EQUADOR
Justiça tardia: o caso do grupo Isaías no Equador, 10/7
‘Em 1998, o Equador mergulhou em uma das piores crises econômicas de sua história. O PIB caiu, a pobreza e a desigualdade aumentaram dramaticamente. Uma migração sem precedentes levou cerca de 1,3 milhões de equatorianos para a Espanha e, em menor medida, aos Estados Unidos, em um tempo relativamente curto. Alguns fatores contribuíram para essa situação: uma queda dramática dos preços do petróleo, o fenômeno do El Niño que inundou e destruiu grandes extensões de cultivos destinados à exportação e ao mercado interno, o super-endividamento do país que fez com que os compromissos de pagamento da dívida absorvessem uma parte importante dos limitados recursos fiscais disponíveis.
A estes fatores externos somou-se a derrocada do sistema financeiro. Não é possível deixar de relacionar essa derrocada com dois tipos de decisões: por um lado, com o conjunto de reformas iniciadas em meados dos anos 1990 com uma agressiva flexibilização das normas que regulavam o funcionamento do sistema financeiro e que permitiu que os bancos e seus acionistas pudessem intervir em outros negócios para além da banca financeira; por outro, o enfraquecimento da capacidade do Estado de regular, controlar e intervir naquelas instituições financeiras que apresentaram problemas ou que descumpriram as leis do país. Um ambiente permissivo permitiu que os grupos econômicos que controlavam a banca financeira usassem os recursos dos correntistas e poupadores tanto em operações especulativas de alto risco, sem as devidas garantias, assim como em empréstimos a membros do grupo e a empresas vinculadas. A isso se somou a grande ingerência política dos grupos financeiros nos governos desde 1992.
Os problemas macroeconômicos, as dificuldades no setor externo e o manejo irresponsável e especulativo da banca privada levaram ao colapso do sistema financeiro. A defesa das reformas que flexibilizaram o sistema financeiro e que limitaram o papel do Estado foi a base das políticas neoliberais que dominaram as políticas públicas nos anos 1990.
O paradoxal é que os setores que defenderam a redução das funções estatais de regulação e controle no âmbito financeiro, não hesitaram um instante em pedir socorro ao Estado para manter a sobrevivência do sistema financeiro. Foi implementado, então, um conjunto de operações de socorro ao setor bancário que, em 1999, ano em que os efeitos da crise afetaram a maioria da população, representaram 30% do PIB equatoriano. Somente um banco, Filanbanco, propriedade do grupo econômico Isaías, recebeu mais de US$ 1,2 bilhões de dólares, o que representou ‘mais do dobro do que o Estado destinou para a saúde pública entre 1998 e 2001’ (1).
O grupo Isaías, proprietário do Filanbanco, a partir de seus negócios no setor financeiro, expandiu suas operações a quase todos os setores da economia. Quando o banco faliu e foi passado para as mãos do Estado – e apesar de ter sido um grupo particularmente favorecido pela operação de socorro bancário – o grupo teve a oportunidade de reestruturar, em condições vantajosas, boa parte dos créditos que tinha junto às empresas vinculadas e inclusive exigiu do Estado a devolução de garantias outorgadas pelos recursos entregues para salvar o banco.
Convertido em um dos grupos econômicos mais poderosos do país, os chefes do grupo Isaías protegeram-se da ação da Justiça refugiando-se nos Estados Unidos. Seu poder paralisou qualquer tentativa do Estado equatoriano, através da Agência de Garantia de Depósitos (AGD), para ressarcir os prejuízos econômicos causados aos depositantes e ao próprio Estado.
Tem razão o governo do presidente Rafael Correa ao afirmar que a decisão de bloquear os bens dos principais acionistas do Filanbanco devia ter sido tomada há dez anos. A longa espera para que se faça justiça permitiu que os irmãos Isaías continuassem e ampliassem seus negócios no Equador (incluindo aí a propriedade de dois canais de televisão aberta e um de tv a cabo) e aumentassem seu poder de influência, amparados por uma justiça lenta e ineficiente, um Estado que se recusou a enfrentá-los e a falta de vontade política dos governos que se sucederam desde 1998 até hoje para cumprir a lei.
A decisão histórica é, sem dúvida, a mais importante das já adotadas por um governo para enfrentar um grupo de poder que se transformou na maior expressão da impunidade, da prepotência e de um poder ilimitado frente à lei e as instituições jurídicas e políticas. Que a falta de memória não sirva de pretexto para esquecer os amargos dias do latrocínio que significou o ‘socorro’ bancário e lançar terra sobre o custo que teve para o Equador e as famílias equatorianas.
