PARTIDARISMO
Gilson Caroni Filho
Aplausos censurados, o desespero da mídia
‘Em recente viagem a Genebra, o presidente Lula foi ovacionado ao discursar no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Depois, foi aplaudido seis vezes ao criticar o Consenso de Washington e o neoliberalismo na plenária da OIT. O silêncio da grande imprensa foi gritante.
Os governos militares censuravam a imprensa para impedir a denúncia de torturas, de escândalos administrativos e quaisquer notícias que evidenciassem as crises e a divisão interna do regime. A censura política das informações, institucionalizada pela Lei de Imprensa e pela Lei de Segurança Nacional, foi um dos pilares de sustentação da noite dos generais. Esse era o preço imposto pela ditadura.
Passados mais de 20 anos da redemocratização, com a crescente centralidade adquirida no processo político, a grande mídia comercial tomou para si o papel de autoridade coatora. Sem qualquer pretensão de exercer papel decisivo na promoção da cidadania, não mais oculta seu caráter partidário e deixa claro quais políticas públicas devem permanecer fora do noticiário.
A construção negativa da persona política de lideranças políticas do campo democrático-popular tornou-se o seu maior imperativo. Invertendo a equação da história ‘republicana’ recente, há seis anos a imprensa passou a censurar o governo. Esse é o preço imposto pelo jornalismo de mercado; pelas relações de compadrio entre redações e oposição parlamentar, e pela crise identitária dos que foram desmascarados quando se esmeravam para definir qual era a ‘democracia aceitável’.
Com o esgotamento do modelo neoliberal, sentindo-se cada vez mais ameaçada como aparelho privado de hegemonia, a edição jornalística já não se contenta mais em subordinar a apuração ao julgamento sumário de fatos e pessoas. Censurar registros que sejam incômodos aos seus interesses político-econômicos, deslegitimado uma estrutura narrativa viciada, passou a fazer parte da política editorial do jornalismo brasileiro.
Em recente viagem a Genebra, o presidente Lula foi ovacionado ao discursar no Conselho Nacional de Direitos Humanos da ONU. Depois, segundo relato da BBC, ‘ foi aplaudido seis vezes’ ao criticar o Consenso de Washington e o neoliberalismo na plenária da OIT. O silêncio dos portais da grande imprensa e a ausência de qualquer referência ao fato nas edições da Folha de São Paulo, Globo e Estadão foi gritante.
Representou o isolamento acústico dos aplausos recebidos. Uma parede midiática que abafa o ‘barulho insuportável’ na razão inversa com que ampliou as vaias orquestradas na cerimônia de abertura dos Jogos Pan-Americanos em 2007, no Rio de Janeiro. Nada como um aparelho ideológico em desespero.
Se pesquisarmos as raízes do comportamento dos meios de comunicação, veremos que elas nos dirão o quanto já é forte a desagregação da ordem neoliberal a qual serviram desde o governo Collor, passando pelos dois mandatos de FHC. Durante doze anos (de 1990 a 2002), a sociedade civil sofreu rachaduras sob os abalos devastadores da ‘eficiência’ de mercado. Elas afetaram a qualidade da história, as probabilidades de uma República democrática e de uma nação independente.
Lula aparece como condensação das forças sociais e políticas que se voltaram para a construção de um novo contrato social. O tucanato, com apoio de seus porta-vozes nas redações, figura como ator que tenta reproduzir o passado no presente, anulando ganhos e direitos sociais. O que parece assustar colunistas, articulistas e blogueiros é o crescente repúdio á truculência infamante que produzem diariamente. Salvo, claro, a parcela da classe média que tem no denuncismo vazio e no rancor classista elementos imprescindíveis à sua cadeia alimentar. Aquele restolho que costuma pagar a ração diária com comentários insultuosos, sob a proteção do anonimato.
