Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A arapuca evangélica para o PT

(Foto: Marri Nogueira/Agência Senado)

É normal que o PT se preocupe com o voto dos evangélicos. Foram os pregadores evangélicos os principais articuladores da vitória de Bolsonaro contra Haddad em 2018, quando conseguiram reunir cerca de um terço do total dos votos dos eleitores em todo Brasil. Esses eleitores foram induzidos e guiados pelas pregações político-religiosas de pastores de pequenas e grandes comunidades ditas evangélicas, a maioria deles sem formação muito menos teológica que, na época, descrevi como vendedores ambulantes de “barbatanas para colarinhos” da praça da Sé, em São Paulo, em busca de alguma coisa mais rendosa e mais simples, embora também inútil, para vender.

A receita do novo produto foi extraída de um livro tão sagrado quanto pouco lido e praticamente desconhecido pelo povo, com cujas frases dispersas aqui e ali, algumas mesmo contraditórias, se pode construir um manual de crenças e esperanças de uma vida eterna depois da morte, vivendo-se alheio ao que se passa ao seu redor, ignorando-se e suportando-se misérias, explorações, sofrimentos e injustiças terrenas porque no céu nada disso haverá.

A ingenuidade de tantos, a falta de instrução de muitos e a simplicidade de outros garantiu o sucesso da nova receita conjugada com cânticos de fervor, discursos inflamados capazes de criar e realçar a fé e despertar a esperança em tantos fracos e oprimidos. As pregações exaltavam o amor, a salvação, a alegria, a paz, como se fossem coisas concretas tão tangíveis quanto as moedas suadas e sofridas depositadas nas bandejas das igrejas como ofertas para o Deus tão misericordioso.

Para alertar os mais desconfiados, propensos à dúvida e insensíveis aos apelos do pregador, existem as sorrateiras, mas claras ameaças do castigo e demais sofrimentos ainda depois da morte, no fogo do inferno. Porque se Jesus representa o amor, seu pai, o rigoroso Deus do Velho Testamento bíblico é a personificação da Justiça, exceto para aqueles que elege como seus preferidos, como costuma também acontecer nas famílias humanas.

Essa nova teologia popularizada no Brasil pelos evangélicos, segundo receituário original norte-americano, já foi aceita pela maioria do pastorado das igrejas protestantes vindas da Reforma, rompendo assim com a cultura do protestantismo europeu vindo de Lutero e Calvino, mesmo se no conceito individualista calvinista estão as raízes da privacidade e do capitalismo.

Sem se esquecer de uma evolução, de certa forma contraditória com sua origem, a da separação da Igreja do Estado, criadora do conceito da laicidade, hoje começando a ser deixada de lado pelos legisladores brasileiros com o recente advento político-religioso do evangelismo. Essa nova influência, ou poder religioso, está interessada em exercer sua influência na organização comportamental, legal e social do país e não apenas na isenção de impostos de igrejas, associações, entidades, escolas, universidades, hospitais e órgãos assistenciais religiosos ou mais precisamente evangélicos. Estamos, portanto, no despontar de um movimento inverso ao ocorrido com a República, cujo decorrer foi responsável pela decretação do Estado laico e pela gradativa separação do Estado brasileiro das entidades ligadas à Igreja Católica.

O atual movimento de “evangelização do Brasil a partir de suas bases populares” não tem um objetivo meramente religioso: trata-se de um projeto político mais amplo que utiliza o conceito individual da salvação da alma como base contra teorias de socialização políticas, projeto justificador da posse individualizada de bens e do capitalismo com suas evoluções atuais.

Ao que parece, se desenha nos próximos seis meses, uma derrota do atual governo, equiparado por pregadores evangélicos fanáticos (os mesmos que no 7 de Setembro apoiavam um golpe bolsonarista) a um “governo de um escolhido de Deus”, nada diferente dos governos teocráticos medievais. Entretanto, não fosse a atual crise econômica desestabilizadora do governo Bolsonaro, o Brasil viveria um grande retrocesso cultural, social e político com sua gradativa transformação num Estado religioso evangélico. E veríamos o absurdo paradoxo de uma Igreja Católica abandonada justamente quando seus teólogos e parte de seus pregadores aderiram ao preceito da Teologia da Libertação.

Contra a luta pela evolução das conquistas sociais, o conjunto conservador e pró-capitalista das comunidades evangélicas propõe aos seus seguidores uma visionária Teologia da Prosperidade, baseada numa interpretação do Velho Testamento bíblico de que miséria e sofrimento são causados pelo pecado, enquanto a riqueza provém das bençãos de Deus. Nessa linha, os grandes capitalistas, como os antigos senhores feudais, são abençoados por Deus, assim como os grandes bancos. Em contrapartida, o evangélico que vê no seu prato uma colher a mais de feijão já se julga abençoado por seguir a nova fé.

Os jornais Folha de S.Paulo e Correio Braziliense publicaram ilustrativos textos de suas jovens jornalistas Anna Virginia Balloussier e Deborah Hana Cardoso com o encarregado de levar a mensagem petista aos evangélicos. Trata-se do pastor Paulo Marcelo Schallenberger, amigo do pastor Marco Feliciano. O mesmo tema provocou um comentário do professor Paulo Ghiraldelli no seu canal Youtube.

O PT deve ter suas razões eleitorais estratégicas para aceitar auxílio de pastor evangélico conservador para diminuir a força dos evangélicos comandados por figuras agressivas como os pastores Silas Malafaia, Cláudio Duarte e o próprio Marco Feliciano, favoráveis no 7 de Setembro a um golpe bolsonarista. Gente que participou das fake news e dos discursos de ódio responsáveis em 2018 pela vitória de Bolsonaro, apesar de suas falas em favor da tortura, dos torturadores, das armas, do assassinato de trinta mil pessoas (esquerdistas ou bandidos?) e da devastação da Amazônia.

Entretanto, a antiga aliança com o pastor Edir Macedo e outros, durante o governo de Lula e no de Dilma, já mostrou ter sido mais benéfica aos interesses desses líderes evangélicos que ao PT e que ao Brasil. Mal comparando, alianças duvidosas desse tipo funcionam como cavalo de Tróia, do qual saem inimigos quando menos se espera. E foi o que ocorreu em 2018.

O Brasil espera, com a saída de Bolsonaro, a aplicação da regra republicana da laicidade ou da separação clara e nítida entre o Estado e a Religião, com o fim das isenções tributárias para as igrejas sejam quais forem, para seus pastores, suas entidades, seus comércios e seus estabelecimentos de ensino. E que se anulem as leis que, no período Bolsonaro, tenham representado um retrocesso político e social.

Nada contra a presença de leigos evangélicos nas câmaras municipais, estaduais e federais e mesmo no Senado. Porém, que os pastores exerçam seu ministério em suas igrejas, defendendo junto aos seus fiéis seus credos e valores nem sempre coincidentes com os credos e valores republicanos e dos direitos humanos universais. Em síntese, que a lealdade do pastor Paulo Marcelo Schallenberger fique clara e se avalie desde o início, renunciando desde já a concorrer a qualquer cargo político. Senão esse anunciado apoio a Lula não passará de um trampolim para ser eleito a algum mandato.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.