Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Agência Carta Maior

MÍDIA & POLÍTICA
Flávio Aguiar

Cuidado: Big Sister está de olho em você, 24/08/07

‘Não se sabe ainda o desfecho da aceitação das denúncias do Procurador da República contra os quarenta acusados no caso do suposto (porque não provado) ‘mensalão’. Mas isso não importa muito na mídia conservadora: a avaliação está traçada. Cada aceitação de denúncia será saudada como se fora uma condenação. Cada não aceitação (como já aconteceu num dos casos em que José Dirceu era acusado de desvio de dinheiro público) será recebida com muxoxo ou nem será citada.

Mas há uma novidade neste caso. Essa novidade foi a divulgação de fotos das telas de dois ministros do Supremo, enquanto mantinham uma conversa privada.

O caso despertou polêmica: pode, não pode? O argumento mais curioso sobre o caso foi o de que nada de errado houve na obtenção das fotos, nem na sua divulgação, pois tratam-se de figuras públicas (juízes) num espaço público (o Supremo Tribunal Federal). Nada, ali, seria ‘privado’, mas tudo seria ‘público’.

O processo informativo padrão consiste numa produção de mercadoria (a informação). A rigor, isto se dá num espaço que em parte é concessão de serviço público. Mas gera lucro privado, daí a busca do sensacionalismo das manchetes e das ‘revelações’. O raciocínio de que no espaço público os indivíduos possam ser devassados de qualquer jeito, sem direito a momentos de privacidade, não protege o caráter público do espaço, apenas o abre de par em par para que tudo, nele, possa ser apropriado como informação (mercadoria) e tratado de acordo com os interesses de quem faz a apropriação, a mídia.

Não se trata, veja bem, leitora/leitor, de algo da mesma natureza, por exemplo, da transmissão da conversa entre o então ministro Rubens Ricúpero e do jornalista Carlos Monfort, no estúdio da Globo, quando o ministro confidenciava a estratégia de ocultar certos fatos e divulgar outros para favorecer a reeleição do governo. Se a ministra do Supremo e o ministro fossem flagrados arquitetando mani ou minigâncias para fraudar o julgamento, isso seria um furo sensacional. Mas tratava-se de uma conversa privada sobre ainda a possível posição de um outro ministro, que, no caso, também teve sua privacidade devassada e invadida.

O caso me lembra mais visita que fiz a antigo prédio da Stazi, a polícia política da antiga Alemanha Oriental, na cidade de Halle, onde me mostraram as câmeras ocultas nos banheiros… dos funcionários e funcionárias da própria Stazi! Além do aspecto escatológico e de devassidão sexual, havia a idéia de que ali tudo era passível de espionagem.

Aqui, no caso do Supremo, fica a idéia de uma nova cordialidade à brasileira, pós-moderna. Diz o velho costume secular da cordialidade que o espaço público é e deve ser invadido permanentemente pelos afetos e desafetos privados. Nessa nova versão, o espaço público não é garantido por um respeito aos direitos dos indivíduos que, mesmo ali, têm direito sim a momentos de privacidade. Não, como tudo no espaço público pode ser apropriado de qualquer jeito para se transformar em informação (mercadoria) de finalidade política imediata pela mídia, mesmo que comprometa a imagem da instituição (não só dos personagens), conclui-se que nessa visão esse espaço ali existe como pretexto para o processo de mercadagem que caracteriza o mundo da mídia.

Agora, pergunta-se: o fotógrafo, que lá estava, e captou a imagem, cometeu algum crime? Certamente não. O crime está na espetacularização da política, que tomou conta da mídia e das próprias instituições desde a inauguração deste caso do ‘mensalão’, com CPIs, depoimentos, acareações, tudo virando enredo de uma fantástica tele-novela, cujo enredo é tentar garantir que um governo popular jamais tenha nova chance no Planalto.

O que se deve pensar é se cabem fotógrafos da mídia privada (da esquerda também, quero frisar) numa sessão do Supremo Tribunal Federal. Não se estão debatendo leis, estão se julgando cidadãos por crimes e delitos que possam ter cometidos. Os juízes não poderiam, ou não deveriam, virar peões no jogo político do sensacionalismo midiático.’

***

Folha de S.Paulo – 2: Agora, o beijo, 23/08/07

‘Depois de avacalhar a imagem do Presidente da República no dia de ontem, com a foto dele e de sua esposa aparentemente com algo malcheiroso nas mãos, o capista da Folha de S. Paulo de hoje voltou ao ataque. Desta vez o míssil lançado contra o indesejável ocupante do Palácio do Planalto (aos olhos do capista e do jornal) foi uma foto do Presidente aparentemente de novo beijando a Ministra Nilcéa Freire na boca. A cabeça da legenda dizia: ‘aquele afago’.