É preciso ficar claro que estamos avançando. Ou os de cima aprendem a conviver com os de baixo, ou como na fábula da cigarra e da formiga, poderão descobrir o arrependimento tarde demais. Seria interessante para a própria imprensa que trocasse os insultos de seus escribas mais conhecidos pelo debate verdadeiramente político. Aquele que busca compreender as condições sociais, políticas, culturais e econômicas de uma modernização que, por não promover exclusão, representa revolução democrática combinada com mudança social. Isso inclui aplausos, mesmo que abafados.’
FAROESTE MIDIÁTICO
O Brasil, a mídia e a proliferação nuclear
‘Depois de estranhar em dezembro de 2008 o destaque dado ao desenvolvimento da energia nuclear na Estratégia Nacional de Defesa anunciada pelo governo Lula, nossa mídia prestou-se na primeira quinzena de janeiro de 2009 ao papel de veículo da pressão de um governo Bush enfraquecido e em fim de mandato – mero ‘pato manco’ agonizante, golpeado ainda por uma derrota eleitoral humilhante. A análise é de Argemiro Ferreira.
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Terá o episódio exagerado a proximidade entre os meios de comunicação do país e os interesses da superpotência estrangeira em conflito com os do Brasil? Vale a pena encarar a situação no momento em que os mesmos veículos ansiosos para anistiar os crimes da ditadura (de que foram cúmplices) vêem com suspeita o atual compromisso dos militares com a democracia e a defesa dos interesses nacionais.
Ou é legítimo, nesse contexto, o faroeste midiático atribuir papel de guardiã da paz e do desarmamento à superpotência invasora do Iraque? Tenho dúvidas; a mídia não. Ela condena a resistência do Brasil em aderir ao Protocolo Adicional (ao Acordo de Salvaguardas do TNP, o tratado de não proliferação nuclear). Ignora os interesses do país e insinua culpa de militares obcecados em ter a bomba-A.
A disputa em torno do desenvolvimento da energia nuclear é menos simplista do que sugere o cacoete desse jornalismo de aliar-se a interesses de fora. Os países sem armas nucleares sofrem restrições em suas pesquisas – punidos por terem aceitado firmar o TNP. Índia, Paquistão e Israel ignoraram o TNP e construiram bombas atômicas – agora são paparicados e privilegiados com acordos especiais.
Bomba-A e interesses comerciais
Em 1998 essa mesma mídia aplaudiu o governo FHC por submeter-se à pressão e assinar o TNP. Já então, a pretexto de que o Iraque de Saddam Hussein tinha violado o tratado ao criar um programa nuclear oculto, os EUA ensaiavam exigir que os ‘sem bomba-A’ (não detentores de armas nucleares) aderissem ainda a um Protocolo Adicional destinado a ampliar as restrições, controles e inspeções.
Inexistente antes, o protocolo tem de ser negociado agora com cada signatário do TNP mas não imposto. Os países ‘sem bomba-A’ sofrem limitações nas pesquisas, que a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) faz cumprir com inspeções. E os donos de arsenais nucleares, que deviam reduzí-los até a total eliminação, ao invés de cumprir sua parte sofisticam suas armas, o que agrava o problema por tornar o uso mais viável.
O compromisso do Brasil, pelo TNP e por sua Constituição, é com o uso pacífico da energia atômica. Além de atuar como poucos em favor da causa do desarmamento nuclear, sua tradição pacífica é reconhecida. Mas não pode abrir mão da tecnologia nuclear. E afirma a necessidade estratégica de desenvolvê-la e dominá-la, o que inclui hoje o projeto do submarino de propulsão nuclear.
Em 2004 um editorial da Folha de S. Paulo propôs rendição singular, a pretexto de ser ‘transitória’ a existência de duas categorias de países (com e sem bomba-A): o governo brasileiro devia aderir, ‘como decisão soberana’, ao Protocolo Adicional, e ao mesmo tempo ‘pedir’ avanços pelo desarmamento. Dos 190 que assinaram o TNP só 82 aderiram ao protocolo. Muitos temem que os EUA eternizem seu arsenal ‘transitório’.
