A TV Globo perdeu as três últimas eleições presidenciais.
Essa é uma afirmação aparentemente inverossímil porque, como sabemos, a TV Globo não é um partido político, mas uma empresa de comunicação; um conglomerado, melhor dizendo, que explora o espectro radioelétrico aberto e fechado, além de editar também jornais, livros, CDs, revistas.
Por outro lado, um partido político é o que o nome diz, literalmente: instituição criada para representar parte da sociedade, logo parte dos interesses das diversas classes sociais existentes num país ou noutro. É assim que é possível dilatar o sentido de partido político porque, quer queiramos ou não, todos nós, mesmo inconscientemente, tomamos partido e de forma passiva e ativa somos partidos políticos, para além dos rótulos ou das instituições sociais produzidas para falar em nome de.
É nesse sentido que a TV Globo perdeu as três últimas eleições porque, para além das classificações institucionais – que no geral servem para despistar – a TV Globo é, por excelência, o partido político brasileiro do capitalismo mundial, ainda que disfarçado de neutro sistema de comunicação, embora seja, a bem da verdade, o sistema de comunicação partidarizado do poder econômico global.
Inviabilizar o futuro
A TV Globo, como todo poder econômico, não tem pátria, logo não é brasileira; é transnacional e está programada a tomar o partido do centro financeiro do mundo. É nesse sentido que ela é um partido politico midiático a serviço de Wall Street, das multinacionais, da indústria bélica e, por extensão, da cultura americana, como âncora bélica comunicacional da expansão colonizadora do capital imperialista.
É por isso mesmo que a TV Globo está intrinsecamente contra os interesses da população brasileira, do povo pobre do Brasil porque ela é um partido político comunicacional da colonização/exploração das riquezas existentes no Brasil, as que interessam ao modelo produtivo parasitário do atual capitalismo global: as riquezas advindas da diversidade étnico-cultural brasileira, as riquezas energéticas, as da biodiversidade de nossa flora e fauna; as riquezas, enfim, que fazem desta região do mundo, onde habitamos, um dos mais fascinantes locais do planeta, por ser uma região de ativos minerais, culturais, energéticos, étnicos, estéticos, intelectuais, eróticos, biológicos; por, enfim, podermos nos tornar, se coletivamente assim decidirmos, a experiência civilizatória da única humanidade viável no planeta Terra: a humanidade da biodiversidade, da alegria do encontro, da festa de existir coletivamente, singularmente.
O Brasil, pelo bem e pelo mal, é o futuro de todo o mundo, que deve brasilizar-se, pois somos o mundo em nós. Qualquer outra humanidade, no planeta – não brasilizada, não misturada, não comum, não coletivizada – é impraticável. É por isso que o futuro revolucionário, inclusivo, coletivo, do Brasil, é igualmente o futuro possível de toda a humanidade. Nosso aborto, como povos de presente e de futuro, é o igual aborto de todos os povos do planeta, como povos igualmente presentes e futuros.
Esse é, pois, o partido tomado pela TV Globo: inviabilizar o futuro exemplar do povo brasileiro, de povo-mundo, de povo para o mundo, de povo comum, singular em sua multiplicidade, orquestrada para incluir, cuidar, plantar, amar, viver, celebrar, coletivamente, para além de qualquer fundamentalismo econômico, étnico, cultural, religioso. Sob o ponto de vista do imperialismo global, o povo brasileiro – e qualquer outro povo do mundo – não pode fazer-se livremente; não pode multiplicar suas singularidades e potencialidades, expandindo-as para o bem comum; não pode, enfim, expressar sua infinita beleza benfazeja.
Partido do imperialismo
Eis aí o traidor papel do partido político de extrema-direita brasileiro chamado TV Globo: inviabilizar as potências expressivas do povo brasileiro, abortando-as e domesticando-as em múltiplas frentes: a cultural, a social, a estética, a comportamental, a científica, a econômica, a eleitoral.
