Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os erros mortais do PT

Ao aceitar sua inelegibilidade e indicar Fernando Haddad como candidato do PT à presidência, pondo fim à candidatura fantasma, Lula encaixa mais uma derrota, revelando uma estratégia que não funcionou e só colecionou erros, alguns mortais para seu partido.

Quando terminarem as eleições e Lula, inofensivo, tiver transformada sua pena em prisão domiciliar, os ideólogos e ativistas do PT, alguns financiados por longo tempo, direta ou indiretamente, vão deixar o clima de campanha para, num exercício de autocrítica e contrição, localizarem onde foram os erros cometidos.

Onde começou o desvio que acabou por destruir o capital de confiança e popularidade acumulado, com a contribuição das diversas tendências de esquerda, desde sua criação em 1980? Numa análise sumária. o processo de fragmentação começou ao nível da composição ideológica da direção do PT. O Brasil seria compatível com uma esquerda autoritária baseada no conceito puro e duro marxista da luta de classes ou de um socialismo moderno e democrático?

Depois da ditadura militar, quando a campanha contra os militares era feita na base do retorno aos princípios básicos da democracia, seria possível uma campanha em favor de um partido radical de esquerda substituindo os militares por um governo popular de partido único?

Não, a campanha em favor do retorno à democracia, nos moldes das democracias européias, com imprensa livre tinha o apoio dos intelectuais contrários à mudança estrutural da sociedade pela imposição autoritária. A experiência soviética de um Estado popular totalitário mostrava suas falhas e ia chegando ao seu fim. A tentativa reformista de um governo socialista democrático ensaiada por Alexander Dubcek em abril de 1968, tinha durado apenas quatro meses e terminado com uma intervenção soviética, no estilo colonialista.

Se José Dirceu, que se tornou o ideólogo do partido, imaginava uma transformação mais ampla da sociedade brasileira, logo percebeu ser praticamente impossível dentro da normalidade democrática – teria de ser realizada lentamente e dentro das possibilidades permitidas pelas estruturas já existentes. O caminho teria de ser o da legalidade das eleições com a gradativa politização do povo e isso utilizando-se a criação de um líder popular, no qual o povo pudesse se reconhecer.

Lula seria esse líder por ter se formado nas lutas sindicais e trabalhistas, na escola das concessões e negociações. Embora muito inteligente e capaz de aprender rapidamente a linguagem política, padecia da falta de uma formação ideológica e cultural, deixando-se levar principalmente pela sua intuição e sagacidade nem sempre corretas. Porém, José Dirceu estava ali ao seu lado, quando Lula foi eleito presidente, para corrigir as falhas.

Com uma sociedade extremamente conservadora e desigual, na qual uma parcela importante da população ainda parecia viver num tipo de apartheid e semi-escravidão, as transformações sociais tinham de ser operadas de maneira branda a fim de evitar reações hostis das classes dominantes. Os segmentos pobres ou miseráveis passaram a merecer atenção do governo, em termos econômicos e de inclusão social. Em contrapartida, os setores financeiros, bancos, empresários também tinham tratamento preferencial, restando pouco para a classe média.

Para se manter e ir criando uma base nos governos municipais, o governo Lula precisava de financiamento e apoio dos parlamentares. Isso levou ao mensalão, cuja consequência mais danosa para o PT foi a queda de Dirceu e de outros mentores de Lula, que passou a ser considerado como um extraordinário animal político. Essa substituição e a chegada de políticos mais realistas que normalizaram o PT, deixando prevalecer a prioridade da manutenção no poder em lugar da realização de reformas substanciais, permitiram o uso da corrupção.

Lula, em 2010, era reconhecido e respeitado como grande líder político e o Brasil citado como exemplo de grande país emergente. Provavelmente para não perturbar esse clima, Lula não pleiteou, como outros líderes de esquerda fizeram, um terceiro mandato, mas, cometeu o erro de escolher Dilma como sucessora, imaginando retornar ao poder em 2014. Nesse ínterim, houve a crise econômica internacional, Dilma intratável não soube evitar a chegada da crise no Brasil, ignorou os sintomas de insatisfação de junho 2013, mas acabou sendo reeleita, a contragosto de Lula, que parecia perder sua força dentro do PT.

A reeleição de Dilma seguida do que se chamou de “estelionato eleitoral”, por tentar aplicar uma política econômica de direita para corrigir seus erros do primeiro mandato, foi o começo do declínio do PT. Os processos da Operação Lava Jato foram o complemento. Era a hora do PT ter feito sua autocrítica ou mea culpa, desfazendo-se de Dilma e dos atingidos pelas investigações do juiz Sérgio Moro. Porém, a máquina partidária tinha inchado demais e não permitia essa dolorosa automedicamentação, que teria exigido também a aposentadoria de Lula.

Ao contrário do Partido Democrata Cristão alemão que sacrificou seu líder Helmut Kohl, na época chanceler, por acusações de corrupção no financiamento do partido, e que se salvou dessa crise política ressurgindo alguns anos depois com Angela Merkel, o PT se personalizou em Lula, e se transformou, nestes últimos anos, num partido de populismo lulista personalista dito de esquerda.

Numa tentativa de sustentação do partido, criaram-se os mitos do golpe e das prisões sem prova que, diante do prestígio conquistado no passado por Lula, chegaram a ser aceitos por alguns órgãos importantes europeus de informação. E mesmo o Comitê de Direitos Humanos da ONU, numa recomendação de seus dois vice-presidentes, defendeu a manutenção de Lula como candidato, mesmo preso, contrariando decisões legais da Justiça brasileira e sem avaliar as consequências internas, caso o Brasil aplicasse a recomendação ainda sem uma análise maior da questão quanto ao seu mérito. Porém, o Pacto assinado com o Comitê, embora aprovado pelo Legislativo não chegou a ser assinado por Lula, que, entretanto, havia assinado e promulgado a lei da Ficha Limpa, no final de mandato.

Enfim, depois de meses de tentativas para manter a candidatura de Lula, e mesmo nos últimos dias depois de declarada sua inelegibilidade pelo TSE, o PT aceitou acabar com a candidatura fantasma diante da ameaça do ministro Barroso do STF. Mas o candidato Haddad entra atrasado na corrida presidencial, talvez sem tempo para se recuperar do avanço dos principais concorrentes. Para reforçar a imagem de um Lula vítima de perseguição, seus advogados divulgaram nesta segunda-feira um comunicado do que seria uma nova decisão do Comitê de Direitos Humanos em favor da candidatura de Lula. Não é isso, trata-se de uma comunicação pessoal enviada aos advogados de Lula que haviam pedido maiores explicações aos relatores do Comitê sobre a recomendação do 17 de agosto. A nova queixa entregue dia 4 de setembro foi protocolada para apreciação.

Nessa estratégia política sem lógica, disparatada e caótica que terminou sem nada conseguir, na qual a aceitação da candidatura de Haddad constitui a derrota de Lula e do seu faro político, o Brasil viu surgir em contraposição ao populismo de esquerda a ameaça do populismo da extrema direita, de colorido fascista, que vencerá as eleições no primeiro turno.

Será a hora do voto útil contra a ameaça bolsonarista de se transformar, como ocorreu no Perú com Fujimori, numa nova ditadura. Qualquer um contra o perigo maior. Poderá ser Fernando Haddad, Ciro, Marina, Alckmin. Esperemos que se não for Haddad, a direção petista não cometa mais um erro, que seria o de se abster e garantir a vitória de Bolsonaro, para garantir uma confortável oposição. Oposição que não haverá, caso mergulhemos de novo na ditadura.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI. Editor do Direto da Redação.