MÍDIA, PODER E DEMOCRACIA
Observatórios de mídia refletem descrédito da imprensa, 14/11
‘SALVADOR – Em 11 de março de 2004, a Espanha ficou paralisada pelo terror de um atentado ao trem de Madrid em pleno horário de pico.
Dezenas de pessoas morreram e centenas ficaram feridas. Pouco após o ocorrido, o governo do presidente José Maria Aznar divulgou, como resultado de uma apuração supostamente confiável, que o ato terrorista teria sido cometido pelo grupo separatista basco ETA. Como se soube depois, os editores dos principais veículos de comunicação do país receberam telefonemas de Aznar pessoalmente ou de seus ministros, reafirmando a informação.
No subterrâneo das comunicações não alinhadas, no entanto, rapidamente outra versão começou a tomar corpo: não foi o ETA, mas sim um grupo islâmico que teria inclusive assumido a autoria do atentado. Esta versão, que acabou se confirmando, custou ao grupo político de Aznar a vitória na eleição presidencial que ocorreu três dias depois. A resposta da sociedade à tentativa de incriminar com mentiras um grupo de esquerda para fins eleitorais foi avassaladora, e venceu o repúdio ao apoio do governo de direita à ação americana no Iraque. Dessa forma, a improvável candidatura do progressista José Luiz Zapatero virou a mesa e levou a presidência, num dos processos mais extraordinários de força da opinião pública da história recente.
Mentiras exemplares da imprensa, como as que deram conta da existência de armas de destruição em massa no Iraque e da participação do governo do país nos atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA, e que justificaram o hediondo crime da invasão americana, são extremos de uma realidade que tem levado a sociedade a sofrer do que o jornalista Ignácio Ramonet, diretor do jornal francês Le Monde Diplomatique e do Media Watch International, chama de insegurança informativa.
Palestrante do Fórum Internacional Mídia, Poder e Democracia, que ocorre até este dia 14 em Salvador, Ramonet apresentou os exemplos acima para expor um processo de descrédito crescente auto-infligido pela mídia, uma vez que a imprensa e seus profissionais, grandes lutadores da democracia em momentos de repressão e ditadura, passaram a ser eles próprios os grandes violadores desta democracia em nome da mercantilização e ´mercenarização` da informação.
A sensação de insegurança informativa se aprofundou com um certo abandono da imprensa de seu papel de ´quarto poder´, o avaliador crítico das disfunções do Estado e suas instancias legislativas, executivas e judiciárias. O interesse é outro, explica Ramonet. ´O importante hoje, para a imprensa, é o que o maior número de pessoas quer ver e ouvir. As informações são cada vez mais breves, emotivas e espetaculares. E, cada vez mais, estas informações são gratuitas. Então onde está o negócio? Se trata de vender gente aos anunciantes, e para ter mais gente, a informação tem que ser sedutora´, pondera. E neste ponto, a credibilidade do veículo e do trabalho jornalístico sofre sérias avarias.
Neste cenário, o surgimento de um número cada vez maior de iniciativas de monitoramento da mídia em todo o mundo, a exemplo do Observatório de Imprensa ou do Observatório de Mídia no Brasil, tem sido um reflexo claro da reação da sociedade perante o descrédito dos veículos de comunicação.
´Temos agora que buscar uma unidade maior destas iniciativas mundo afora´, sugere Ramonet, para que o processo de acompanhamento crítico da mídia se fortaleça como uma espécie de ´quinto poder´. ´Estamos sugerindo um encontro mundial, quem sabe no Brasil, ligado ao processo Fórum Social Mundial de 2009, que ocorrerá em Belém, para unificar os observatórios de mídia´.’
