Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O real significado da vitória de Lula

(Foto: Brasil de Fato)

Os últimos dias foram marcados por uma tentativa da mídia em cobrir inúmeros episódios relacionados à corrida eleitoral no Brasil. Podemos citar como exemplos: o atentado promovido por Roberto Jefferson, os inúmeros casos de assédio e de violência eleitoral, as denúncias infundadas da campanha bolsonarista relacionadas às inserções de propaganda eleitoral nas rádios, os ataques de Bolsonaro ao TSE, ao STF e às pesquisas eleitorais, a ameaça armada de Karla Zambelli e a atuação da Polícia Federal Rodoviária dificultando o transporte de eleitores no dia das eleições do segundo turno. A enorme quantidade de eventos envolvendo a base bolsonarista levou a mídia a realizar uma cobertura superficial dos acontecimentos, muitas vezes deixando de perceber as relações entre estes episódios e aspectos importantes que envolvem o uso da máquina pública de uma maneira inédita desde a redemocratização do Brasil. O acúmulo de acontecimentos diários praticamente impediu análises mais robustas da conjuntura política, especialmente no que se refere à ameaça à nossa democracia representada pela utilização do aparato do Estado a favor da candidatura de Bolsonaro.

Curiosamente, na campanha de 2018, uma das principais acusações de Bolsonaro contra o PT era um suposto aparelhamento do Estado, além do uso da máquina pública para fins eleitorais. Porém, o discurso voltado ao combate de tais práticas, que atraiu tantos eleitores, jamais foi colocado em prática. Na verdade, hoje é possível percebermos claramente que quem aparelhou o Estado e utilizou a máquina pública para fins eleitorais foi justamente Bolsonaro. Foi o atual presidente que trocou o diretor-geral da Polícia Federal por 5 vezes, em menos de 4 anos. Para efeito de comparação, Lula em oito anos teve 2 diretores gerais e Dilma apenas 1. Vale lembrar que a interferência de Bolsonaro na PF foi denunciada pelo aliado Sérgio Moro, alegando que deixou o governo por este motivo. Vale lembrar que o pano de fundo para o posicionamento de Moro foi a exoneração do diretor-geral da PF, Maurício Valeixo. Moro afirmou na época que a exoneração ocorreu porque Bolsonaro desejava ter alguém no cargo a quem pudesse “ligar, colher informações e relatório de inteligência”. O aparelhamento do Estado por Bolsonaro também ficou evidente com a escolha de Augusto Aras para o cargo de procurador geral da república – PGR, que possui entre suas funções a atribuição de autorizar ou arquivar denúncias contra o presidente. Desde 2001 o Ministério Público Federal realiza eleições para a constituição de uma lista tríplice com indicações para a escolha do PGR, que é encaminhada para o Presidente da República pela Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR. Porém, Bolsonaro, em duas ocasiões, simplesmente ignorou a lista tríplice, nomeando Augusto Aras, que sequer se candidatou ao cargo, ficando, portanto, de fora da lista tríplice. A nomeação de um procurador que não foi escolhido por seus pares certamente fere a autonomia de atuação do designado, que só alcançou o cargo por uma indicação do presidente, não possuindo a legitimidade de ter sido eleito pela ANPR. Para efeito de comparação, nos governos Lula e Dilma o mais votado da lista tríplice sempre foi confirmado como Procurador Geral da República. 

Outro tema que merece destaque foi a atuação da Polícia Rodoviária Federal – PRF no dia da eleição do segundo turno. Segundo apurado pelo G1, em reportagem publicada no dia 30/10/2022, a PRF realizou 619 abordagens a ônibus no dia da eleição, o que significa um aumento de 108% em relação ao que ocorreu no dia 02/10/2022, quando ocorreu a votação de primeiro turno. Segundo reportagem publicada no dia 31/10/2022 no portal UOL, sobre uma mulher que não votou por causa da operação da PRF no RJ, 49,5% das ações da PRF aconteceram no Nordeste, 10,7% no Norte, 8,74% no Sudeste e 8,74% no Sul. Curiosamente, no maior reduto eleitoral de Lula, foram concentradas praticamente metade das operações, enquanto nos redutos eleitorais de Bolsonaro, como o Sudeste e o Sul, houve pouquíssimas destas abordagens pela PRF. O fato demonstra clara intenção da instituição em dificultar e tumultuar o processo eleitoral nos locais em que a maioria dos eleitores haviam votado em Lula no primeiro turno. Levando em conta que o diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques, foi nomeado pelo ministro da Justiça de Bolsonaro após as denúncias de interferência do presidente nas instituições da República, não é de se estranhar que o mesmo tenha declarado voto no atual presidente. Vasques, que já havia sofrido processo interno da PRF por agredir um frentista quando este o informou que o posto não possuía serviço de lavagem de carros, revogou as portarias de funcionamento das Comissões de Direitos Humanos no âmbito da PRF, assim como o Ensino de Direitos Humanos nos cursos de formação e reciclagem de agentes da instituição. A atuação da PRF apoiando as manifestações antidemocráticas que estão ocorrendo após as eleições e a postura de Vasques em descumprir determinações do STF para reprimir os movimentos que pedem intervenção militar e o fim da democracia evidenciam o aparelhamento do Estado promovido por Bolsonaro. Vale lembrar que as constantes trocas na direção-geral da PF, mostram que somente são mantidos nos cargos aqueles que agem conforme os interesses de Bolsonaro, o que certamente influencia o comportamento do diretor-geral da PRF e de todos os outros agentes que ocupam cargos nomeados pelo governo Bolsonaro. 

