As civilizações, como a nossa, fundadas em divisões hierárquicas de classe e castas, possuem um sistema político-tecnológico de visão – que é também econômico, simbólico estético, jurídico, religioso – programado para tornar visível a tudo que confirme, naturalize e eternize as posições de classe de seus diversos grupos sociais, ao mesmo tempo em que deixa no limbo ou torna invisível, deslegitimando, tudo que pode ser uma ameaça à sua autoprogramação interna para estabelecer os lugares de quem pode e de quem não pode tornar-se, não sem ironia, um verdadeiro pretendente a constituir-se como parasita da riqueza coletivamente produzida.
Nas sociedades ou civilizações de base teocêntrica, como as pré-modernas, por exemplo, a estratégia entre o mostrável e o não mostrável valia-se do horizonte mitológico do invisível e a fim de conferir prestígio ao déspota e sua família, visíveis apenas à distância. A estratégia, assim, era: mostrar a família real à distância, através do exibicionismo, da pompa, do luxo, da festa e do ritual, ao mesmo tempo em que o cotidiano da corte era cuidadosamente escondido ou tornado invisível.
Quando Édipo rei, em peça homônima do teatro grego antigo, descobre, a propósito, que tinha se casado com sua própria mãe, Jocasta, e matado seu pai, Laio, rei de Tebas, ele não hesitou um único segundo porque imediatamente perfurou com o botão da roupa os próprios olhos, impondo-lhe a cegueira como autopunição imediata. Com isso, Édipo rei não apenas se recusou a enxergar a sua própria miséria como, antes de tudo, impôs a si mesmo, mais que uma autopunição, um alívio, pois cego, não iria ver que sua miséria seria vista por todos. Com sua cegueira, Édipo rei continuaria invisível, agora para si mesmo, pois não poderia suportar ver-se exposto, como qualquer mortal, às iras do comum destino trágico, que atinge igualmente aos súditos e aos soberanos.
Aparições subjetivas terceirizadas
Na nossa civilização, por sua vez, não é diferente, em termos absolutos, das pré-modernas, no que diz respeito ao jogo entre presença/ausência daqueles que detêm o poder de fato. Na verdade, é até pior. Basta dizer, a propósito, que não sabemos e praticamente nunca vemos os verdadeiros invisíveis donos do mundo. Eles não apenas são invisíveis, para o comum dos mortais, como sequer precisam do dispositivo da distância para se mostrarem, mitologicamente. São, pois, soberanos invisíveis, tanto mais presentes em nosso cotidiano quanto mais não sabemos quem são, como são e, antes de tudo, quanto mais, por consequência, não participam disso que chamamos de democracia burguesa, pois simplesmente não são eleitos.
Aqueles que mandam no mundo, eis o óbvio, não são eleitos e estão, assim, além da rotina eleitoral do voto. Não existe democracia para eles e o que chamamos de democracia nada mais é do que um complexo dispositivo de mediação a serviço dos invisíveis soberanos da atualidade. Obama, nesse sentido, não é o poder, mas uma mediação “democrática” que tem como objetivo falar em nome de, sendo supostamente eleito para tal, sem, no entanto, ser o verdadeiro soberano.
Aqueles que encarnam as mediações da democracia burguesa, como Obama, constituem o rosto ou o sistema de rosto que visibiliza a soberania, sem serem, obviamente, os soberanos de fato. Eles são eleitos para, assim, tornar invisíveis os verdadeiros soberanos. Eis por que a soberania ou a tirania atual terceiriza as suas aparições subjetivas, para não serem mostrados, não serem eleitos, não serem objeto de jurisprudência alguma, estando, todos eles, portanto, além do bem e do mal, pois, como um sistema, não têm identidade, endereço; são transcendências.
O epicentro gravitacional
É precisamente nesse contexto que entram os oligopólios midiáticos planetários: para se fazerem como a mediação virtual da não presença real da soberania no mundo contemporâneo. É por isso que as encarnações midiáticas – os mediadores, sob a forma de famosos astros do cinema e da televisão; sob a forma encarnada de jornalistas, comentaristas, esportistas, modelos – são bem pagas: para encarnarem virtualmente e ilusoriamente os soberanos da atualidade, deixando-os transcendentalmente livres para continuarem impondo as tiranias de suas invisíveis visíveis formas de dominação.