Novas tecnologias acirram disputa entre capital e democracia, 16/11
‘SALVADOR – A partir da década de 1990, o advento da internet deu início ao maior fenômeno mundial de intercomunicação fora do ´esquema` das grandes corporações e conglomerados das telecomunicações. Criou-se, a partir da web, uma série de mecanismos onde a produção de forma, conteúdo e tecnologia não estão necessariamente sob controle do capital, e atualmente as redes digitais cobrem o planeta sem pedir autorização a ninguém. Dos servidores centrais de distribuição de conteúdo aos sistemas de compartilhamento livre, da oferta de tecnologias patenteadas à criação de ferramentas de livre uso e de múltiplas finalidades, inventadas ao sabor das necessidades e das criatividades, criou-se um novo universo potencialmente libertário.
Ao mesmo tempo em que as aparentemente ilimitadas possibilidades de intercomunicação oferecidas pelas novas tecnologias digitais vislumbram o aprofundamento da democratização do fazer e do acessar informações e conteúdos, porém, está em curso uma corrida desenfreada do capital pelo seu controle. Este foi o alerta dos debatedores Jonas Valente, jornalista e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, e Sérgio Amadeu da Silveira, professor de pós-graduação da Faculdade de Comunicação Cásper Líbero, no Fórum Mídia, Poder e Democracia, que terminou quarta-feira (14) em Salvador.
Segundo os debatedores, se, por um lado, o avanço das tecnologias atropelou o organograma do grande capital, por outro o que se percebe é a tentativa de amarrar a sua utilização seja através da apropriação dos espaços de transmissão – telefonia, TV digital, banda larga etc – no chamado processo de convergência de mídias, quanto através de lobbies junto aos governos, no sentido de impor mecanismos de controle e restrição de sua utilização.
Um exemplo, cita Silveira, é a guerra do governo americano contra o compartilhamento livre de conteúdos (principalmente culturais) protegidos pelo copyright, o que, a partir do momento em que a indústria fonográfica perde espaço para os sistemas de compartilhamento e reprodução de músicas, afeta pesadamente o poder do capital. Outro exemplo são os serviços de voz oferecidos por programas como o Skype, que podem afetar pesadamente as empresas de telefonia.
Já no aspecto da normatização dos processos de convergência de mídia, segundo Valente há um jogo pesado de interesses no Congresso brasileiro, que se manifesta através de cinco projetos de lei atualmente em avaliação, e que deverão definir quem, como e quanto se ganha com isso.
´A convergência tem suas raízes na digitalização dos conteúdos (que transforma as mais diversas formas de informação em dígitos binários), condição para que as diversas plataformas pudessem trocar e reconhecer dados. O fenômeno não pode ser observado somente pelo prisma técnico, mas sim sob a perspectiva de um movimento de concentração dos grupos comerciais de mídia, cujas fusões resumiram o setor a menos de 10 conglomerados multinacionais. Estes processos vêm destruindo as fronteiras entre serviços e plataformas de comunicação. Um celular pode fazer ligações, acessar a internet e, em breve, receber conteúdos de televisão´, afirma Valente. A questão, segundo o jornalista, é que estes processos podem aprofundar o controle e o monopólio das mídias, o que significa, por sua vez, um retraso da luta pela democratização das comunicações.
Frente a este panorama, dois caminhos de luta por parte da sociedade civil são importantes, avaliam Valente e Silveira. Por um lado, é preciso fortalecer os processos de pressão política sobre o governo e o Congresso para intervir nas decisões acerca de temas como a regulamentação da radiodifusão no país (concessões de canais de radio e TV, o padrão da TV digital, etc), a criação de políticas públicas de comunicação e inclusão digital, a oferta de infra-estrutura pública para garantir o fluxo de conteúdos, entre outros.
´Em resumo, a sociedade civil tem três papéis importantes no processo de democratização da comunicação: produção de conteúdo, controle público da mídia e luta por políticas democráticas de comunicação’, afirma Valente.
Já Silveira acredita que é preciso reforçar os movimentos ´libertários` de compartilhamento livre de tecnologias e conteúdos, com o fortalecimento de conceitos como o creative commons e o copyleft, a abertura de sinais de TV e de telefonia, a ocupação dos espectros de radiofreqüências etc.’
