Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A arte ou desastre da crônica?

Ora, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas ou das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas – sobretudo porque quase sempre utiliza o humor.

Assim escreveu Antonio Candido em seu ensaio A vida ao rés-do-chão, há mais de vinte anos. Infelizmente, esta visão está desaparecendo do mundo de muitos cronistas que não resistem à tentação de colocar um pé naquele território minado da chamada ‘imprensa-diário-oficial’.

Certas publicações da nossa grande imprensa estão tão desacreditadas com as suas opções preferenciais pela defesa incondicional de acusados de crimes econômicos, e tão empenhadas na desmoralização da chamada banda sadia jurídica, que, para sobreviverem, tentam apelar para o sensacionalismo, como fez recentemente a revista Veja, que colocou os Nardonis em sua capa, numa tentativa desesperada de dizer que não estava a serviço do crime. Outros jornais, como por exemplo, O Globo, ainda não desceram esta ladeira abaixo e tentam, como um equilibrista que anda em uma corda bamba, apoiar-se em um time de cronistas de primeira grandeza. Mas, as tentações de ‘entortar a pena’ são grandes e esta tática parece que começa a naufragar (ver, neste Observatório, ‘O jornalismo-diário-oficial‘ e ‘A redenção do governador‘).

Começar de novo

Muito me espantei ao ler a crônica do Zuenir Ventura intitulada ‘Não custa sonhar’, publicada no Globo em 10 de dezembro de 2008, justamente na data em que se comemorava o aniversário de 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e também no dia em que um PM acusado de chacinar o menino João Alberto de três anos de idade era absolvido – não pelo senso de justiça, mas pela concepção de que não seria um simples policial que pagaria o ‘pato’ por uma política de segurança do governador Sérgio Cabral de violência generalizada contra a população.

Nesta crônica, Zuenir Ventura tenta nos levar para uma falsa realidade com o anúncio do governador Sérgio Cabral de que o morro Santa Marta ficou livre do jugo dos traficantes – que não foram presos e agora assaltam os prédios da vizinhança. Ora, será que o nosso caro cronista não poderia pensar que se trata de mais uma dessas farsas de segurança, como as encenadas durante as eleições, durante os jogos Pan-Americanos e agora, recentemente, por ocasião da visita do presidente russo, com tanques de guerra na Avenida Brasil e helicópteros militares sobrevoando o bairro do Leblon? Será que o nosso caro cronista não anda pelas ruas, não lê jornais, não conversa com motoristas de táxi, não vê a contravenção atuar livremente pelas esquinas, nunca estacionou um carro e sentiu-se lesado pelas máfias criminosas que controlam os estacionamentos? Será que o nosso cronista não leu que milhares de pessoas desapareceram, foram assassinadas ou mortas pelas tais de balas perdidas somente nos dois anos de governo de Sérgio Cabral?

Bem, não vamos exigir reposicionamento político de ninguém, afinal de contas estamos em uma democracia e, além do mais, os defeitos e virtudes de todos se aguçam com a idade. Mas em nome da pureza da crônica, tão bem apresentada por Antonio Candido, que tal a releitura dos centenários artigos que José de Alencar escrevia semanalmente para o Correio Mercantil no seu, vamos dizer assim, espaço, intitulado ‘Ao Correr da Pena’, quando a crônica não era crônica propriamente dita, e sim, um folhetim?

Se a política corrompe, a pureza da literatura e da crônica engrandece e vale a pena começar de novo.

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Físico e escritor, Rio de Janeiro, RJ