Desde 2011, quando comecei a escrever no Observatório da Imprensa, uma questão bastante recorrente em meus artigos é o antipetismo da mídia hegemônica, constituído pelo grande número de editoriais, reportagens e colunas dedicados a representar negativamente o Partido dos Trabalhadores e suas principais lideranças, principalmente os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff.
Lembrando o pensamento do filósofo marxista Antonio Gramsci, essa prática jornalística faz com que os principais grupos de comunicação do país se transformem em uma espécie de partido político das forças conservadoras; fator extremamente nocivo para uma sociedade que se pretenda minimamente democrática.
Evidentemente, como toda temática polêmica, minhas críticas ao antipetismo midiático suscitaram várias reações contrárias, em diferentes espectros ideológicos.
Para a direita, alertar sobre a seletividade dos noticiários, significa ser “petista”, “passar pano para bandido”, “relativizar casos de corrupção” e “doutrinação comunista”.
Já para a esquerda pequeno-burguesa, que busca, a todo custo, retirar do PT a hegemonia na esquerda nacional, meus textos são anacrônicos e não contribuem para o surgimento de novos nomes no campo progressista (como se bastasse lançar a candidatura de uma liderança de movimento popular construída artificialmente e daí surgisse, consequentemente, um novo Lula).
Pois bem, corroborando a hipótese do antipetismo midiático, no último mês de outubro, o cientista político da UERJ, João Feres Junior, lançou, pela Fundação Friedrich-Ebert-Stiftung Brasil, o estudo intitulado “Cerco midiático: o lugar da esquerda na ‘esfera publicada’”.
A partir da análise de editoriais e textos de opinião escritos entre 2014 e 2020 nos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, o trabalho em questão tem como objetivo compreender as estratégias de exposição e ocultamento adotadas pela grande imprensa brasileira no que toca a esquerda brasileira, com foco especial na cobertura dedicada ao PT e a suas principais figuras públicas.
Para tanto, a principal metodologia utilizada foi a “Análise de Valência”, que corresponde à classificação dos textos jornalísticos segundo sua posição em relação ao objeto noticiado como favoráveis, contrários, neutros ou ambivalentes.
A análise da cobertura de imprensa feita por Feres Junior revelou um viés expressivo contrário ao mandato presidencial de Dilma Rousseff, ao passo que Temer e Bolsonaro, quando também estiveram à frente do executivo federal, receberam tratamento bem mais benevolente, mesmo em seus momentos de maior crise — como as graves denúncias de corrupção oriundas da divulgação de gravação de conversa entre Temer e o empresário Joesley Baptista ou a maneira totalmente displicente com que Bolsonaro tratou a pandemia da Covid-19.
Durante a campanha eleitoral para a presidência da República de 2014, Dilma Rousseff foi, de longe, a candidata que mais teve inclusão negativa nos noticiários. Não obstante, essa exposição desfavorável aumentou de maneira geométrica logo após a eleição, contrariando, inclusive, aqueles que acreditam haver lua de mel para presidentes eleitos no Brasil.
Esse massacre midiático só diminuiu em meados de 2016, mais especificamente no mês de maio, quando a presidenta foi afastada pela Câmara dos Deputados.
Naquele ano, os jornais voltariam a devotar uma carga forte de cobertura negativa para Dilma em agosto, não coincidentemente quando o Senado aprovou o impeachment. Desde então, a intensidade da cobertura midiática caiu bastante, mas sempre preservando perfil marcadamente negativo, como que para sedimentar o enquadramento de “herança maldita” do governo petista.
De acordo com o estudo “Cerco midiático: o lugar da esquerda na ‘esfera publicada’”, a chegada do coronavírus ao Brasil marcou a virada do tratamento crítico dos jornais em relação a Bolsonaro. Mesmo assim, os níveis de negatividade das coberturas midiáticas não chegaram aos registrados no segundo governo de Dilma.