´Mídia sufoca pluralidade e suprime pensamento crítico´, 13/11
‘SALVADOR – Um dos casos mais recentes e emblemáticos de um certo desvario reinante na imprensa brasileira foi, segundo o sociólogo Emir Sader, a afirmação de um graduado jornalista sobre os resultados das eleições presidenciais de 2006: o povo, ao reeleger Lula, teria contrariado a opinião pública.
Participante, junto com a filósofa Marilena Chauí e a jornalista Tereza Cruvinel (TV Brasil) do debate Mídia e Democracia no Brasil, atividade do Fórum Internacional Mídia, Poder e Democracia, que acontece em Salvador, BA, entre os dias 12 e 14 de novembro, Sader destrinchou as estratégias utilizadas pela mídia para impor à população um papel de agente passivo na construção social, política e econômica do país e no processo de supressão progressiva da democracia.
Citando os resultados de uma pesquisa recente do jornal Folha de São Paulo, que constatou que seus leitores são, em absoluta maioria, integrantes das classes A e B, com grande poder aquisitivo e cultura de consumo, Sader destacou duas questões importantes: por um lado, o jornal resume seu universo editorial em ser pautado e pautar a ´opinião pública` de uma determinada classe, buscando ser ao mesmo tempo construtor e filtro do consenso e definindo ´o quê, quando e sobre o quê se fala?.
Por outro lado, o liberalismo escamoteado de ´liberdades` reduziu os receptores das informações a consumidores, de olho nas possibilidades de financiamento da industria de bens de consumo. Mais do que uma imprensa privada, a mídia é mercantilizada, o que fragiliza a democracia a partir do momento em que forma e conteúdo das informações têm origem e direcionamento pré-estabelecidos pelo mercado.
Um problema maior, neste aspecto da supressão da democracia, está, de acordo com Sader, na esfera do debate ou disputa de idéias. ´Segundo o pensador inglês Perry Anderson, quando a esquerda chegou ao governo, tinha perdido o debate das idéias. Consultado, normalmente o povo é favorável a idéias progressistas; mas não é consultado´. A construção da opinião pública não se dá, assim, a partir do posicionamento da população, mas a partir das demandas do mercado, avalia Sader.
Na mesma direção, a filósofa Marilena Chauí aponta um fenômeno cada vez mais comum na mídia: a relevância dada a preferências pessoais (que música gosta, que filme viu, que perfume usa, que viagem fez) em detrimento da colocação de idéias e reflexões quando se dá espaço ao ´debate público´. Assim, a real opinião pública dá lugar à sondagem de opinião, no sentido em que não se procura a expressão pública nacional, refletida e pensada, mas se aposta nas ´predileções´.
O papel de refletir e pensar é usurpado pelos ´formadores de opinião` – analistas, acadêmicos, artistas, jornalistas. O jornalismo se torna o detentor das plausibilidades, e os intelectuais, o operariado do capital. O especialista é aquele que ensina a viver, a decorar a casa, a cozinhar, a fazer sexo, a educar, o que faz do comunicador o formador final da opinião pública.
O papel do poder públicoSegundo Emir Sader, salvaguardar ou reconduzir a democracia na imprensa passa a ser um papel do poder público, a partir da concepção de que é o mais apto a desmercantilizar os processos de comunicação. Neste sentido, desmercantilizar significa democratizar, defende Sader.
Este seria um dos principais desafios dos governos de esquerda: a construção de canais públicos onde a diversidade tem espaço obrigatório, e onde a mídia deixaria de ser a intermediária entre o governo e a opinião pública. Para tanto, porém, é urgente que verbas públicas de publicidade, principalmente das grandes estatais – no fundo nada mais do que dinheiro da população -, deixem de ser canalizadas para sustentar os grandes impérios midiáticos.
´Tem de haver o fortalecimento dos canais e mídias alternativas, como Carta Capital, Caros Amigos, Carta Maior, Le Monde Diplomatique -, expressões da diversidade; a batalha das idéias é decisiva para o futuro do Brasil. São as idéias que ficam, que dão ao povo consciência de si mesmo?, conclui Sader.’
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