CASO TIM LOPES
Maurício Thuswohl
‘Há exatos quatro anos foi assassinado o jornalista Tim Lopes. O triste aniversário é praticamente ignorado pela mídia e até agora mereceu lugar somente em pequenas notas nos jornais ou em brevíssimos comentários nos telejornais. Assim como quase tudo que um dia virou notícia, a agonia de Tim após ser capturado por traficantes de drogas na favela Vila Cruzeiro (Complexo do Alemão, zona Norte do Rio de Janeiro) no dia 2 de junho de 2002 deixou aos poucos de causar comoção nacional e foi caindo no esquecimento popular, suplantada pela sucessão sem fim de tragédias cotidianas.
Coincidentemente, no mesmo dia em que a morte de Tim Lopes é relembrada com dor e revolta por familiares, amigos e colegas de trabalho, os jornais do Rio trazem em suas edições fotos de seus próprios repórteres, acuados atrás do célebre Caveirão (carro blindado utilizado pelo Batalhão de Operações Especiais da PM do Rio), durante intenso tiroteio entre policiais e traficantes. A batalha aconteceu no Morro da Providência, a um quilômetro do centro financeiro do Rio, e surpreendeu as equipes de reportagem que, em plena luz do dia, acompanhavam o Bope numa investida para cumprir mandados de prisão. O jornal O Globo traz até mesmo um relato em primeira pessoa da excelente repórter Cristiane de Cássia, onde ela revela que nem os cursos de aperfeiçoamento que fez ou os dez anos de experiência acumulados na cobertura policial carioca a livraram de sentir muito medo de morrer enquanto o barulho das balas se tornava cada vez mais próximo.
Pensando no susto vivido por Cristiane e os demais colegas e na martirização de Tim, percebo que nada mudou nesses quatro anos no chamado ‘jornalismo policial’ dos principais veículos brasileiros. A cobertura, mais do que nunca, se concentra no relato diário dos crimes, execuções e demais barbaridades comuns às principais cidades do Brasil. Esse relato sempre vem acompanhado de um subtexto editorial que serve a perpetuar tanto o medo das classes alta e média quanto a estigmatização dos pobres e favelados, em nada contribuindo para solucionar verdadeiramente o problema da violência ou apontar para a efetivação de uma política de segurança pública séria no país.
No dia-a-dia, a relação da imprensa com a estrutura policial corrupta é baseada na hipocrisia. Mesmo pra lá de manjadas, as execuções periódicas que a polícia promove nas favelas sempre geram notícias que trazem a versão da própria polícia sobre o ‘auto de resistência’. As mães dizendo que seus filhos mortos eram trabalhadores também estão sempre lá, mas a cobertura policial dos grandes jornais brasileiros acostumou o leitor ao dito pelo não dito. Para o cidadão que recebe as notícias, é difícil distinguir o que é mentira e o que é verdade, impossível diferenciar nas entrelinhas do texto o traficante fortemente armado morto em confronto do inocente executado com tiros a esmo ou à queima-roupa. O jornalismo policial brasileiro é um jornalismo baseado mais em versões do que em fatos.
Somente situações excepcionais, como a recente matança em São Paulo ou as Candelárias e Carandirus da vida, são capazes de instigar a grande imprensa a tratar a questão da violência pela ótica dos direitos humanos. Mesmo assim, os sintomas da ‘doença’ são passageiros e a cobertura policial sempre acaba voltando rapidamente ao ‘normal’. A relação hipócrita dos principais veículos de mídia com a polícia e com a própria notícia policial é uma questão de cultura editorial há muito enraizada. Os repórteres policiais, na linha de frente e tendo a própria polícia como principal fonte e proteção, pouco podem fazer para alterar essa realidade. O trabalho deles, diga-se de passagem, é digno de louvor porque exige coragem e jogo de cintura.
LEMBRANÇAS
Eu trabalhei com Tim Lopes no jornal carioca O Dia, em 1991 e 1992. Naquela ocasião, eu começava minha carreira como estagiário no popular periódico da Rua do Riachuelo e ele já era um repórter considerado no meio profissional. Trabalhei durante mais de um ano na editoria de Geral, que misturava as notícias da cidade (os chamados fatos diversos) e as notícias de polícia. Era na Geral que geralmente militava Tim, e tive a oportunidade de ver seu bom trabalho de perto. Dizer que ficamos amigos seria exagero, mas tomamos algumas cervejas no bar em frente ao Dia nos dias de pescoção (plantão noturno para adiantar o jornal de domingo) às sextas-feiras. Era um cara muito gente-boa e humilde com os que estavam começando, como eu. Nordestino, era carioquíssimo. Por conhecer a cidade e todas as suas manhas, sacava suas pautas e fazia suas grandes reportagens. Tim não tinha nada de bobo.