Sinceramente, é uma pouca vergonha. Mas não tem jeito: parece que o capista deu-se um senso de missão, de alguma forma dentro da linha editorial do jornal, de por em tela atitudes aparentemente vexatórias do Presidente. A do dia de ontem raiava o absurdo, porque deslocava o sentido da própria foto, em que o Presidente experimentava uma amostra de biodiesel, para aparentar que ele cheirava algo de odor desagradável. Isso numa página em que circundavam a foto manchetes sobre o caso Renan, o suposto mensalão cuja denúncia chegava ao Supremo, e sobre o caso Anac.

Agora nem isso existe: o propósito político simplesmente se resume a publicação de uma foto que evidentemente visa criar constrangimento público e privado para o Presidente. Nem se sabe da origem da foto, se foi coincidência, se o beijo existiu de fato assim como sugerido nela, etc. Com certeza o capista aderiu à nova teoria jornalística de Ali Kamel, da TV Globo, segundo a qual o jornalismo deve ‘testar hipóteses’ ao invés de averiguá-las.

Ninguém tem obrigação de gostar do cidadão Lula, ou das políticas de seu governo. Muito pelo contrário: aqui mesmo na Carta Maior as críticas a políticas de seu governo são constantes, sobretudo na área econômica, nas contemporizações, na histórica lacuna de uma política de comunicação, pelo menos nos anos anteriores, na lentidão quanto à reforma agrária, etc.

Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Uma coisa é discordar e atacar políticas. Outra é avacalhar a imagem do Presidente. Isso só rima com a idéia de que afinal, esse é o Presidente que ‘esse povo’ (o nosso) merece. Porque afinal, para esse tipo de mentalidade, ele (o nosso povo) não sabe votar. É a mentalidade de quem se achava, até o final de outubro de 2006, uma pedra no lago, para descobrir-se um alfinete num dedal.’

Gilson Caroni Filho

Os latifúndios que se alimentam, 20/08/07

‘‘Toda vez que um justo grita

um carrasco o vem calar.

Quem não presta fica vivo,

quem é bom mandam matar.’

Cecília Meirelles

Nada como um mergulho no passado recente para mostrar a importância de uma nova mídia como contraponto fundamental a qualquer projeto contra-hegemônico. A imersão conservadora da imprensa brasileira produziu, nos últimos anos, subtextos dignos de figurar como peças pobres do realismo mágico. Não pela magnitude estética, mas pelo mergulho no absurdo. Sem a grandiosidade estilística de um Gabriel García Márquez, a Macondo do jornalismo brasileiro é uma ficção pobre, travestida de discurso objetivo. Não se propõe a contar a história de qualquer cidade mítica, mas a ocultar os interesses de Arcádios Buendía, que impõem seus desmandos há mais de três séculos de solidão.

Foi o que ocorreu há quase 4 anos.O período transcorrido não esmaece significados precisos.Enquanto 600 delegados de 70 países participavam, em Valencia (Espanha) entre 4 e 8 de dezembro [4-8/12/2004], do Fórum Mundial de Reforma Agrária (FMRA), os jornais brasileiros preferiram ignorar o evento ou a ele dedicar apenas breves registros anódinos. Fingiram não ver o ato inaugural de uma nova articulação expressiva. Pela lógica editorial predominante, os debates em plenárias e as oficinas sobre mazelas e limites do modelo agrário hegemônico não foram dignos de figurar em folhas que só avalizam as chamadas ‘reformas agrárias de mercado’.

Do ponto de vista jornalístico, o silêncio sobre o Fórum não encontrou qualquer justificativa que não esbarrasse nos surrados critérios classistas do que deve ser notícia. Afinal, lá estavam Miguel Rosseto, então ministro do Desenvolvimento Agrário, e representantes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrárias (Incra) – duas entidades governamentais responsáveis pela promoção de uma nova ordem fundiária.

Relevância política doméstica era o que não faltava. A grande ausente, tanto nas editorias de política quanto nas de economia, era disposição para confrontar reflexões de matizes distintas daquilo que é reiterado dia após dia, na batida monocórdia do pensamento único.

Como destacou o semanário Brasil de Fato, reproduzindo avaliação do reitor da Universidade Politécnica de Valencia (UPV), Javier Sanz ‘pela primeira vez na história, representantes de movimentos sociais, organizações não-governamentais, governos e especialistas acadêmicos reúnem-se em um encontro dessa amplitude para debater os desafios que envolvem as lutas por reforma agrária em todo o mundo’.

Do ponto de vista político, quando o camponês reafirma sua existência como sujeito de direito , denunciando o modelo de monocultura voltado à exportação, toca em questão sensível para veículos que não cansam de incensar as virtudes do latifúndio redimido: o agronegócio, que estaria alavancando indicadores macroeconômicos, seria, na verdade, expressão do atraso imposto pelos centros hegemônicos aos países periféricos.