Já em relação à atuação do PGR (Augusto Aras), chama a atenção o fato do órgão ter arquivado, até julho de 2022, 104 pedidos de investigação contra Bolsonaro vindos do STF, o que demonstra que a escolha de um procurador que figurava fora da lista tríplice provavelmente influencia em sua atuação. Certamente o arquivamento de tantas denúncias contribuiu para evitar um desgaste ainda maior na imagem de Bolsonaro, o que também contribuiu para seu desempenho no processo eleitoral. 

A utilização da máquina pública para fins eleitorais também ficou evidente no governo do atual presidente. O primeiro ponto que podemos destacar é o investimento de recursos públicos em propagandas veiculadas em sites que espalham fake news favoráveis ao governo. Segundo apurado pelo The Intercept Brasil, somente entre maio de 2019 e julho de 2021, Jair Bolsonaro entregou R$11 milhões ao Google para a distribuição de anúncios de extrema direita pela internet, utilizando o programa Google AdSense. O grande problema é que a CPI das Fake News identificou 2 milhões de anúncios publicitários do governo em sites de conteúdo inadequado, ou seja, sites que veiculam informações falsas, jogos de azar, pornografia e investimentos ilegais. Desse modo, recursos públicos, repassados pela Google, fomentam sites e canais de comunicação que espalham fake news pelas redes, alimentando a desinformação e veiculando notícias falsas favoráveis ao presidente da república. O uso de recursos públicos para fomentar a campanha de Bolsonaro ficou ainda mais evidente com a aprovação da PEC do Estado de Emergência no Brasil em julho de 2022. A medida foi justificada pelo impacto econômico da disparada no preço dos combustíveis devido à guerra entre Rússia e Ucrânia, porém é evidente que o verdadeiro objetivo da PEC foi permitir a criação de uma série de benefícios em ano de eleição, o que é proibido pela legislação eleitoral. O texto aprovado prevê a utilização de R$ 41,25 bilhões até o final de 2022 para cobrir a expansão do Auxílio Brasil e do vale-gás, além de criar auxílios para caminhoneiros e taxistas, financiar a gratuidade de transporte coletivo para idosos e compensar os estados que fornecerem créditos de ICMS para distribuidores e produtores de etanol. O pacote de bondade concedido nas vésperas das eleições, mais uma vez evidencia a utilização da máquina pública para fins eleitorais pelo governo Bolsonaro.

Mesmo com indícios tão claros do aparelhamento do Estado e do uso da máquina pública para fins eleitorais promovidos por Jair Bolsonaro, tais assuntos ocuparam pouco espaço na mídia, que esteve atenta à cobertura de outros temas, também importantes, durante o processo eleitoral. O fato é que a enxurrada de acontecimentos envolvendo a base bolsonarista durante as eleições criou um panorama que dificultou o trabalho da mídia no sentido da análise da atuação do governo, o qual criou um cenário de extrema desigualdade entre as campanhas de Lula e de Bolsonaro nas eleições de 2022. Esta análise permite compreendermos a real dimensão da vitória de Lula no dia 30/10, o que foi ressaltado pelo candidato eleito em seus discursos após a apuração dos votos: “Não enfrentamos um adversário, mas sim a máquina do estado brasileiro colocada à serviço do candidato da situação para evitar que nós ganhássemos as eleições”. 

Agora, com a definição do processo eleitoral, é fundamental que a mídia retome esta discussão para estimular a sociedade brasileira a refletir sobre o funcionamento das instituições da República e sobre o uso eleitoral da máquina pública. É preciso criarmos mecanismos de defesa da democracia que impeçam que a estrutura do Estado brasileiro seja colocada à serviço da eleição de um candidato, comprometendo o princípio do equilíbrio de forças e da igualdade no processo eleitoral. Se não fosse o capital político, o carisma e a habilidade do presidente Lula em construir uma ampla aliança democrática provavelmente o resultado da eleição poderia ter sido outro, o que abriria caminho para a instalação de uma autocracia chefiada por Bolsonaro. Com o apoio de grandes grupos econômicos, com a maioria no legislativo e com a possibilidade de indicar mais dois ministros para o STF, o que garantiria quase que um controle sobre o judiciário, Bolsonaro facilmente acumularia um poder praticamente ilimitado no país, ameaçando o funcionamento de um Estado Democrático de Direito no Brasil. Portanto, a vitória de Lula nas urnas representou mais do que a escolha de um determinado projeto de país, mas sim a vitória da Democracia contra um perigoso processo de escalada do autoritarismo colocado em curso pelo candidato derrotado.

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Diogo Comitre é professor do IFSP, mestre e doutorando do Programa de História Social da USP.