Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sem repórter na estrada, a cobertura das eleições virou um desfile de números

Faltam histórias na imprensa sobre o principal personagem da eleição: o eleitor. (Foto: Kássia Melo/ Pexels)

Já escrevi, publiquei e falei em minhas palestras. A maneira como estão sendo esmiuçados os números das pesquisas eleitorais pelas redações atingiu uma qualidade bem superior à de anos anteriores. O que tem facilitado a vida dos leitores. É do jogo os erros que ocorreram nas previsões da corrida presidencial no primeiro turno. Como já disse, eles acontecem nas melhores democracias do mundo. O grande problema da cobertura é que ela está limitada aos números. É sobre isso que vamos falar. Por quê? Vamos começar pelo início do problema.

Nos últimos anos aconteceram demissões em massa de jornalistas nas redações, e por ser esta uma eleição acirrada e de interesse em vários países ao redor do mundo o trabalho dos profissionais demitidos está fazendo falta. Porque eles davam a versão da população espalhada pelos rincões do país, de como estavam participando da disputa eleitoral. Esse profissional antigamente era chamado de “repórter estradeiro” porque estava sempre viajando. Hoje é conhecido como “em campo”, aquele que faz apuração presencial no local do acontecimento.

Há fatos que não estão sendo contados nas reportagens da inédita disputa entre o presidente da República, Jair Bolsonaro, que concorre à reeleição, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Um deles, que considero que não só sobreviverá depois das eleições como se tornará um problema de relevância: o crescimento da intolerância religiosa. Desde que os neopentecostais chegaram ao Brasil, no final da década de 70, se estabeleceram na periferia das grandes cidades e ali começaram uma guerra contra as religiões afro-brasileiras, como a umbanda e o candomblé, e os padres da chamada Teologia da Libertação, que defendia uma igreja comprometida com os pobres. O objetivo dos pastores neopentecostais eram se transformar na única referência religiosa na comunidade e, com isso, garantir a sobrevivência econômica da sua igreja através do pagamento do dízimo. Como sei disso? Fiz várias matérias sobre o assunto em diversas cidades do Brasil. O maior confronto dos pastores foi com as mães de santo, que até a chegada deles eram a autoridade religiosa máxima na comunidade. Os pastores venceram a disputa com as mães de santo nos estados do Sul e do Sudeste do Brasil. Um fato interessante.

No final da década de 90, o traficante carioca Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, dirigente do Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, fugiu de uma prisão em Minas Gerais e se refugiou na cidade paraguaia de Capitán Bado, separada por uma avenida de Coronel Sapucaia, município no oeste do Mato Grosso do Sul. Na época, fazia cobertura do crime organizado nas fronteiras e tinha informação de um colega carioca que a mãe de santo de Beira-Mar estava na região. Fiquei uma semana trabalhando em Bado e descobri que ele tinha trocado a mãe de santo por um pastor neopentecostal, com quem conversei várias horas durante uma noite. As religiões afro-brasileiras e os padres da Pastoral Carcerária tinham grande influência nos presídios. Hoje são os pastores neopentecostais.

Adisputa entre os pastores neopentecostais e as mães de santo ainda não terminou. Hoje o palco dessa rivalidade são os estados do Nordeste, principalmente a Bahia. Não foi Bolsonaro que inventou essa disputa. Mas ele a acirrou ao incorporar ao seu governo os pastores neopentecostais. O próximo presidente, seja ele quem for, vai ter um sério problema nas mãos com a questão da intolerância religiosa, podem anotar. Há outra história que está sendo esquecida. Se não é a primeira vez é uma das raríssimas que o preço do litro do diesel no Brasil é mais caro que o da gasolina. E, como sabemos, o transporte das mercadorias no país é feito por caminhões.

Em 5 de maio de 2022 fiz o post Jornalistas notaram que os caminhoneiros estão apanhando quietos? Onde questionei a carência de reportagens explicando os motivos pelos quais os caminhoneiros não fizeram uma greve. Lembrando que, por muito menos, em 2018 eles colocaram os brasileiros de joelhos com uma paralisação de 10 dias que deu um prejuízo de R$ 16 bilhões para a economia nacional. O que está acontecendo, eles descobriram uma formula mágica para trabalhar com o litro do diesel mais caro que o da gasolina? Tenho acompanhado os noticiários e não lembro de uma boa matéria feita nas estradas com os caminhoneiros e empresários do setor sobre o que estão esperando dessa eleição. O que estão pensando é assunto de interesse nacional.

Em junho, o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista brasileiro Bruno Pereira foram tocaiados e brutalmente mortos no Vale do Javari por bandidos ligados aos devastadores da Floresta Amazônica – há matérias sobre o assunto na internet. Os culpados foram presos e o assunto desapareceu das páginas dos jornais. Mas não passa um dia sem que se publique uma notícia sobre a fantástica velocidade do avanço da destruição da floresta, a invasão de garimpeiros nas terras indígenas e outros crimes. Tenho lido aqui e ali notícias sobre financiadores dos crimes ambientais estarem colocando o dinheiro sujo ganho nos garimpos na campanha eleitoral. Não lembro de ter lido nada mais aprofundado. Listei essas histórias que são citadas nas avaliações dos números feitas pelos comentaristas das pesquisas eleitorais. Mas elas são histórias grandes demais para serem apenas citadas. Precisam ser melhor explicadas e os seus personagens precisam contar a sua versão dos acontecimentos para os repórteres.

Os comentaristas políticos, os apresentadores dos programas e os escassos repórteres que participam da apresentação das pesquisas eleitorais estão fazendo um ótimo trabalho com as informações que têm a sua disposição. Mas se as grandes empresas de comunicação querem entrar para a história desse momento inédito, por vários motivos, na disputa eleitoral do Brasil, vão ter que colocar os repórteres na estrada. É simples assim, como dizia o então ministro da Saúde e na época general da ativa do Exército Eduardo Pazuello, responsável pela morte de mais de 400 mil brasileiros pela pandemia causada pela Covid-19. A história toda está contada nas 1,3 mil páginas do relatório final da Comissão de Inquérito do Senado da Covid-19, a CPI da Covid. Ele foi eleito deputado federal com 205.324 votos pelo Rio de Janeiro. A história da eleição de Pazuello ainda não foi contada.

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.