Toda religião merece respeito, toda religião que prega o bem, a paz entre os homens, toda religião que considera iguais todas as pessoas, não importa a sua cor, seu gênero e suas opiniões. Toda religião merece respeito se ela não usa o nome de suas divindades, os livros sagrados, para induzir pessoas a apoiarem um sistema político ou a darem seu voto a partidos ou homens políticos.
Ao mesmo tempo, num país democrático, os religiosos devem respeitar quem não acredita em deuses, santos, milagres, céu e inferno. Evidentemente, um e outro, o crente e o não crente, podem discordar, achar errado, mas não podem perseguir, agredir ou marginalizar quem crê ou quem não crê. O direito de crer é assegurado pela Constituição, o direito de não crer também é assegurado pela Constituição.
O fanatismo, a ignorância podem levar a atos condenáveis e criminosos. Como foi o atentado contra o escritor Salman Rushdie, cometido por um beato islamita talibã, como foram as perseguições a cristãos feitas por governos ateus. Ou como foram as perseguições contra não crentes durante a Santa Inquisição. Será que deu para entender?
Porém, a partir do momento em que se mistura água benta, versículos bíblicos, sermões ou missas para fazer pregação política ou simplesmente ganhar dinheiro espalhando mentiras, maldições, a religião perde todo nosso respeito. Porque deixa de ser religião para ser um partido político disfarçado, que usa batina, púlpito, bíblia, orações ou salmos e hinos para enganar os mais humildes, os menos instruídos ou os que precisam de apoio psicológico.
A desgraça pela qual vem passando nosso país, cujo prestígio mundial acabou, cuja imagem de país amigo e gente boa despareceu, engolido por um gabinete do ódio, pela vulgarização do uso de armas, pelo justificação da tortura e pelo assassinato de nossas florestas, pelo genocídio com ou sem cloroquina, vem da eleição, há quatro anos, de um presidente sem qualquer formação, seja cultural, econômica, política ou humana. Ou mesmo religiosa.
Mas, paradoxalmente, esse presidente foi eleito com mais de 30% de votos vindo de pessoas professando uma religião considerada como seguidora direta das mensagens de amor, de respeito, de paz, de honestidade, de verdade, inspiradas diretamente dos evangelhos deixados pelos seguidores de Cristo.
Como o Mal pôde subverter, enganar, mentir e transformar a mensagem de paz do Evangelho numa linguagem de ódio, a ponto de pregar e justificar o rompimento da legalidade, a quebra das regras democráticas, e mesmo incitar cidadãos bons, honestos e pacatos a participarem de arruaças, atos violentos de agitações, que poderão provocar mortes, no 7 de setembro, como incita direta ou indiretamente o presidente Bolsonaro, para se livrar antecipadamente de uma derrota no 2 de outubro?
A resposta é simples: um grupo de espertalhões, bons de conversa mole, superficiais e sem profundidade, gente que antigamente faria sucesso nos circos que existiam em todos os bairros e nas cidades pequenas, esses caras bons de conversa mole deturparam a mensagem bíblica e passaram a pregar o mal nas igrejas, numa espécie de anti-Evangelho, um Evangelho de extrema-direita, inspirado no Velho Testamento, substituindo os escritos de Mateus, Marcos, Lucas e João por um apócrifo Evangelho de Judas Iscariotes.
Quem são os pastores golpistas que espalharam pelas igrejas do Brasil a mensagem falsamente evangélica, a deslavada mentira, de que se Bolsonaro perder, os petistas irão destruir as igrejas e instaurar o comunismo no país? E o apelo, mesmo sendo indireto, de que os evangélicos devem lutar para impedir isso, até mesmo com armas?
No ano passado, às vésperas do 7 de setembro, num sermão transmitido também online, o pastor Cláudio Duarte, uma espécie de showman de circo, misturando humorismo, piadas toscas e de mau gosto com evangelismo, excitava seus seguidores com a mensagem de que o Brasil estava à beira da guerra civil.
Ainda neste mês, convidado pela bancada evangélica com a presença do presidente Bolsonaro, levou sua mensagem fundamentalista, tipo Deus, Pátria e Família, (lema dos fascistas italianos) e entre idiotas piadinhas cristãs, bem adaptadas ao público de cultura elementar de deputados e senadores ao qual se dirigia, aproveitou para atacar o STF e o ministro Alexandre Moraes. Tudo em nome de Deus, fazendo de conta ter esquecido que o Brasil é um país laico. Só a criação de uma bancada evangélica já é uma excrescência num país democrático e não teocrático.
Quem são os principais líderes desse evangelho golpista além do pastor humorista Duarte? Vi esses nomes num site de jornalistas, com a seguinte identificação: representantes do Reino de Deus no governo Bolsonaro. Seriam, portanto, pastores embaixadores, mas sem terem mostrado as divinas credenciais: Marco Feliciano, um dos divulgadores do fake news da destruição de igrejas no caso de vitória da oposição, Silas Malafaia, Edir Macedo, Magno Malta, Guilherme de Pádua, pastora Flordelis, pastor Everardo, Gilmar Santos, Airton Moira etc., os enganadores do povo humilde, pobre e sem instrução.
Ironia da história: foi o PT, mal orientado, e esperando converter os evangélicos para o petismo, quem deu força a esses cristãos de fancaria; não eram nem 10% à época, hoje são mais de 30%. Inclusive, com o PT ajudando a implantação dos evangélicos nos países africanos de língua portuguesa, onde hoje estão derrubando os católicos herdeiros da colonização.
