A cobertura do processo eleitoral do primeiro turno das eleições brasileiras feita pela mídia revelou uma característica assustadora: a propagação da violência política e da intolerância praticada por bolsonaristas radicais em todo o país. Percebemos que a morte de Marcelo Arruda na própria festa de aniversário, em Foz do Iguaçu, não constituiu um caso isolado, mas fez parte de um triste processo da escalada da violência estimulada pelos comportamentos irresponsáveis do presidente da República, pela atuação de líderes religiosos e pela mídia bolsonarista, que atua especialmente nas redes sociais. Podemos citar, ao menos, outras duas vítimas fatais da violência bolsonarista: Benedito Cardoso dos Santos, morto a golpes de faca e de machado durante uma discussão política com um bolsonarista, no interior do Mato Grosso; e Antônio Carlos da Silva de Lima, que foi esfaqueado em um bar da cidade de Cascavel-CE, após afirmar que votaria em Lula. Além disso, a mídia denunciou diversos casos de agressões físicas promovidas por bolsonaristas radicais durante a campanha eleitoral do primeiro turno. No dia 31 de agosto, por exemplo, uma igreja da CCB passou uma circular sobre as eleições em um culto realizado em Goiânia. O comunicado lido orientava os fiéis a não votarem “em candidatos ou partidos políticos cujo programa de governo seja contrário aos valores e princípios cristãos ou proponham a desconstrução das famílias no modelo instruído na palavra de Deus, isto é, casamento entre homem e mulher”. Ao divergir do conteúdo da carta, Davi Augusto de Souza, foi baleado dentro da igreja pelo PM Vitor da Silva Lopes, que já conhecia a vítima há pelo menos 10 anos, segundo relatou o irmão do fiel ferido ao portal G1. No dia 23 de setembro foi a vez da jovem Estéfane de Oliveira Laudano ser agredida com uma paulada na cabeça por se posicionar contra Jair Bolsonaro em um bar, na cidade em Angra dos Reis. Segundo apurado por reportagem do jornal O Globo, o agressor, chamou a vítima de maria-homem e disse que ‘se ela era homem, então iria apanhar que nem homem’, momentos antes de deferir o golpe que feriu Estéfane.
Outras duas mulheres foram fisicamente agredidas por bolsonaristas: uma do Distrito Federal, atacada pelas costas por portar uma bolsa com a imagem de Lula e outra, grávida, em São Gonçalo, que foi atacada por estar panfletando para o PT. Também podemos citar agressões verbais e humilhações promovidas por bolsonaristas, como a sofrida pela doméstica Ilza Ramos Rodrigues, humilhada por declarar voto em Lula, em Itapeva, no interior de São Paulo. Podemos citar ainda o caso de Leonardo Bruno de Lucena, agredido com um tapa no peito, em Recife, por se recusar a retirar um adesivo de Lula de sua roupa. A vítima que é cega, afirmou a reportagem da UOL que os agressores se identificaram como bolsonaristas.
Como podemos notar pelos exemplos citados em nosso texto, o Brasil vive uma temerosa propagação da violência política e da intolerância praticada por bolsonaristas radicais nas mais diferentes regiões do país. Em nosso artigo, procuraremos compreender esse fenômeno a partir de três aspectos principais: o comportamento irresponsável e belicoso de Jair Bolsonaro, a atuação cruzadista de lideranças religiosas e a representação midiática realizada por mídias bolsonaristas, atuantes especialmente nas redes sociais e na internet.
Para ilustrarmos o comportamento do atual presidente da República, podemos citar um evento ocorrido na campanha eleitoral de 2018, no Acre, quando Bolsonaro defendeu o fuzilamento de petistas. Segundo revelado por reportagem da revista Exame, publicada em setembro de 2018, o então candidato à presidência disse em seu discurso: “Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre, hein? Vamos botar esses picaretas para correr do Acre. Já que eles gostam tanto da Venezuela, essa turma tem de ir pra lá. Só que lá não tem nem mortadela, hein, galera. Vão ter de comer é capim mesmo”, utilizando um tripé para simular tiros de metralhadora.
O fato é que Bolsonaro sistematicamente difunde o ódio contra os que pensam diferente daqueles que fazem parte de sua base eleitoral, autorizando seus eleitores a colocarem para fora o que possuem de pior. Os pronunciamentos do presidente colocam em dúvida o sistema eleitoral brasileiro, as instituições da república e o conhecimento científico nas mais diferentes áreas do conhecimento. Jair Bolsonaro sistematicamente defende nosso sombrio passado totalitário e homenageia os torturadores da Ditadura Civil Militar brasileira, humilhando as vítimas do regime de terror que foi institucionalizado no país por 21 anos.
Certamente, a postura irresponsável do presidente influencia diretamente no comportamento de seus eleitores, que em diferentes manifestações de apoio a Bolsonaro empunharam bandeiras com conteúdo antidemocrático, reproduzindo os ataques feitos pelo chefe do Executivo aos demais poderes e instituições da República. Além disso, em alguns casos é possível estabelecer uma relação direta entre o comportamento do presidente e a escalada da violência política, como no caso do entrevistador do Datafolha, Rafael Bianchini, que foi agredido por um bolsonarista dois dias após uma entrevista de Bolsonaro ao SBT, questionando a credibilidade do TSE e dos institutos de pesquisas eleitorais.