E, mesmo assim, ele infelizmente deu bobeira, há quatro anos, lá no bale funk da Vila Cruzeiro. O facínora Elias Maluco, comandante da sessão de tortura e do assassinato de Tim, foi preso, mas as responsabilidades pela morte do jornalista só serão assumidas com o tempo. Talvez preocupada com possíveis transtornos judiciais, a poderosa TV Globo, onde Tim trabalhava quando morreu, fez da sua transformação súbita em mito midiático uma cortina de fumaça para evitar questionamentos espinhosos. Passados quatro anos, no entanto, a pergunta não quer calar: o que fazia Tim Lopes só e desprotegido à mercê dos bandidos quando já se sabia que uma reportagem anterior, na qual ele filmara traficantes anunciando cocaína aos berros no mesmo Complexo do Alemão, gerara revolta no chamado Comando Vermelho?
Porque entre nós, jornalistas, corria a boca pequena a história do motoboy da Globo que morava no Alemão e havia sido seqüestrado por traficantes para revelar quem estava por trás da matéria ‘feirão das drogas’, exibida no programa dominical Fantástico meses antes. As imagens da matéria, captadas com uma microcâmera escondida, foram feitas em plena boca de fumo na favela da Grota, provavelmente num movimentado fim de semana, e mostrava os bandidos oferecendo ‘pó de cinco’ e ‘pó de dez’ aos berros no meio de uma praça. Filmados de perto, vários traficantes foram presos depois que a Globo exibiu com estardalhaço as imagens que, acho, foram até premiadas. Nesse momento foi assinada a sentença de morte de Tim Lopes.
Quem é carioca e não passou a vida encastelado nos condomínios erguidos para as elites está cansado de saber que há muitos e muitos anos as drogas são oferecidas em total liberdade nas maiores favelas vendedoras do Rio, como Mangueira, Acari, Rocinha e Complexo do Alemão, entre outras. Repórter policial experiente e cascudo, Tim sabia disso também. A cocaína sendo oferecida aos berros ao lado de uma padaria, como mostrado nas imagens feitas na Grota, só era novidade e escândalo para parte do público classe A atendido pelos telejornais da Globo. Foi para atender a sede de espetáculo desse público que o Fantástico, praticando um jornalismo policial sem qualquer responsabilidade social, acabou involuntariamente jogando seu repórter na cova dos leões.
Quando Tim morreu, eu já não o via há alguns anos. Pouco tempo antes da tragédia, um jornalista, amigo comum, falou que ele estava correndo atrás de fazer umas matérias de meio ambiente para o Globo Repórter, para diversificar. Segundo esse amigo, Tim reclamou do pouco espaço que tinha na emissora. Apesar da excelência de seu trabalho como repórter, contou que não estava nas faixas mais altas de salário. Por ser mulato, baixinho e gorducho, lamentava-se, também não teria chance à frente das câmeras. Sobrou pra ele a difícil e arriscada cobertura policial, feita longe dos holofotes e sem qualquer glamour. Causa-me revolta o fato de o rosto amigo de Tim só ter merecido lugar de destaque no noticiário global após ele ter sido brutalizado da forma como foi.
Foi a necessidade de trabalhar, crescer profissionalmente e encontrar espaço para o seu bom jornalismo que fez Tim deixar de ouvir a voz que certamente ecoou no seu coração de bom malandro e aceitar a furada de ir filmar traficantes. Foram esses mesmos motivos que, creio eu, o fizeram voltar ao Complexo do Alemão mesmo quando já se sabia que Elias Maluco estava à caça dos autores das imagens que levaram os comparsas à prisão. O que não tem explicação é o fato de, em nome de uma pauta sensacionalista, deixarem o jornalista, o ser humano, desprotegido e à mercê de seus algozes como estava Tim naquela noite de junho de 2002.
Foi em conseqüência de um jornalismo policial preconceituoso e hipócrita, voltado para alimentar a paranóia da ‘elite branca’ e transformar a desgraça cotidiana das favelas em espetáculo midiático, que Tim Lopes morreu. É lamentável que nossos barões da mídia tenham preferido mitificar Tim ao invés de assumir sua parcela de culpa. A grande mídia ignora qualquer possível aprendizado com as lições tiradas desse episódio trágico. Quatro anos depois da morte de Tim, as balas voando sobre a cabeça dos repórteres no Morro da Providência provam que nada mudou.