Os críticos da decisão da AGD, tomada no estrito respeito às leis vigentes, esgrimem dois argumentos: por um lado, que se trata de uma decisão política e eleitoral: por outro, que é uma ação que tem como objetivo atacar a liberdade de expressão. Os dois são argumentos débeis. É evidente que a decisão, por sua natureza e os interesses em jogo, independentemente do momento em que tivesse sido tomada, tem natureza política. Tanto é assim que nenhum governo teve a coragem de tomá-la até então. Deveria se esperar mais dez anos? Por outro lado, está dentro das atribuições de um governo fixar a agenda para tomar as medidas que considere oportunas de acordo com o contexto político. Em um ambiente de inevitável desgaste devido ao complexo debate constitucional que vive o Equador, a decisão é uma reafirmação da vontade de mudança que o governo Correa assumiu. É uma jogada no tabuleiro político que dá ao governo novamente a iniciativa para defender sua agenda política e comunicacional.
Por outro lado, o caso do grupo Isaías demonstra o acerto da proposta, atualmente em debate constitucional, que aponta para a necessidade da independência dos meios de comunicação frente ao controle por parte de impérios econômicos como o deste grupo. Outro tema que deve ser amplamente debatido é o futuro desses meios e a forma de convertê-los em verdadeiros espaços plurais de opinião.
(1) Acosta Alberto, Recordando los entretelones del salvataje bancario, 8 de julho de 2008.
Carlos Arcos Cabrera é sociólogo (Equador)
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer’
CRIMES VIRTUAIS
Redação – Carta Maior
Em defesa da liberdade e do conhecimento na internet brasileira, 7/7
‘BRASÍLIA – Um projeto do senador tucano Eduardo Azeredo (PSDB-MG) pode transformar milhares de internautas em criminosos de um dia para outro. Leia o texto assinado por André Lemos (Professor Associado da Faculdade de Comunicação da UFBA, Pesquisador 1 do CNPq), Sérgio Amadeu da Silveira (Professor do Mestrado da Faculdade Cásper Líbero, ativista do software livre) e João Carlos Rebello Caribé (Publicitário e Consultor de Negócios em Midias Sociais), que encabeçam o abaixo-assinado contra a a proposta do senador tucano.
EM DEFESA DA LIBERDADE E DO PROGRESSO DO CONHECIMENTO NA INTERNET BRASILEIRA
A Internet ampliou de forma inédita a comunicação humana, permitindo um avanço planetário na maneira de produzir, distribuir e consumir conhecimento, seja ele escrito, imagético ou sonoro. Construída colaborativamente, a rede é uma das maiores expressões da diversidade cultural e da criatividade social do século XX. Descentralizada, a Internet baseia-se na interatividade e na possibilidade de todos tornarem-se produtores e não apenas consumidores de informação, como impera ainda na era das mídias de massa. Na Internet, a liberdade de criação de conteúdos alimenta, e é alimentada, pela liberdade de criação de novos formatos midiáticos, de novos programas, de novas tecnologias, de novas redes sociais. A liberdade é a base da criação do conhecimento. E ela está na base do desenvolvimento e da sobrevivência da Internet.
A Internet é uma rede de redes, sempre em construção e coletiva. Ela é o palco de uma nova cultura humanista que coloca, pela primeira vez, a humanidade perante ela mesma ao oferecer oportunidades reais de comunicação entre os povos. E não falamos do futuro. Estamos falando do presente. Uma realidade com desigualdades regionais, mas planetária em seu crescimento.
O uso dos computadores e das redes são hoje incontornáveis, oferecendo oportunidades de trabalho, de educação e de lazer a milhares de brasileiros. Vejam o impacto das redes sociais, dos software livres, do e-mail, da Web, dos fóruns de discussão, dos telefones celulares cada vez mais integrados à Internet. O que vemos na rede é, efetivamente, troca, colaboração, sociabilidade, produção de informação, ebulição cultural. A Internet requalificou as práticas colaborativas, reunificou as artes e as ciências, superando uma divisão erguida no mundo mecânico da era industrial. A Internet representa, ainda que sempre em potência, a mais nova expressão da liberdade humana.
