Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A tecnologia espalhou o discurso do ódio pelos rincões do Brasil

(Foto: Daniela Zigante, arquivo pessoal)

Mesmo nos anos de grande polarização na política nacional, como foram a década de 50 e o período da ditadura militar (1964 a 1985), os acordos entre lideranças políticas adversárias aconteciam nas eleições municipais das pequenas e médias cidades nos rincões brasileiros, conhecidos nos dias atuais como “Brasil profundo”, ou seja, longe dos grandes centro urbanos. Nessa próxima eleição municipal, em outubro, esta tradição corre o risco de desaparecer por conta da popularização da internet, dos celulares e das redes sociais. Como é essa tradição? E como ficará, caso desapareça? É sobre isso que vamos conversar. Vamos aos fatos.

No tempo em que trabalhei em redação (1979 a 2014), na maioria das vezes estava viajando no período eleitoral por conta de estar envolvido na cobertura de conflitos, geralmente uma ocupação de terras pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ou de garimpeiros em áreas indígenas, ou fazendo uma reportagem sobre o povoamento das fronteiras agrícolas ou sobre crime organizado nas fronteiras com os países vizinhos. Invariavelmente, nesses momentos eu recebia uma ligação do editor do jornal, pedindo que fizesse uma matéria sobre um pequeno município perdido no mapa para mostrar aos leitores como as coisas funcionavam naqueles longínquos lugarejos. Por conta disso, fiz matérias em várias cidadezinhas espalhadas pela maioria dos estados brasileiros. Por estar envolvido na cobertura de conflitos agrários, eu tinha noção de como as coisas funcionavam na disputa política nestes locais. Mesmo assim, precisava me informar para não escrever bobagem. Ainda não existia internet. Por isso, quando viajava para uma cobertura, era necessário acrescentar à bagagem livros, documentos e outras fontes de consulta para produzir a reportagem. Hoje é só apertar um botão no celular. O que aprendi é que, na década de 50 e até acontecer e se consolidar o golpe militar de 1964, a questão partidária no interior do Brasil era como se fosse uma religião. Era comum ser proibido o casamento entre filhos de pais de partidos diferentes. Escrevi sobre isso em um dos meus livros: A Saga do João Sem Terra (Editora Vozes, 1988). Na primeira meia dúzia de anos depois do golpe militar, a estrutura econômica nas pequenas cidades começou a mudar. Até então, tudo girava ao redor da produção agrícola, que era financiada pelos comerciantes locais que por sua vez abasteciam o comércio atacadista das cidades médias. No governo militar, para conseguir um empréstimo no banco, passou a ser necessário ter um “pistolão”, alguém de confiança do governo que indicasse a pessoa para o banco. Nos estados do Sul do Brasil, os principais atingidos por essa restrição no acesso ao crédito foram os seguidores do ex-governador gaúcho Leonel Brizola, na época uma figura nacional do antigo PTB e cunhado do presidente deposto pelos militares João Goulart, o Jango. No final dos anos 60 e início dos 70, várias lideranças brizolistas foram presas. Foi justamente entre os remanescentes destes líderes que, durante a decadência do governo militar, anos 80, renasceram os movimentos de luta pela reforma agrária, entre eles o MST.

Para abafar a luta pela reforma agrária nos estados do Sul do Brasil, os militares optaram por povoar as chamadas fronteiras agrícolas, que eram vastas áreas escassamente habitadas nos estados do Centro-Oeste e do Norte. A maioria das famílias de agricultores levadas para as fronteiras agrícolas era dos estados do Sul. Conto essa história em três livros chamados Brasil de Bombachas (publicados em 1996, 2011 e 2019). Essas migrações foram o marco final do Brasil profundo que se conhecia na época. Uma das heranças desse movimento é o que hoje chamamos de agronegócio. O que veio a seguir foi uma nova realidade política para as pequenas e médias cidades dos rincões brasileiros desenhada pela redemocratização do país, em 1985. Na época, ressurgiram antigos partidos que nada tinham a ver com a sua história, como foi o caso do PTB. E também brotaram do nada dezenas de novos partidos. Lá nas cidades do Brasil profundo, as siglas partidárias eram apenas letras. Conversando e convivendo com as lideranças políticas destas localidades aprendi que todo interesse girava em torno das necessidades da comunidade. Assim, se o governador fosse, por exemplo, do PT, e o presidente da República do MDB, a chapa para concorrer a prefeito teria na cabeça um candidato de MDB e como seu vice um do PT. Sempre que tivesse assuntos para a resolver em Brasília (DF) ou na capital do estado, o representante da prefeitura seria do partido que ocupava a cadeira. Era assim. Agora essa realidade está mudando. A nova realidade não nasceu com a polarização das eleições presidenciais de 2022 entre o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o atual, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O processo de mudança no perfil da disputa política municipal foi instalado com a popularização e o aperfeiçoamento da internet, do telefone celular e das redes sociais nas pequenas e médias cidades espalhadas pelos rincões do Brasil. Antes, as diferenças políticas, pessoais e futebolísticas entre os moradores eram tratadas dentro de casa. Hoje a “roupa suja” é lavada em público pela internet. Essa nova realidade desmanchou vários arranjos políticos locais. E o que surgirá no seu lugar nós conhecermos no final da eleição municipal.

No final de junho andei viajando pelas cidades da fronteira sul do território gaúcho. Ouvi relatos sobre jovens bolsonaristas e de esquerda trocando insultos nos bares. A imprensa precisa ficar atenta para descobrir qual será o desenho da disputa municipal nas pequenas e médias cidades. Uma coisa é certa. Não será mais como era antes, quando tudo acabava em um churrasco regado a cerveja e com uma pelada de futebol. Além das novas tecnologias terem tornado públicas as desavenças, nos dias atuais há um volume considerável de “discurso do ódio” enchendo os ouvidos das pessoas. Ou seja, tem tudo para dar problema.

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.