Quando menos se espera a imprensa traz uma notícia boa sobre o Rio que não inclui os traficantes, as milícias, as extorsões, o campo de guerra avesso da Cidade Maravilhosa. Começou com a capa da revista da Folha de São Paulo (23 a 29 de agosto), “Deu Rio de Lavada”, quando a pesquisa Datafolha revelou o Rio como destino número 1 dos paulistanos.
No índice, lá está o Rio indicado como melhor destino de réveillon, de verão, de qualidade, de preço, melhor destino turístico e atração nacional. Não dava para acreditar. A revista de O Globo ainda esperou até o mês passado para embarcar. Na capa, “Rio, a Cidade que Virou Grife”. E então os cinemas estouraram com “Chico-Um Artista Brasileiro”.
O documentário de Miguel Faria Jr é um retrato (não em branco e preto, mas também) do melhor do Rio, quando a cidade começa a se espelhar na história das suas vitórias, sem lixo nem fracassos. O Rio embalado sob o som que fez o Brasil surfar nas melhores ondas, quando Nelson Motta não declarava (Época, 7/12/2015) “é difícil achar algo nessa nebulosa de lixo sonoro…”.
O que não deu para entender foi o título do Estadão (26/11/2015) ao anunciar “Chico Paulista”, afirmando que o filme é a ligação deste Buarque de Holanda com São Paulo. E depois dizem que bairristas são os cariocas. Parece o comentário que ouvi de um jornalista da Folha quando Chico lançou o show “Carioca” em São Paulo. “Não gostei , o show é muito….carioca!”
Parece que recomeçou o nosso clima Fla X Flu. Os cariocas rapidamente divulgaram nas rede sociais o estudo feito pela Organização Mundial de Saúde, financiado pela FAPESP, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, revelando São Paulo, a cidade que mais cresce, como campeã em doenças mentais no mundo, a ansiedade em primeiro lugar.
E apontaram a saída, relaxar em Búzios, Angra, Paraty, Petrópolis, nas festas da cidade, lembrando que até o Manifesto do Pau Brasil foi lançado por Oswald de Andrade num jornal carioca, o Correio da Manhã em 1924, onde o irreverente antropofágico pontificava “o carnaval é a religião da raça”. E o réveillon? Darcy Ribeiro elogiava “nunca cansei de admirar o poderio fantástico dos negros do Rio de Janeiro que reinventaram Iemanjá para a passagem do ano, desalojando essa bobagem nórdica do Papai Noel”.
O auto-aplauso carioca
É verdade que muita coisa encolheu desde que Tom Jobim cantava a música “Carta ao Tom” de Vinicius e Toquinho, “…Ipanema era só felicidade…”. E que Carlos Leonam na coluna Cariocas (quase sempre) da Carta Capital relembra toda semana sua síndrome das saudades (9/12/2015). O Rio estava humilhado, envergonhado, diminuído, enciumado pelo crescente amor dos paulistas por São Paulo e as odes ao melhor da cidade, como a recente edição especial da revista Época, com a oferta de melhores restaurantes, melhores food trucks, melhores bares, cinemas etc…
Gregório Duvivier, filho de dois cariocas queridos, os músicos Olivia Byigton e Edgar Duvivier, deu de bandeja na Folha a crônica “Triste Balneário“ (8/9/2014), cutucando a ferida aberta das nossas diferenças. “…Enquanto em São Paulo a polarização se dá entre o PT e o PSDB, no Rio é entre o tráfico e a milícia…O Haiti não é mais aqui. Ao contrário do Rio, o país mais pobre da América já saíu da guerra civil…Já o Rio…”. O remorso veio do próprio Duvivier na semana seguinte (15/09/2014), “Desculpa São Paulo”….” em minha defesa: sou carioca. O ufanismo é uma tradição local, assim como o biscoito Globo, o mate de galão e aquele atraso de meia horinha. A cidade que inventou o aplauso do por-do-sol popularizou o autoaplauso,,,o cancioneiro popular carioca é uma sucessão de autorreverências: o Rio de Janeiro continua lindo…”
Parece que o Fla X Flu antigo entre Rio X São Paulo rola mesmo à solta. A Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro lançou um guia cultural bi-lingue com 411 páginas de “caminhos cheios de bossa por um estado com muita raça e talento” (paths full of Bossa across a state of great talent and power), embora os gringos nunca se convenceram de que a cidade estava acabada.