É por isso que a TV Globo entra de sola em todas as campanhas eleitorais como o partido oficioso do partido político, num dado contexto histórico, que mais incorpora os interesses do capital imperialista. É igualmente por isso que a TV Globo hoje é o principal partido não oficial a serviço do PSDB porque o PSDB é esse partido da plutocracia imperialista, hoje, no Brasil, embora o PT, se prosseguir no caminho que está tomando, rapidinho tomará mais esse lugar do PSDB. É ainda por isso que a TV Globo não pode deixar de partidarizar, como partido do imperialismo, as eleições brasileiras, especialmente as presidenciais porque, mesmo perdendo, ela, de alguma forma, incorpora vitórias porque em menor ou maior grau passa a ocupar a agenda política do novo governo, governando o Brasil indiretamente, ainda que não hegemonicamente.
É aqui que entra a autopropaganda eleitoral antecipada da TV Globo, que está em descarada campanha política, não oficial, para presidente do Brasil. Globo 2014, para presidente! A TV Globo está em campanha eleitoral por três motivos básicos: 1) ela não é o partido hegemônico, mesmo que oficioso, hoje, do Brasil; 2) ela disputa, em campanha eleitoral permanente, a agenda política do governo Dilma com o objetivo de impor o seu ritmo;3) ela se prepara antecipadamente para a próxima eleição para presidente do Brasil porque não é hegemônica hoje e pretende sê-lo no futuro próximo, além do fato de sua propaganda eleitoral antecipada ter a vantagem de incorporar, por tabela, o primeiro e o segundo motivos explicitados, simultaneamente.
É esse último ponto que pretendo analisar mais detidamente neste artigo. Eis que retomo, pois, o argumento inicial, expandindo-o: a TV Globo perdeu as três últimas eleições porque o PT não era – e ainda se espera que continue não sendo – o partido político do imperialismo americano, ao qual a TV Globo está naturalmente vinculada.
Soluções dispersas e fragmentárias
Após, assim, mais essa derrota eleitoral, a cúpula de comando da TV Globo se reuniu e traçou o plano de campanha eleitoral antecipada para a próxima eleição para presidente do Brasil. Antes de traçar esse plano, a cúpula global fez mea culpa e procurou verificar, em sua programação da era Lula, o motivo pelo qual ela de repente notou que não conseguia dialogar diretamente com o povo brasileiro, especialmente considerando a seguinte questão: como é possível um perfil como Lula falar mais fundo e diretamente com o povo brasileiro que a própria TV Globo em conjunto?
A partir dessa questão, a programação da TV Globo começou a ser reprogramada e essa reprogramação é que responde pelo nome de campanha eleitoral antecipada da TV Globo para presidente do Brasil: Globo 2014! Por isso, o principal objetivo da nova programação eleitoreira da TV Globo é o de reconquistar o povo brasileiro, especialmente o nordestino. Para tal, ela já está utilizando – e utilizará cada vez mais –, as seguintes estratégias demagógicas em sua grade de programação:
O objetivo da programação local da TV Globo, já em pleno andamento, é o de transformar o jornalismo editado pelas filiais de cada estado da federação em jornalismo do tipo “prestação de serviços gerais” para a população, através de profissionais ou âncoras simpáticos e geralmente jovens, prontos a informar e a cobrar (com largos sorrisos ou carrancudas teatrais bocas) a oferta de emprego da capital de tal ou qual estado; os cuidados médicos dos pais com os filhos de até dois anos de idade; a situação do trânsito, os cuidados com a alimentação; receitas para emagrecer com saúde, os buracos nos passeios do centro da cidade, os bolos da vovó e assim por diante. Trata-se do jornalismo cujo estilo, não sem ironia, pode ser assim chamado: “demagógicas pequenas notícias, grandes negócios eleitorais”.
É precisamente aí, nesse estilo demagógico, que a TV Globo pretende, a partir de sua programação local, instituir-se como mediadora-mor entre o poder público municipal e estadual e a população, a fim de, em processo, incorporar mais prestígio perante a população, que tenderá – esse é o objetivo – a ver a TV Globo como uma espécie de padre do e no confessionário noticioso dos dramas cotidianos do povo abandonado do Brasil, embora ela não tenha intenção alguma de colaborar para o fim efetivo desse abandono histórico, posto que sua função mediadora é demagógica e só produz catarse ou teatro de soluções de problemas coletivos porque são soluções, quando se efetivam, sempre dispersas e fragmentárias, além de alienadas das reais causas históricas do abandono da população brasileira.