O ódio também é difundido entre os radicais bolsonaristas por meio de milícias digitais que atuam em redes sociais, criando uma realidade paralela para seus apoiadores. Em seu livro “A sociedade do espetáculo”, escrito em 1967, Guy Debord realiza uma crítica a perversidade da vida moderna, que valoriza mais a aparência do que o verdadeiro ser, permitindo que aquilo que é verdadeiramente vivido se esvaia na fumaça da representação. Para o autor, a atuação dos veículos de comunicação em massa faz com que as pessoas se descolem cada vez mais da realidade, vivendo apenas a representação do real oferecida pelas imagens vinculadas pela mídia (DEBORD, 1967). Como afirma Debord:
Quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como sendo o sentido privilegiado da pessoa humana – o que em outras épocas fora o tato; o sentido mais abstrato, e mais sujeito à mistificação, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual (DEBORD, 1967, p. 18).
A atuação das milícias digitais a serviço de Bolsonaro certamente vinculam imagens que contribuem para um total descolamento da realidade por parte de seus seguidores, que passam a reproduzir um verdadeiro comportamento hipnótico. O resultado produzido por esse processo é a reprodução de diversas fake news, que passam a nortear a representação do real feita por bolsonaristas que se fecham em uma verdadeira bolha, descolada da realidade do país. Nesse sentido, Debord afirma que “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediatizadas por imagens” (DEBORD, 1967; p. 14). Diante desse macabro cenário pintado por Bolsonaro e por suas milícias digitais, milhares de apoiadores fanáticos passam a enxergar a violência como a única possibilidade de ação, por acreditarem que existe um plano maquiavélico, envolvendo as instituições da República, para impedir a reeleição do presidente em eleições vistas como “não limpas e fraudulentas”.
A campanha do presidente aposta no apelo da luta do bem contra o mal, que é respaldado por figuras religiosas, como Silas Malafaia, que insistem em demonizar a esquerda, enquanto defendem Bolsonaro como o candidato de Deus, que trava uma verdadeira cruzada contra os infiéis. Vale lembrar que na tradição religiosa ocidental a religião sempre representou um grande refúgio contra a ofensiva de um mal invencível. Podemos perceber a presença desta tradição em discursos, como o realizado por Bolsonaro, na Marcha para Jesus, em São Paulo: “Nós somos a maioria do país, a maioria do bem. E nesta guerra do bem contra o mal, o bem vencerá mais uma vez. Eu peço a Deus todos os dias, quando levanto, dobro os joelhos e rezo um Pai Nosso, para que o nosso povo não experimente as dores do socialismo […]”. Podemos perceber o resgate de uma linguagem que remete a época das Cruzadas, nas quais cristãos formaram exércitos para libertarem as terras santas daqueles que eram considerados infiéis e que estariam oprimindo o povo de Deus. Porém, no caso brasileiro, os infiéis não são representados por muçulmanos, mas sim por pessoas com visões políticas progressistas ou descoladas da visão política bolsonarista. Corroborando com tal discurso, Silas Malafaia, afirmou à revista Veja, em agosto deste ano, que “[…] é impossível um cristão verdadeiro ser de esquerda!”.
Esse perigoso preconício ideológico, propagado por Bolsonaro e por sua base política, faz com que muitas pessoas assumam a missão de combater as forças do mal, do modo que se combate em uma guerra santa: utilizando a violência. Desse modo, o discurso de ódio, o ataque as instituições da república, o apelo moralista que condena o que foge dos valores da visão de família tradicional brasileira propagado por apoiadores bolsonaristas, e o clima cruzadista de defesa do bem contra as forças demoníacas da esquerda produziram um cenário propício para a escalada da violência durante o processo eleitoral brasileiro. Segundo pesquisa da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 67,5% dos entrevistados afirmam ter medo de serem agredidos fisicamente em razão de sua escolha política ou partidária. A atitude da militância raivosa de bolsonaristas, que visa acuar aqueles que pensam diferente deles demonstra a nossa falência enquanto povo e enquanto civilização. Como defende Hannah Arendt: “o terror aniquila todas as relações entre os homens através da destruição do espaço da liberdade” (ARENDT, 2009, p. 970). É exatamente isso que vivemos no Brasil de 2022, já que o espaço de liberdade dos brasileiros e brasileiras que não compactuam com o governo está seriamente ameaçado pela atuação dos radicais de extrema direita. Até alguns anos atrás era impensável vivermos em um cenário de medo e de intimidação durante o processo eleitoral, como vivemos nos dias atuais. A disputa entre dois espectros ideológicos (direita e esquerda) sempre existiu na sociedade brasileira, principalmente em anos eleitorais, porém nunca com contornos tão dramáticos quanto os produzidos pela irresponsabilidade de Bolsonaro e de seus apoiadores.
A análise da conjuntura da corrida eleitoral, feita até aqui, nos traz a certeza de que a sociedade brasileira viverá tempos difíceis e perigosos no intervalo do dia 02 para o dia 30 de outubro. Provavelmente, a atuação das milícias digitais bolsonaristas se intensificará, propagando o ódio contra os que não estão alinhados com o espectro ideológico representado por Bolsonaro, utilizando-se, principalmente, das fake news. Também podemos esperar que as lideranças religiosas intensifiquem a propagação do apelo cruzadista, que instiga os fiéis a combaterem a ameaça representada pelos infiéis, ou seja, por aqueles que defendem visões mais progressistas de sociedade. Além disso, a iminência da derrota nas urnas pode provocar uma radicalização ainda maior nos discursos do atual presidente, que deve partir para o tudo ou nada para tentar reverter a vantagem de Lula no segundo turno. Os efeitos da radicalização no comportamento de seus eleitores são imprevisíveis, podendo representar sérias ameaças a democracia brasileira, as instituições republicanas e ao bem-estar da população não alinhada com o bolsonarismo.
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Referências:
ARENDT, H. Elemente und Ursprünge totaler Herrschaft. München: Beck, 2009.
DEBORD, G. A Sociedade do espetáculo. [S.l.]: Projeto Periferia, 2003.
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Diogo Comitre é professor do IFSP, mestre e doutorando do Programa de História Social da Universidade de São Paulo