A esse respeito, é bastante curiosa e perspicaz a forma como a atual novela das 9, da TV Globo, Insensato Coração, encarna virtualmente a presença fictícia da soberania ao estilo global, carioca; estilo que não passa de mais uma variável de mediações invisíveisdos invisíveis soberanos do mundo, aqueles que não são mediações de ninguém, pois são o próprio centro solar do soberano e divino poder atual.
Em Insensato Coração, escrita por Gilberto Braga e Ricardo Linhares, a soberania tem nome próprio, sem pompa e possui uma singela encarnação feminina, a personagem Vitória Drumond, representada pela atriz Nathália Timberg, centro de um verdadeiro sistema heliocêntrico de soberania, pois, como o sol, constitui o epicentro gravitacional em relação ao qual giram os outros personagens, os quais, embora não façam parte da família Drumond, gravitam em torno desta com um único objetivo: fazer parte dela, encarnando eles também a soberania, como fictícia mediada presença ofuscada.
Destino trágico
É aí que entra a ofuscação que esse sistema heliocêntrico engendra: na cegueira dos personagens que lutam para fazer parte da família Drumond. Trata-se de uma luta de classes às avessas, pois aqueles que gravitam em torno da família central devem brigar entre eles como ritual de passagem para se transformarem em sol, em soberania, abandonando o inseguro, vulnerável e arriscado lugar gravitacional; de satélites do sol.
Essa luta de classes às avessas, ofuscada, nada mais é que uma mediação necessária para ser reconhecido como verdadeiro pretendente a receber o calor do sol Vitória Drumond. O tema inconsciente da novela Insensato Coração é este, pois: a produção de uma narrativa de ficção em que a luta de classes consciente – na qual e através da qual o oprimido sabe identificar o opressor e se organiza para desoprimir-se – é substituída por uma alienada luta de classes ofuscada, tal que os oprimidos brigam entre si, especialmente se considerarmos os irmãos Leonardo Brandão e Pedro Brandão, os quais, neste momento da novela, estão em plena luta para se apresentarem como verdadeiros pretendentes a se consorciarem – para não dizer, se casarem – com a neta preferida da matriarca solar: a personagem Marina Drumond.
Vencerá a batalha, como sabemos, aquele que for mais fiel ao sistema solar da ficcional presença da soberania Drumond. Vencerá, assim, aquele que respeita e está ofuscado pelo sol da soberania, não tendo pretensão alguma de produzir o seu próprio sistema solar, pois todo aquele que se aproxima do sol da soberania recusando a ofuscada mediação, querendo ser o centro de outro sistema, é visto como falso pretendente e terá, por consequência, um destino trágico, como será o caso tanto do banqueiro Horácio Cortez e de seu fiel escudeiro, Leonardo Brandão.
O sistema solar da soberania
Assim, se o tema inconsciente, estratégico, da novela em questão é a luta de classes ofuscada, às avessas, de oprimido contra oprimido, é óbvio que o mal jamais pode ser histórico, logo jamais pode ser entre oprimido e opressores ou mesmo visivelmente entre oprimidos e oprimidos. O mal não pode de forma alguma encarnar-se nos personagens reais da luta de classes real, sem mediação, sem presença virtual, sem metamorfose ou despiste. O mal deve ser dramatizado, assim, ficcionalmente, na novela, através de sua naturalização e individuação, como se ser mau fosse uma questão de destino. O embate entre os irmãos Pedro Brandão e Leonardo Brandão constitui, pois, uma luta de classes às avessas tal que o que está em jogo é saber qual deles é o mal absoluto, a-histórico.
Se o embate da luta de classes às avessas ocorre entre irmãos é porque o objetivo é destacar que, mesmo tendo a mesma formação e, logo, as mesmas chances, fatalmente um deles, Leonardo Brandão, nasceu mau, inevitavelmente, como um destino. É por isso, por ser intrinsecamente mau, que Leonardo Brandão tem que pagar por todas as perversidades que cometer, sem perdão, até porque ele não tem conserto: é mau e ponto final.
É aqui que entra o invisível visível tema da novela Insensato Coração: o mau é o oprimido, esse incorrigível, histórico e infiel que de uma hora para outra pode se expandir para outras galáxias, sobretudo quando adquire consciência de classe para perceber que o sistema solar da soberania não é o centro do cosmos – e nem da Terra – e, ainda que, por covardia, se esconda, é de carne e osso, como nós.