E nós brasileiros sabemos muito bem disso. A Internet oferece uma oportunidade ímpar a países periféricos e emergentes na nova sociedade da informação. Mesmo com todas as desigualdades sociais, nós, brasileiros, somo usuários criativos e expressivos na rede. Basta ver os números (IBOPE/NetRatikng): somos mais de 22 milhões de usuários, em crescimento a cada mês; somos os usuários que mais ficam on-line no mundo: mais de 22h em média por mês. E notem que as categorias que mais crescem são, justamente, ‘Educação e Carreira’, ou seja, acesso à sites educacionais e profissionais. Devemos assim, estimular o uso e a democratização da Internet no Brasil. Necessitamos fazer crescer a rede, e não travá-la. Precisamos dar acesso a todos os brasileiros e estimulá-los a produzir conhecimento, cultura, e com isso poder melhorar suas condições de existência.
Um projeto de Lei do Senado brasileiro quer bloquear as práticas criativas e atacar a Internet, enrijecendo todas as convenções do direito autoral. O Substitutivo do Senador Eduardo Azeredo quer bloquear o uso de redes P2P, quer liquidar com o avanço das redes de conexão abertas (Wi-Fi) e quer exigir que todos os provedores de acesso à Internet se tornem delatores de seus usuários, colocando cada um como provável criminoso. É o reino da suspeita, do medo e da quebra da neutralidade da rede. Caso o projeto Substitutivo do Senador Azeredo seja aprovado, milhares de internautas serão transformados, de um dia para outro, em criminosos. Dezenas de atividades criativas serão consideradas criminosas pelo artigo 285-B do projeto em questão. Esse projeto é uma séria ameaça à diversidade da rede, às possibilidades recombinantes, além de instaurar o medo e a vigilância.
Se, como diz o projeto de lei, é crime ‘obter ou transferir dado ou informação disponível em rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, sem autorização ou em desconformidade à autorização, do legítimo titular, quando exigida’, não podemos mais fazer nada na rede. O simples ato de acessar um site já seria um crime por ‘cópia sem pedir autorização’ na memória ‘viva’ (RAM) temporária do computador. Deveríamos considerar todos os browsers ilegais por criarem caches de páginas sem pedir autorização, e sem mesmo avisar aos mais comum dos usuários que eles estão copiando. Citar um trecho de uma matéria de um jornal ou outra publicação on-line em um blog, também seria crime. O projeto, se aprovado, colocaria a prática do ‘blogging’ na ilegalidade, bem como as máquinas de busca, já que elas copiam trechos de sites e blogs sem pedir autorização de ninguém!
Se formos aplicar uma lei como essa as universidades, teríamos que considerar a ciência como uma atividade criminosa já que ela progride ao ‘transferir dado ou informação disponível em rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado’, ‘sem pedir a autorização dos autores’ (citamos, mas não pedimos autorização aos autores para citá-los). Se levarmos o projeto de lei a sério, devemos nos perguntar como poderíamos pensar, criar e difundir conhecimento sem sermos criminosos.
O conhecimento só se dá de forma coletiva e compartilhada. Todo conhecimento se produz coletivamente: estimulado pelos livros que lemos, pelas palestras que assistimos, pelas idéias que nos foram dadas por nossos professores e amigos… Como podemos criar algo que não tenha, de uma forma ou de outra, surgido ou sido transferido por algum ‘dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, sem autorização ou em desconformidade à autorização, do legítimo titular’?
Defendemos a liberdade, a inteligência e a troca livre e responsável. Não defendemos o plágio, a cópia indevida ou o roubo de obras. Defendemos a necessidade de garantir a liberdade de troca, o crescimento da criatividade e a expansão do conhecimento no Brasil. Experiências com Software Livres e Creative Commons já demonstraram que isso é possível. Devemos estimular a colaboração e enriquecimento cultural, não o plágio, o roubo e a cópia improdutiva e estagnante. E a Internet é um importante instrumento nesse sentido. Mas esse projeto coloca tudo no mesmo saco. Uso criativo, com respeito ao outro, passa, na Internet, a ser considerado crime. Projetos como esses prestam um desserviço à sociedade e à cultura brasileiras, travam o desenvolvimento humano e colocam o país definitivamente para debaixo do tapete da história da sociedade da informação no século XXI.
Por estas razões nós, abaixo assinados, pesquisadores e professores universitários apelamos aos congressistas brasileiros que rejeitem o projeto Substitutivo do Senador Eduardo Azeredo ao projeto de Lei da Câmara 89/2003, e Projetos de Lei do Senado n. 137/2000, e n. 76/2000, pois atenta contra a liberdade, a criatividade, a privacidade e a disseminação de conhecimento na Internet brasileira.’
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