Vou começar pelo fim: quando a Justiça Eleitoral anunciar o resultado final das eleições de outubro, se Bolsonaro não for reeleito, controle suas emoções e não saia às ruas para comemorar. Adie sua alegria e os festejos, espere passar a data da diplomação do presidente eleito com seu vice-presidente, após os prazos de questionamento e de processamento do resultado das eleições, entre os dias 12 e 19 de dezembro.
Fomos dos primeiros a alertar quanto ao risco de o presidente Bolsonaro tentar adaptar ao Brasil, caso perca as eleições, a aventura golpista do ex-presidente norte americano Donald Trump ao se ver derrotado. Me servi mesmo das imagens do tribuno romano, cônsul Cícero, denunciando o golpista Catilina. Enfim, me tranquiliza ver essa preocupação ser também agora compartilhada por colegas; no domingo, o jornal Folha de S.Paulo revelou haver diversas entidades, associações e grupos já se preparando para essa perigosa eventualidade.
Entretanto, essa notícia, da qual faz parte uma entrevista com a professora Estefânia Barbosa da Universidade Federal do Paraná (pertencente ao grupo Demos, constituído de professores especialistas em Direito nos diversos Estados brasileiros), contém um apelo responsável pela redação deste texto. Preocupada ao máximo com a situação, ela diz: ” …vamos precisar de política e de todas as instituições, empresas, igrejas, sindicatos. E vai ter que ter povo na rua”. Em síntese ela convoca uma mobilização geral nas ruas. Justamente o que não se deverá fazer! Por quê?
Ainda neste fim-de-semana, em Manaus, num encontro político-religioso como os que agora proliferam, depois das palavras religiosas de praxe e de se referir às crises econômicas, mas só nos países latino-americanos de esquerda nossos vizinhos, sem citar os assassinatos recentes ali perto do indigenista Bruno Pereira e Dom Phillips, voltou a tocar na necessidade de haver eleições limpas e auditáveis para seus resultados serem aceitos. Nesta altura, já se tornou rotina a repetição de frases premonitórias prevendo fraudes nas eleições, acompanhadas de sugestões claras ou sinuosas da necessidade de seus seguidores reagirem.
Não se trata de se propor um golpe clássico como foram o de Pinochet no Chile ou de 1964 no Brasil, mesmo porque nos tempos atuais a comunidade internacional poderia reagir com severas medidas e boicotes dolorosos para os empresários bolsonaristas. Embora considerado idiota por muitos comentaristas, Bolsonaro na sua obsessão golpista prepara um golpe mais sofisticado, embora inspirado na frustrada tentatativa de Donald Trump.
Essa tentativa golpista de Trump voltou nestas semanas à atualidade com os trabalhos da Comissão Especial do Congresso norte americano, equivalente a uma CPI brasileira, contra o ex-presidente acusado de tentativa de golpe pela utilização reiterada de mentiras.
Para quem já se esqueceu, na madrugada do dia 4 de novembro de 2020, quando ainda prosseguia a apuração dos boletins de voto (nos EUA, as eleições ainda são por voto com cédulas impressas como eram antigamente no Brasil), mostrando Joe Biden e Trump quase empatados, com ligeiras diferenças entre eles que variavam segundo a contagem, Trump fez uma declaração intempestiva à televisão afirmando ter sido eleito.
Embora essa declaração tivesse sido desmentida, algumas horas depois, com a apuração final dos votos, Trump continuou se dizendo vencedor do pleito, afirmando ter havido fraude nas eleições. De nada adiantaram os argumentos de sua própria filha Ivanka e do seu ex-ministro da Justiça Bill Barr sobre a incoerência dessa dificuldade em aceitar sua derrota, como ambos declararam diante da Comissão. Trump continuou repetindo ter havido fraudes maciças e que sua eleição fora roubada.
Entretanto, uma deputada democrata, Zoe Lofgren, declarou ter ouvido, antes das eleições, que Trump declararia ter havido fraude caso fosse derrotado. Mesmo porque tinha analisado haver no sistema eleitoral algumas falhas. Durante os dois meses que precederam a certificação da vitória da Biden e sua diplomação e posse como presidente, Trump não mudou, a ponto de querer forçar seu vice-presidente Mike Pence a mentir.
No dia 6 de janeiro, era Pence quem presidia o Congresso e deveria certificar a vitória de Biden. Mas Trump, depois de ter exercido sérias pressões sobre o vice, chegou a declarar publicamente que ficaria extremamente decepcionado se este não se batesse pelo bem do seu país e da Constituição. Ora, Pence havia consultado um ex-juiz da Câmara de Apelação de Nova Iorque, Michael Luttig, que lhe respondera de maneira taxativa -não havia nenhuma possibilidade de manobra legal que pudesse impedir a posse de Joe Biden. Diante disso, Mike não cedeu.
Uma ação desse tipo lançaria o país numa crise constitucional sem precedentes, disse ainda o juiz. Na quinta-feira, dia 23, a Comissão deverá concluir suas últimas pesquisas, já havendo 800 participantes do ataque ao Capitólio presos pelo FBI. Nesse ataque morreram cinco pessoas e poderia ter sido dramático para a democracia norte-americana se seus congressistas não tivessem se escondido nos subterrâneos do Capitólio.
É nesse quadro antidemocrático e de conspiração trumpista, do qual participaram deputados e políticos republicanos norte americanos, que se inspirou Bolsonaro. Sua tentativa de golpe inclui ataques constantes ao STF para desmoralizar o judiciário brasileiro. Sua campanha contra o voto eletrônico é para utilizar desde já o argumento de ter havido fraude. Nos EUA, o voto é impresso, mas o argumento era o mesmo, são meros pretextos. A campanha para seus seguidores se armarem é para estarem preparados para o momento decisivo.
Feitas as adaptações, qual é o plano antidemocrático de Bolsonaro e seus conspiradores, inclusive evangélicos? Provocar o choque dos bolsonaristas armados com os manifestantes, no momento em que estes forem comemorar nas ruas, no dia 30 de outubro a vitória de seu candidato. Embora não estejam armados, os manifestantes que não forem massacrados, poderão reagir diante das violências.
Num piscar de olhos, os agressores serão chamados de vítimas e os tumultos resultantes justificarão uma decretação imediata de estado de sítio. Estará criado o caos e o pretexto para a intervenção militar. Bolsonaro terá dado o golpe.
A única maneira de se evitar o pretexto para o estado de sítio e a intervenção militar será a de não ir às ruas até a diplomação dos vencedores nas eleições. Se apenas as milícias bolsonaristas e seus seguidores armados tomarem as ruas, o Exército terá de intervir, prender os arruaceiros e assegurar a ordem até a diplomação dos eleitos. Esperemos que, como fizeram os deputados norte-americanos, os ministros do Supremo estejam em lugar protegido durante as ameaças de golpe, pois serão eles que assegurarão a sequência da ordem democrática no país.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.