“Somente com a pandemia a cobertura do Governo Bolsonaro atingiu níveis de negatividade comparáveis aos do segundo governo de Dilma nos editoriais dos jornais. […] Foi preciso o fracasso retumbante do Governo do ex-capitão no enfrentamento da pandemia, com a demissão de dois ministros da saúde em plena crise sanitária, a nomeação de um general sem experiência médica para o posto e a ultrapassagem da marca de 100 mil mortes para que isso ocorresse”, destacou Feres Junior.
No entanto, as coberturas positivas em relação ao Ministro da Economia Paulo Guedes se mantiveram, demostrando que os principais grupos de comunicação do país continuam religiosamente comprometidas com a defesa do neoliberalismo e dos interesses dos capitais financeiro e agroexportador, em prejuízo dos setores mais desprivilegiados de nossa sociedade.
Em relação aos números da cobertura jornalística sobre Lula, o estudo demonstra que, em março de 2016 — quando o então juiz Sergio Moro ordenou a condução coercitiva de Lula para prestar depoimento e, dias depois, vazou gravação de chamada telefônica entre Dilma e o ex-presidente para a Rede Globo — Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo publicaram um total de 62 editoriais que eram, de alguma maneira, desfavoráveis a Lula, contra dois favoráveis e dois neutros. A média foi de um editorial contra o petista por dia, demostrando, assim, um posicionamento ferozmente contrário ao ex-presidente.
Em outras palavras, enquanto Lula tinha seus direitos civis e políticos violados pela ação da Polícia Federal, Judiciário e Ministério Público; a mídia, por sua vez, legitimou todo esse movimento, caracterizando o que a advogada Valeska Zanin já apontou como “conluio entre Mídia e Judiciário para demonizar Lula”. Típico exemplo de lawfare, isto é, o uso da lei para perseguição política.
O estudo de Feres Junior ainda destaca que, desde a eleição de 2018, os grandes jornais brasileiros adotam uma retórica da equivalência em seus editoriais, segundo a qual Jair Bolsonaro e seus seguidores representariam uma ameaça à democracia comparável a Lula e ao PT.
No entanto, o autor esclarece que essa narrativa que coloca PT e “o projeto fascista de Bolsonaro” como faces da mesma moeda (o extremismo) representa uma falsa simetria, pois o PT não cometeu crimes eleitorais pelo WhatsApp comparáveis aos atribuídos ao bolsonarismo e, quando esteve no poder, não ameaçou a liberdade de imprensa, ou tampouco colocou as instituições democráticas em risco.
No período pesquisado, Feres Júnior também identificou que os editoriais dos três jornalões analisados têm posicionamento político em tudo idêntico aos artigos e colunas de opinião dos jornais, mostrando que os periódicos tentam induzir a formação de opinião que lhes interessa ao representarem um debate de ideias que espelha em tudo as opiniões dos editorialistas.
Conforme bem apontou o jornalista Bernardo Kucinski, é como se a grande mídia contasse com um “editor invisível”, comum a todos os veículos, que reage sempre da mesma maneira em relação a determinadas temáticas (política brasileira, agenda econômica, movimentos sociais, geopolítica, etc.).
Nesse sentido, pluralidade de ideias, objetividade e a concessões de espaços para o contraditório são questões que ainda estão longe de serem contempladas pelos principais noticiários brasileiros.
Desse modo, o estudo de Feres Júnior conclui que, enquanto as grandes empresas de jornalismo continuarem a oligopolizar a produção de informação política em nosso país, cidadãos e cidadãs serão informados de maneira defectiva e tendenciosa, impedindo assim a existência de debates minimamente democráticos no espaço público brasileiro. Portanto, caso a esquerda algum dia venha a reganhar o poder no Brasil, inevitavelmente, terá que virar a face e encarar esse bicho-papão de frente.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Coordena a área de Geografia da Vicenza Acadêmica. Professor de Ciências Humanas do “Centro Educacional Edgar Sodré Azevedo da Apae”. Autor do livro 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático (Editora CRV).