A salvadora da pátria
Esse mesmo estilo de jornalismo, de tipo prestação de serviços gerais, fará parte, em menor e maior medida, de todos os programas da TV Globo: jornalismo, novelas, programas de auditório, de esporte, entretenimento. Existe uma compreensão acertada, por parte de seus dirigentes, de que a população brasileira é carente de informações básicas, pela simples razão de que o Estado brasileiro, com suas instituições elitistas, não tem oferecido os serviços básicos de que a população brasileira necessita. É por isso que a TV Globo está acreditando, como estratégia demagógica, nesse estilo de programação, tecido e entretecido com informações básicas para a população brasileira, abarcando a área de saúde, de educação informal e formal; de esporte, de trabalho; de monitoramento superficial da sucateadas instituições públicas, como as da saúde, as da educação, do sistema de transporte e o sem fim de outras.
Toda a programação da TV Globo doravante encenará situações diversas nas quais o povo simples, pobre, de diversas regiões do Brasil, aparecerá, ora como vítima de toda sorte de carências; ora como protagonista de pequenas ações e atitudes heroicas. O que poderia ser uma mudança de orientação significativa e necessária da TV Globo, cuja programação geral detém uma dicção nitidamente classe-mediana, é, no entanto, manipulação, demagogia e sedução hipócrita, por dois motivos básicos, a saber:
1) Porque tais demagogias e manipulações constituem formas de apresentar e representar a população pobre não como população ou classe social que vive situações de exploração de extrema violência, em função de uma estrutura social hierárquica, racista, segregacionista, cuja causa ou razão de ser está diretamente relacionada com o fato de vivermos na periferia do sistema-mundo, na qual e através da qual o que prevalece é um sistema produtivo baseado naquilo que Marx chamava de acumulação primitiva de capital, o que significa dizer, concretamente, que a miséria do povo brasileiro – mas não apenas – é a miséria comum de quem é, em carne e osso, em vida, o rosto abandonado da acumulação primitiva do capital: moenda ou biocombustível humano para o centro do lucro imperial.
Seria, obviamente, pedir demais à TV Globo que considerasse o modelo de produção vigente do capitalismo brasileiro para apresentar e representar as causas do abandono da população, sua miséria e sofrimento. Por isso mesmo, como é impossível a consideração das causas estruturais do abandono de nossa população, tendo em vista o modelo de produção extrativista do capitalismo brasileiro, a TV Globo só pode se aproximar da população brasileira demagogicamente, representando-a não como classe social, mas a partir de perfis isolados, através dos quais pais de família, mães, filhos; ou essa ou aquela família, em conjunto, será ou serão objeto de toda sorte de demagogia ou manipulação, de modo que suas isoladas histórias são e serão utilizadas para provocar choro, comoção, sempre tendo a própria TV Globo como salvadora da pátria, como justiceira, como acorre no programa Caldeirão do Huck, no qual essa ou aquela família, escolhida a dedo, obtém finalmente a conquista de sua casa própria, com Luciano Huck como o novo benfeitor global, demagogia barata que esconde, por exemplo, o abatimento que a TV Globo faz em sua declaração de Imposto de Renda a partir de suas altruístas intenções ou, em última instância, das empresas que publicitariamente financiam a demagogia global.
Dramatização demagógica
Antes de tudo, enfim, o que quero ressaltar é isto: a TV Globo é agora uma TV falsamente popular de sorte que esta é a sua palavra de ordem; seduzir o telespectador, representando demagogicamente – e de forma isolada – o povo brasileiro como passivo, eis o paradoxo, protagonista da nova grade, literalmente considerada, grade, cadeia da programação geral da TV Globo.
A atual novela das seis, Cordel do Reino encantado, com a cultura nordestina como pano de fundo, é parte da demagogia eleitoreira da TV Globo, uma parte que não é exceção, mas regra geral. A TV Globo é o Pedro Álvares Cabral do Brasil atual; ela está “redescobrindo o Brasil” a fim de colonizá-lo e tomá-lo não apenas para si, mas antes de tudo para entregá-lo ao abandono histórico de país colonizado, submisso e rendido, como se fosse a sua vocação natural.