E há os interesses comerciais: o crescente mercado mundial de urânio enriquecido movimentou US$18 bilhões em 2001. Além de dono da 5a maior reserva natural de urânio, o Brasil tem tecnologia própria de centrifugação, desenvolvida por seus cientistas ao longo de 27 anos. Para protegê-la a sala das centrífugas na Fábrica de Combustível Nuclear (FCN) da INB em Resende é protegida com painéis durante as inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
A cruzada pelo Protocolo Adicional
Os interesses dos países donos de arsenais nucleares são obviamente diferentes dos países ‘sem bombas-A’. A hipótese de espionagem industrial em inspeções da AIEA sobre a tecnologia inovadora do Brasil foi descartada assim pela Folha: os ‘EUA ou qualquer outra grande potência’ não precisam disso porque podem recorrer à espionagem ‘clássica’. Ou seja, o editorial subestimou a hipótese como remota.
Quem acompanha as páginas internacionais sabe que no Iraque, antes da invasão de Bush, a CIA usava a UNSCOM, equipe de inspeção da ONU – primeiro chefiada pelo sueco Rolf Ekeus (até 1997), depois pelo australiano Richard Butler (até 1998) para espionar. O inspetor Scott Ritter, ex-fuzileiro dos EUA e veterano da guerra do Golfo, criticou os dois, acusando-os de aceitarem o jogo da CIA.
Na mesma linha do editorial da Folha, o do Estado de S.Paulo quatro dias depois negou haver razão que justifique a não adesão ao Protocolo Adicional. Alegou ser do interesse do Brasil ratificar o compromisso com o desenvolvimento pacífico da energia atômica, evitando ao mesmo tempo atritos com as grandes potências empenhadas em impedir a proliferação nuclear. Esqueceu a FCN e o mercado de urânio.
Alguns meses depois dos editoriais, o secretário de Estado de Bush, Colin Powell, veio ao Brasil e ouviu explicação do ministro Celso Amorim, de que o país tinha o dever de proteger sua tecnologia, desenvolvida por cientistas brasileiros. Depois, em entrevista à Veja, Powell minimizou o que Folha e Estadão maximizaram. O Brasil, disse, não preocupava os EUA, e não devia ser comparado a Irã e Coréia, apesar do ‘desacordo momentâneo’ com a AIEA.
Uma entrevista muito estranha
Mas a Folha voltou ao ataque a 9 de janeiro de 2009, em matéria assinada pelo chefe da surcusal de Brasília, Igor Gielow. ‘Os EUA cobraram ontem (dia 8) a adesão do Brasil ao chamado Protocolo Adicional’, dizia o texto. Não ficou claro se a ‘cobrança’ era iniciativa americana, usando a Folha como intermediária, ou se viera por acaso, premiando uma solicitação de entrevista feita pelo jornal.
Quem dava a entrevista era o embaixador Gregory Schulte, que representava os EUA não no Brasil mas na AIEA e outros organismos com sede em Viena Gielow omitiu (de propósito?) se o diplomata respondera a perguntas, se falara em Brasília (estaria ali por alguma razão?), se a entrevista fora por telefone ou se mandara respostas por email a perguntas enviadas a Viena.
Como o próprio jornalista caracterizou a entrevista como ‘cobrança’ dos EUA, seria oportuno informar como ela ocorrera – cara-a-cara, por telefone, troca de emails ou qualquer que tenha sido a situação. Seria uma tentativa de intimidação do governo brasileiro? A dupla Bush-Cheney, afinal, sofrera derrota eleitoral e vivia seus últimos momentos na Casa Branca (restavam ao dois apenas 12 dias)
Pelo relato da Folha, Schulte ‘cobra’ a adesão do Brasil porque os EUA aderiram. Mas o protocolo é adicional ao Acordo de Salvaguardas (artigo III do TNP), só aplicável (impondo obrigações) aos ‘sem bomba-A’. Os EUA têm a faculdade de escolher (ou não) instalações suas a serem inspecionadas. Os ‘sem bomba-A’ não; só têm obrigações. E rígidas. A AIEA é que decide o que vai inspecionar – e como.’
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