Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Pressentimento – e se o golpe já houve, falta só certificar?

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Foi lendo a última entrevista ao Estadão de Flávio, o primogênito de Bolsonaro, e seu futuro sucessor em 2026, que me caíram as escamas dos olhos, como contaria o evangelista Matheus, se vivesse agora por aqui! Tenho sido ou fui mesmo o precursor ao detalhar como será o golpe de Bolsonaro em outubro, mas dei bobeira. O Arthur Lira, o próprio Bolsonaro, o Silas Malafaia e seus acólitos, todos deveriam ter rido de mim, se me lessem!

Por quê? Ora, porque o chamado golpe já houve, sem barulho, sem prisões, sem tropas nas ruas, sem se tocar o ouvirumdum Ipiranga, sem alarde, sem manchete nos jornais, no Uol, nem na Globo e na Jovem Pan. Com jeito, sem forçar, sem grito, sem sangue, numa boa… Mas em que dia que foi? Ou vai ser como o outro golpe, o de 1964, sem data precisa: 31 de março ou no Dia da Mentira, primeiro de abril?

Ah, não houve uma data especial, podemos categorizá-lo como um golpe progressivo ou um tanto pior que isso – um golpe quase consentido. E isso me faz lembrar um poema, atribuído erroneamente a Maiakówki, mas na verdade composto por um poeta brasileiro, Eduardo Alves da Costa, em 1968, contra a ditadura militar. Nosso poeta contribuiu para isso, sem querer, ao dar ao seu poema o título de “No Caminho com Maiakóvski”. O colega Luciano Martins Costa, publicou aqui no OI, em 2012, o que parece ter sido a primeira retificação na imprensa.

O que diz o poema de Eduardo Alves da Costa? Talvez valha a pena lembrar, colocando sua íntegra no rodapé deste artigo, visto espelhar bem a atual realidade política; ou seja, o poema conta que diante da nossa falta de reação, diante das primeiras agressões feitas, os inimigos invadem nossa casa e nos deixam sem voz e, ao fim, não podemos nem mais gritar e nem reagir e nem nos proteger.

Bolsonaro começou negando a importância do coronavírus; a seguir, negou a necessidade da vacina e ofereceu um paliativo ineficaz, a cloroquina. Houve a tentativa frustrada de se provocar um impeachment, criou-se uma CPI cujas conclusões foram ignoradas e agora já estão esquecidas.

A seguir, cortes em direitos sociais e trabalhistas, falta de políticas claras de geração de emprego e renda, fim de programas antes considerados prioritários, assim como fim das estatais e privatizações.  Já no seu começo de governo começam as queimadas, aumentando a cada ano o desmatamento da região amazônica.

Paralela ao desmatamento, vem a política consentida de extermínio dos indígenas e o descontrole da Funai, com o objetivo de facilitar a invasão das terras antes protegidas, favorecendo garimpeiros, contrabandistas, atividades de pesca e caça ilegais. O resultado foi o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, considerados culpados e irresponsáveis pelo presidente Bolsonaro.

O desmatamento intensivo e acelerado da Floresta Amazônica tem o objetivo de satisfazer aos grupos agropecuários, produtores de cereais e de carne principalmente para a exportação, mais lucrativa, sem levar em conta restrições ou proteções contra certos tipos de pesticidas prejudiciais ao consumo humano.

Enquanto mudava a política de proteção aos indígenas, Bolsonaro destruía por sua vez a Fundação Palmares e, na sequência, deixava queimar a Cinemateca Nacional e liquidava a Ancine. Na verdade, apesar da aparente desorganização dos ataques, o governo leva a cabo um projeto bem estruturado de destruição gradativa do país, para implantar uma outra organização privatizada, talvez inspirada no sistema norte-americano.

Sorrateiramente, foram sendo mudados os nomes de escolas, hospitais, estradas e mesmo de navios que pudessem lembrar antigos benfeitores do país. Escancaradamente, foram sendo mudadas as leis relativas à compra e posse de armas, não só com o objetivo de favorecer os grupos norte-americanos fabricantes de armas, como para ter à disposição civis armados e treinados em clubes de tiros, para garantir a permanência de Bolsonaro no poder.

Ao mesmo tempo, para garantir sua retaguarda, o governo Bolsonaro aumentou os salários dos policiais e militares e favoreceu a isenção de impostos para as igrejas e atividades por elas desenvolvidas. De um lado, prepara o apoio armado, no caso de reação ao seu projeto de permanência no poder, e do outro procura obter o apoio dos líderes religiosos que manejam e conduzem a manada dos fiéis religiosos, evangélicos na maioria.

O maior escândalo do fim do atual mandato de Bolsonaro é a emenda constitucional que, a pretexto de um auxílio de emergência, permite descaradamente a compra de votos dos eleitores mais pobres e menos informados. Entretanto, isso não significa um compromisso do presidente no sentido de respeitar o resultado das votações. Tudo isso não passa de uma cortina de fumaça para evitar uma derrota maior, pois como todas as entrevistas concedidas mostram, inclusive a de Flávio Bolsonaro com o Estadão, será sempre utilizado o argumento de que o voto eletrônico não é confiável. E como as eleições serão eletrônicas, ninguém precisa ser mago para prever, elas não serão validadas pelo atual governo.

A palavra pressentimento voltou à atualidade desde o telefonema de Bolsonaro ao seu ex-ministro Milton Ribeiro. Um pressentimento entre aspas, porque na verdade era um aviso real de busca e prisão. Assim, na verdade, meu pressentimento é de que Lula, Ciro e os outros estão se cansando à toa. O golpe já houve e será validado logo após a publicação dos resultados das eleições de 2 de outubro, que serão rapidamente anulados e, no caso de agitação nas ruas, reprimidos com decretação do estado de sítio.

Como no poema “No caminho com Maiakóvskii” nessa altura já será tarde demais para reagir. Agora, não se trata mais de se fazer campanha para ganhar as eleições, mas de se garantir o respeito ao resultado das eleições. A coisa é séria. Tenho maus pressentimentos, mas ainda é tempo para se preparar a resistência.

No Caminho com Maiakóvski”, de Eduardo Alves da Costa:
“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”

***

Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.