É aqui que entra o segundo motivo pelo qual a programação eleitoreira da TV Globo, de aproximar-seduzir-induzir o povo brasileiro, constitui-se como descarada demagogia e manipulação cínica, que é:
2) Se a intenção da TV Globo, com sua campanha eleitoral antecipada, é a de constituir-se hegemonicamente como o centro manipulador do histórico abandono colonizado da população brasileira, sua demagogia ou estratégia eleitoral só pode fundar-se na lógica religiosa da caridade, no velho estilo medieval do catolicismo, razão pela qual povo bom é povo abandonado, humilhado, alienado, ignorante e empobrecido, pois assim fica mais fácil induzi-lo e cooptá-lo, bastando, para tanto, uma esmola informativa aqui, no jornalismo local; outra esmola noveleira ali, na programação nacional; ou ainda outra esmola de auditório, também na programação nacional, através da dramatização demagógica do drama encarnado do abandono do povo – encarnado na história testemunhal isolada de João, Maria, Joaquim, como representantes do povo, sem conectá-la às causas históricas do abandono, motivo pelo qual o abandono sempre nos será apresentado como fatalidade, destino, infelicidade, má-sorte na vida, mas nunca como injustiça causada por um modelo econômico de exploração do qual a TV Globo não apenas sempre foi beneficiária como antes de tudo existe, desde sua fundação, para garantir a sua perpetuação pelos tempos e tempos, amém.
Tio Sam nos salvará
Por outro lado, como toda estratégia de poder, de dominação, tem dois lados, um primeiro que passa pelas vias da democracia burguesa, logo pela demagogia; e outro, caso não funcione a via democrática, isto é, demagógica, pela força bruta, como a de golpes militares, a TV Globo tem também seu Plano B, caso não consiga reconquistar hegemonicamente o poder no Brasil. Esse Plano B também já faz parte de sua programação atual e tenderá aprofundar-se cada vez mais, em consonância ou relação de simultaneidade com sua campanha eleitoral antecipada. O Plano B da TV Globo é, como não poderia deixar de ser, golpista e tem como estratégia outra e sinistra forma de propaganda: a do imperialismo americano, como salvador do mundo, logo como possível salvador do Brasil.
Para tanto, a TV Globo, dentre outras estratégias, cada vez mais transmitirá filmes americanos de vocação imperialista na Sessão da Tarde e em outros horários diários, e não apenas nos finais de semana, como ela fazia antes. Tais filmes são escolhidos a dedo, pois foram produzidos precisamente para apresentar os Estados Unidos como bons, como democráticos, como magnânimos, como salvadores do mundo. O objetivo explicitamente oculto da TV Globo, nesse caso, é o de procurar fazer com que a população brasileira, ou as nossas difusas classes médias, acostumem-se com a possibilidade, sempre no horizonte, de uma invasão americana direta ou indireta, através do apoio econômico e logístico a novos golpes militares, senão concretamente no Brasil, em alguns países da América Latina, como a Venezuela, por exemplo.
Esse Plano B é baseado na mais antiga e cafajeste forma de dominação e funciona como recurso possível e necessário – sob o ponto de vista da dominação –, motivo pelo qual sua lógica está ancorada na seguinte premissa ou missa colonizadora: “Caso não funcione o circo midiático global, com suas estratégicas molas de esmolas, para alienar o povo de si mesmo, façamos uso da paulada!”
Convoquemos o Grande Irmão, Tio Sam, que nos salvará dessas trevas e nada mais! As trevas, bem entendido, para eles – logo para a TV Globo – porque a nossa liberdade expressiva, nosso direito de existir com dignidade, sem mediação demagógica, de si para si, é a pior treva para os donos do mundo, por potencialmente constituir-se como o paraíso na Terra de um mundo sem donos, de todos e ninguém, como a poesia, água de todos e de ninguém; como a vida, tanto mais primaveril quanto mais florimos, sem nome próprio, sem roubo da riqueza comum, sem muros, livres de demagogias e de pauladas.
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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]