Ninguém deve esquecer a presença e o apoio de Dilma Rousseff na inauguração do Templo de Salomão, de Edir Macedo. Os petistas bancaram os trouxas e foram redondamente traídos em nome de Deus por Edir Macedo, Malafaia e seu bando de falsos cristãos. Ingenuidade petista, esperteza frustrada, mas também falta de informação sobre os evangélicos. Bastaria saber como agem nos Estados Unidos, onde são trumpistas e de extrema-direita, esses evangélicos de importação. O PT entrou numa verdadeira canoa furada!
Espera-se que, com a anunciada derrota de Bolsonaro, ocorra também a queda da credibilidade dos evangélicos, responsáveis pela eleição e sustentação do nosso pior presidente. Se isso não ocorrer e os evangélicos continuarem a crescer, pode mesmo haver uma tentativa de teocratização do Brasil (nestes últimos dias, uma nova lei ampliou ainda mais a isenção de impostos para pastores, pretensos pastores e igrejas evangélicas).
Um exemplo é o programa do candidato evangélico Roberto Jefferson, do PTB, no qual uma das principais propostas é a da criminalização do que chama de cristofobia, criminalização dos culpados por terem aversão ao cristianismo, com processo e prisão para quem criticar ou falar mal dos evangélicos. Uma versão talibã evangélica…
Os empresários golpistas já se retrataram, mas e os pastores golpistas?
Os empresários golpistas apanhados em flagrante de ameaça à democracia e à legalidade já deram marcha-à-ré e tentam desmentir terem defendido e estarem dispostos a bancarem um golpe de Estado caso Lula vença as eleições. Diante das denúncias e do risco de processo com prisão, os valentes defensores de uma nova ditadura murcharam e amoleceram.
Toda imprensa brasileira, alertada pelo portal de notícias Metrópoles, já noticiou, comentou e espera a sequência judicial de mais esse episódio de fomentação golpista, alimentado pela obsessão de Bolsonaro de invalidar as eleições, levar povo às ruas e se manter no poder contra a lei, contra a Constituição, contra a democracia, mas em nome de Deus.
Circulam rumores de que, sentindo-se enfraquecido e ainda mais desmoralizado com o episódio do “Tchutchuca do Centrão”, o machão desmoralizado estaria disposto a aceitar o resultado das urnas, mesmo sendo eletrônicas, e a aceitar uma derrota cada vez mais evidente nas sondagens eleitorais. Pode-se acreditar nisso, sabendo-se da versatilidade bolsonarista, seja para incitar seguidores a não permitirem sua derrota e, logo depois, diante da imprensa, declamar ser defensor dos resultados das eleições, embora alimente a ambiguidade da frase ao acrescentar a palavra “limpas!”?
Os empresários golpistas apanhados com a boca na botija já arregraram; ao que parece só restou mesmo um bolsonarista convicto e golpista de coração, o Luciano Hang, dono da Havan. Os outros, Afrânio Barreira, do Grupo Coco Bambu; José Isaac Peres, dono da administradora de shoppings Multiplan; José Koury, dono do Barra World Shopping, no Rio de Janeiro; Ivan Wrobel, da construtora W3 Engenharia; e Marco Aurélio Raymundo, o Morongo, dono da marca Mormaii, já estão se fazendo de bonzinhos e se transformaram em tchutchuquinhas do Bolsonaro…
Melhor assim; porém, já está salva nossa pátria do risco do golpe? Do golpe talvez sim, mas de uma tentativa de agitações, guerrinhas, talvez mesmo de tiros com tantas arminhas importadas e algumas vítimas inocentes, talvez não. Bolsonaro tem cabeça dura, já disse, no estilo daquele velho samba, “daqui não saio, daqui ninguém tira”, só saio morto, e não vai querer ser mais uma vez chamado de tchutchuca assustada. É verdade que já não tem mais muitas cartas na mão, como disse um dos empresários golpistas: “o golpe tinha de ter sido dado no primeiro ano de mandato, em 2019”.
Porém, resta a Bolsonaro um apoio não visível, mas, segundo seus amigos pastores, infalível: o apoio de Deus. Eles vivem enchendo a cabeça de Bolsonaro com histórias do Velho Testamento, em que Deus intervém na hora H. Talvez Bolsonaro tenha mesmo acreditado naquela história de ter sido o escolhido é o ungido de Deus, mesmo sendo pecador, mesmo porque Davi não era também nenhum santo…
Quem tem dúvida, deve ir ao canal Youtube oficial do mais forte pastor do momento, o Silas Malafaia (que pelo jeito acredita mesmo ter sido nomeado representante de Deus; tudo é possível) e verá que um grupo de pastores incitam seus fiéis para irem todos às ruas, nas cidades em que vivem! Todos de verde-amarelo, será uma espécie do golpe em marcha, no 7 de setembro, aos gritos de “nossa bandeira nunca será vermelha”, “povo armado nunca será escravizado”. Vai terminar em carnaval evangélico, em prantos e ranger de dentes como dizem as Escrituras?
Tudo é possível! O portal Metrópoles talvez devesse dar agora o nome dos pastores golpistas, porque esse segmento evangélico da população é o único que permanece fiel ao Messias. Quantos golpistas os empresários colocaram nas ruas no 7 de setembro, ainda mais com essa crise econômica? Alguns pingados extremistas. Mas os evangélicos são 50 milhões de fanáticos teleguiados, como publicaram ainda esta semana os jornais, certos de que estão protegidos por Deus. A manchete dizia: “Pastores com 50 milhões de seguidores no Instagram, Facebook e Twitter dão palanque virtual a Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição. Líderes religiosos falam em “guerra contra o mal” e convocam para os atos de 7 de setembro”.
Parece ser coisa para ser levada a sério.
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[Nota do editor: nesta terça-feira, dia 23 de agosto, a Polícia Federal, a mando do ministro Alexandre de Moraes, cumpriu mandados de busca e apreensão nas casas e escritórios dos empresários citados.]
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.