Naquele momento, mais uma vez, os veículos da grande imprensa mostraram, além do DNA, sua proverbial funcionalidade: existem como isolamento acústico para demandas que venham a contrariar interesses secularmente consolidados.

Como conseqüências da perda de soberania nacional face às imposições dos organismos multilaterais de crédito, teríamos a privatização de recursos naturais, a degradação ambiental, a concentração de propriedades e a extinção da agricultura camponesa e familiar que privilegia o mercado interno.

De acordo com as organizações presentes em Valencia, o resgate soberano exigiria, ainda, que a alimentação e agricultura saíssem das discussões travadas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) e fossem tratadas como direitos de todos. O documento final não deixa dúvidas de que estamos em meio a um processo contra-hegemônico de grande vulto.

A inter-relação entre os interesses campesinos e os demais setores da sociedade demonstra a superação corporativa que marca as fases embrionárias dos movimentos sociais. Vejamos um trecho publicado na edição de 9 de dezembro de 2004, de Carta Maior.

‘Reafirmar o acesso à terra como direito de toda a humanidade e retirar as questões relativas à alimentação e à agricultura das discussões travadas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) e dos acordos comerciais bi e multilaterais. Esta foi a principal resolução política definida na declaração final do 1º Fórum Mundial sobre a Reforma Agrária, que terminou nesta quarta-feira (8/12/2004) em Valencia. Após quatro dias de intensa discussão, com a participação de representantes de organizações de mais de 70 países, a mais importante contribuição desse FMRA foi apontar para a unificação de uma agenda de mobilizações que coloque a luta pela reforma agrária como parte integrante da luta estrutural contra as políticas neoliberais que contribuem para aumentar a miséria dos trabalhadores, seja no campo ou na cidade, em todo o mundo.’

A observação do representante dos camponeses da Catalunha, Xávi Caetán, era, e é, importante demais para não ser registrada nesse pequeno artigo:

‘Os governantes e a elite européia devem mudar sua postura. Não adianta ficarmos aqui discutindo a soberania alimentar nos países menos desenvolvidos enquanto nossas grandes empresas continuam adquirindo gigantescos pedaços de terra no Sul apenas para transformá-los em pastos.’

Mas não é esta uma das denúncias mais graves feitas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST)? A de que o processo de desnacionalização no campo é crescente? Imaginem que pauta isso não daria se o compromisso da imprensa brasileira fosse com uma sociedade efetivamente republicana?

E como ignorar o impacto internacional das declarações do delegado palestino, Jadeh Jamal, quando, àquela época, afirmava que ‘camponeses da Palestina, Iraque e Afeganistão estão morrendo de fome por conta da política de força exercida por Estados Unidos e Israel?’ Como deixar de refletir sobre mais essa constatação feita pela mesma liderança?

‘Atualmente, por falta de alternativas de produção dignas, os camponeses do Afeganistão são responsáveis pela produção de 80% da heroína que é vendida na Europa. Não podemos ter medo de, ao lutar pela reforma agrária, denunciarmos nossos verdadeiros inimigos.’

Como vemos, a questão agrária é de enorme centralidade se pensamos em democracia, justiça social e Estado de Direito. E é aí que reside o pecado capital da nossa grande imprensa: a falta de compromisso com qualquer um dos três itens. Assim, quando publica estudo da Unicef apontando a existência de 27 milhões de crianças vivendo abaixo da linha de pobreza e não faz qualquer menção à concentração fundiária, mais despolitiza do que informa.

Por que recuamos a 2004 se exemplos recentes não faltam? Pelo caráter emblemático que a cobertura deste Fórum representou? Impossível pensar em atuação política no interior da estrutura midiática visando à exploração de contradições e ocupação de espaço. Esse erro antigo parece ter sido abandonado pelos movimentos sociais. A blindagem é por demais bem-feita para que se possa escapar da filtragem editorial. Afinal desde quando aquário existe para assegurar a liberdade de peixe?

A importância de contar com veículos próprios para a luta ideológica tem levado várias organizações a repensar a questão de estabelecer uma ordem informativa horizontalizada, capaz de transpor suas demandas específicas e atingir um público amplo. A mobilização social requer inventividade nas formas de comunicação política. E, por certo, no interior da própria luta a práxis encontrará os melhores caminhos.

O Fórum Mundial de Reforma Agrária não mereceu ser notícia em um país em que coexistem grandes extensões de terra nas mãos uma minoria e pouquíssimas famílias concentrando grandes extensões do campo comunicativo. Mantidas as especificidades, um latifúndio ajuda ao outro.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil e Observatório da Imprensa.’

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O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

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