Circulou pela internet o texto anônimo de um paulista:
“O Rio de Janeiro é a minha Paris. Eu não sonho com a tal da torre, nem me importo com o Louvre e nem acho do cacete tomar café naquela tal de Champs-Élysées. Eu acho charmoso ir a praia de Copacabana, tomar cerveja de chinelo no Leblon e ir a um samba numa grande escola. Sou paulista, nunca tive rivalidade bairrista em casa. Nunca me ensinaram a odiar o estado vizinho, ao contrário, sempre me foi dada a ideia de que estando no Brasil, estou em casa. Ouvi mil mentiras e outras mil verdades sobre o Rio enquanto morei em São Paulo. Todas justas no final das contas”. E continuava a radiografia, “carioca exagera tudo, não marca encontro, em cinco minutos são amigos de infância, o bairrismo deles é único, é o povo mais brasileiro que há. Faça planos para amanha, esqueça-os dez minutos depois”…
Há 15 anos, a americana Priscilla Ann Goslin lançou o manual How do Be a Carioca (Livros Two Can Ltda), dando aulas de carioquice, ensinando o jeitinho, o vocabulário, os romances na cidade. Este ano a correspondente francesa Marie Naudascher lançou Les Brésiliens (HD, ateliers Hery Dougier) explicando a quem pertence as favelas, o que são os puxadinhos, quem foram os franceses que pensaram o Brasil desde o Jean Auguste-Debret, que nos pintou, ao etnólogo e fotógrafo Pierre Verger, passando pelo positivista Auguste Comte que queria “o amor como princípio, a ordem como base, o progresso como meta”, o filósofo espírita Allan Kardec e o antropólogo Claude Lévi-Strauss.
Da melhor safra de cronistas brasileiros, como Sergio Porto, Antonio Maria, Rubem Braga, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, a editora Agir lançou há dez anos “A Crônica de uma Cidade, O Rio é Assim” reunindo artigos de Carlinhos, o José Carlos Oliveira, que encantaram os cariocas e 1953 a 1984.
A enciclopédia de Ipanema
Mas não há nada mais imbatível do que os 231 verbetes de “Ela É Carioca (uma enciclopédia de Ipanema)” do mineiro-mais-carioca Ruy Castro, que acaba de lançar “A Noite do Meu Bem”. Vem de Ruy o caminho mais curto para se chegar ao documentário “Chico-Artista Brasileiro”, uma emoção de ser carioca e de ter vivido, atuado, cantado, encenado, escrito o melhor do Rio nas últimas décadas, corado com uma declaração de amor (“sempre quis morar no Rio…”). Sem rasgos, como fazem os cariocas.
E vem o Caderno 2 sequestrar o filme com o título “Chico Paulista“, forçando no lead o que deve dar alguns minutos dos 115, “ o documentário expõe a conexão de Chico Buarque com São Paulo…”? Quando tudo o que o filme expõe é a cidade carioca, além da história de muitas passeatas, muita censura, alguma concessão com rima – em “Partido Alto” a palavra brasileiro foi censurada e o verso foi transformado, “na barriga da miséria nasci batuqueiro”.
Miguel Faria Jr, numa entrevista a Roberto Dávila semana passada explicou porque, depois do documentário sobre Vinicius, escolheu Chico, “nosso artista contemporâneo mais completo, que vem nos comovendo há várias gerações”.
“Mudança de comportamento…Está na memória de todo mundo um Rio mais harmônico e feliz, quando não tínhamos arrastões nem milícias…Era a vontade de continuar essa trajetória através dos artistas, Vinicius e Chico”. Nostalgia, mudança de comportamento…
Chico na música “Paratodos“ dedica uma linha à sua origem paulista, mas não deixa dúvida:
“O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Vou na estrada há muitos anos
Sou um artista brasileiro”