um governo feito para o povo, por meio da igualdade de direitos e da implementação da justiça no que compete aos três poderes, independentemente dos dogmas pessoais de seus governantes.

Lutar pelo amor ao próximo exaltando medidas de ódio é incoerente, tanto do ponto de vista prático quanto religioso. E já que o espírito político é remeter à Bíblia, fica a analogia ao livro de Mateus, capítulo 23, versículos 27 e 28; na esperança de que nossos governantes não se tornem “doutores da Lei e fariseus hipócritas!(..) sepulcros caiados: por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e podridão!” e que após o pleito nossa democracia, conquistada a duras penas, não se torne por fora, justa diante dos outros, mas por dentro cheia de hipocrisia e injustiça.

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Carlos Marciano é Doutorando pelo PPGJOR/UFSC e pesquisador do objETHOS.