Maurício Thuswohl é editor de Meio Ambiente e correspondente da Carta Maior no Rio de Janeiro.’
VIOLÊNCIA EM SP
O choque midiático, os boas-vidas e o crime, 30/05/06
‘Como seria melhor começar um artigo sobre os últimos incidentes de violência urbana ocorridos em São Paulo? Seria correto dizer, como a grande mídia, que a capital do estado mais rico do país e, por conseqüência o próprio país, foram sacudidos por notícias de violentos atos de brutalidade criminal contra a polícia? Comentar o fato de que a violência criminosa foi precedida por atos que ajudaram a alimentá-la? Ou afirmar que a igualmente violenta reação policial vitimou inocentes, quase na mesma proporção dos envolvidos?
O que seria melhor falar? Concordar com o governador que, inesperadamente e surpreendentemente, lembrou dos privilégios dos boas-vidas, em confronto com a miséria, sempre crescente, que é parte inseparável do esplendor paulista? Ou reclamar, como as grandes mídias fizeram, do descalabro operacional das forças da lei e da ordem, e da ‘vitória’ do crime contra a cidade? O que seria mais importante? Dizer que história de sempre se repetiu, morreram os pobres dos três lados (polícia, bandido e gente comum) e que os que mais reclamaram nada sofreram?
Onde foram os incidentes? Onde circulam as linhas de ônibus que tiveram veículos queimados? Quem são os mortos deste conflito urbano? Algum boa-vida sucumbiu? Suas propriedades mais caras foram afetadas? Por que a cidade parou? Foi um efeito dos crimes e do medo gerado pelo noticiário? O que choca as pessoas? Seria o fato de existirem milhões em São Paulo, desempregados, que vivem em estado de insegurança alimentar, ou a existência de alguns milhares que se dedicam ao crime? Por que é mais fácil retirar o sinal de uma antena localizada nas proximidades de um presídio, do que impedir que os celulares entrem e lá sejam usados?
Parece mais racional escrever ponderando sobre o elevado grau de espetacularização midiática feita a partir dos fatos citados. Os grandes veículos destacaram e aumentaram alguns dos seus aspectos e esconderam outros. Não discutiram, de modo sistemático, as raízes profundas do que de fato ocorreu. Seria oportuno comentar fatos objetivos, tal como os dos 140 mil presos paulistas, dos quais um pequeno número pode ser considerado de alta periculosidade? Ou seria justo imaginar que todos são organizados e oferecem um perigo real?
Hoje, fica difícil saber o que de fato ocorreu. Será que alguém tem interesse nisto? As luzes das mídias brilham mais do que o sol. A emoção coletiva é uma especialidade das mídias contemporâneas, que investem muito nesta forma de espelhar o que ocorre, ‘esquecendo’ a incômoda realidade material circundante. Provocar a catarse funciona como uma injeção de glicose na veia. De acordo com as práticas das grandes mídias de nosso tempo, a verdade não está nos fatos e, sim, em sua construção e divulgação. A notícia corriqueira já é construída assim, imagine-se o que acontece nas mídias quando os problemas são maiores.
Existiram atentados, não há qualquer dúvida sobre isto. Para serem verossímeis, as grandes mídias não podem simplesmente mentir. Precisam trabalhar com elementos concretos da realidade material. Nada impede que se exagere, se distorça e se omita. Construir a notícia é trabalhar um leque de opções provenientes das concepções de mundo acalentadas pelos veículos e seus sujeitos. Estas servem como filtros do que se deseja descrever.
Fazer o espetáculo midiático implica tratar da realidade em sentido contrário, virando-a de ponta à cabeça. O que vimos mais uma vez foi a imensa capacidade das mídias de construir choques coletivos. Estes direcionam a atenção do público para o que deve ser acreditado como verdade, de acordo com os desejos das forças econômicas e políticas que as dirigem.
O público chocado tem no medo a sua primeira reação humana. Mas este medo é do que? Os segmentos mais pobres deste público sabem, que nestas situações, são eles os realmente mais prejudicados. Correm para se proteger, porque sabem que o sistema os considera culpados, antes mesmo de nascerem. Fogem da fúria dos modernos Herodes e de seus centuriões. Sabem que correm perigo também com os de má-vida, que já se perderam e quase sempre não distinguem os seus alvos.
Luís Carlos Lopes é professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (Niterói, Rio de Janeiro) e membro do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação dessa universidade. Pós-doutorou-se em Comunicação pela Universidade Paris 1 (Sorbonne), sob a orientação de Philippe Breton (2004), e doutorou-se em Ciências (História) pela Universidade de São Paulo (1992).’
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