HONDURAS
Imprensa brasileira: De facto ou interina?
‘Desde 28 de junho, quando o presidente Manuel Zelaya foi deposto por um golpe militar liderado por Roberto Micheletti, a grande imprensa brasileira, através de seus articulistas mais conhecidos e dedicados editorialistas, voltou a apresentar, como é comum a aparelhos privados de hegemonia, seu vasto arsenal de produção e redefinição de significados. Desta vez, a novidade foi o deslocamento semântico do real sentido do que vem a ser golpe de Estado. Em Honduras, segundo a narrativa jornalística, não há golpistas, mas ‘governo interino’ ou ‘de facto’, pouco importando que a ação militar tenha sido condenada pela União Européia e governos latino-americanos representados pela Organização dos Estados Americanos (OEA)
Como já tive oportunidade de destacar em outra oportunidade ‘há algo profundo no jogo das palavras’. Ainda mais quando, quem as maneja, tem, por dever de ofício, que relatar o que cobre com precisão e clareza. Fica evidente que razão cínica e ética ambíguas são irmãs siamesas. E no jornalismo brasileiro, mudam as gerações, mas as tragédias continuam e o imaginário dos aquários insiste em se engalfinhar contra as evidências factuais.
Agora, empenhada em afirmar que o governo brasileiro teria agido de maneira irresponsável ao conceder abrigo ao presidente deposto, a mídia corporativa repete um velho procedimento. Tenta armar, na produção noticiosa, uma subversão monstruosa: a autoria e a responsabilidade do golpe são transferidas aos que a ele se opõem, de modo que os golpistas, posando de impolutos democratas, ainda encontrem razões e argumentos para desmoralizar, reprimir e, se possível, eliminar seus oponentes. Para a empreitada foram convocados até diplomatas aposentados, saudosos de uma subalternidade quase colonial.
Uma característica saliente do discurso editorial, e de forma alguma sem importância, é o tom mordaz de quem que se propõe a dizer ‘verdades’ a leitores e/ou telespectadores não apenas iludidos, mas idealizados como obtusos. O trecho abaixo, extraído da revista Veja ( edição 2132, de 30/09/2009) é exemplar. Trata-se da reportagem ‘O pesadelo é nosso’, assinada pelos jornalistas Otávio Cabral e Duda Teixeira.
‘Com as eleições marcadas para o próximo dia 29 de novembro, o governo interino que derrubou Zelaya se preparava para reconduzir o país à normalidade democrática. O candidato ligado a Manuel Zelaya aparecia até bem colocado nas pesquisas de intenção de voto. Seria uma saída rápida e democrática para um golpe, coisa inédita na América Latina. Seria. Agora o desfecho da crise é imprevisível. O mais lógico seria deixar o retornado sob os cuidados dos amigos brasileiros até depois das eleições, que, se legítimas, convenceriam a comunidade internacional das intenções democráticas dos golpistas’
Não procurem lógica no texto. Muito menos o uso político do mito da objetividade jornalística. O panfletarismo é prepotente e assumidamente faccioso para se preocupar com detalhes. Falar em ‘intenções democráticas dos golpistas’ não expressa dificuldade de ordem racional, mas uma formidável comédia de erros e imposturas orquestradas por setores decisivos de uma direita inconformada com uma política externa exitosa.
Não se trata apenas da insistência da grande mídia brasileira em ‘manter um viés anti-Lula, fazendo uma cobertura parcial e tendenciosa sobre os acontecimentos que envolvem o fato’, como afirmou o deputado José Genoíno. A operação em curso vai bem além desse propósito. O que ela busca ocultar são os resultados da reunião do G-20, em Pittsburgh, com a abertura para a reorganização das instituições financeiras internacionais e maiores direitos para os países emergentes. O êxito diplomático deve ser substituído por uma ‘trapalhada ideológica que não faz jus à tradição pragmática do Itamaraty’.
É exatamente isso o que confessa o articulista Clóvis Rossi, em sua coluna de sexta-feira, 25 de setembro, na Folha de S. Paulo.
‘Escrevendo textos no lobby do Hotel Sheraton, em que Luiz Inácio Lula da Silva está hospedado em Pittsburgh, sou agradavelmente interrompido por Gilberto Scofield, o competente correspondente de ‘O Globo’ em Washington: Cara, Honduras conseguiu eclipsar completamente o G20 nos jornais brasileiros. Só recebo cobranças sobre Honduras’.
Essa desenvoltura de militantes eufóricos só reforça o que se sabe da grande imprensa. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mas os modelos-teimosos- permanecem como farsa de um jornalismo que não se sabe ao certo se é ‘de facto’ ou interino. Os acontecimentos de Tegucigalpa são contagiantes
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil’
ARGENTINA
Nova lei de comunicação argentina compra briga contra monopólios
‘Durante as últimas semanas, os debates em Buenos Aires giram em torno da nova lei de comunicação proposta pelo governo de Cristina Kirchner: esteve em audiências públicas lotadas, nos jornais, televisões e nas ruas. Conhecida pelos portenhos como ‘Nueva Ley de Medios’, o projeto quer regulamentar o setor e, apesar das críticas de opositores, que temem um maior controle do Estado, na última quinta-feira (17), após quase 14 horas de debate, o projeto governista obteve 146 votos, contra três votos contrários e três abstenções. A medida ainda passa pelo Senado, possivelmente em outubro. Entre outros pontos, a nova lei cria uma comissão bicameral de controle, um Conselho Federal de Comunicação Audiovisual e a figura do Defensor Público de consumidores de serviços audiovisuais.
O grande debate que a possibilidade de mudança na legislação vigente desde a ditadura militar (1976-1983) gerou no país pode ser avaliado como a primeira vitória da proposta do governo. Jornais estamparam o tema durante toda semana que antecedeu a votação. No dominical Miradas al Sur, de 6 de setembro último, a manchete ‘Papeles manchados’ abria a matéria de capa que explicava ‘por qué Clarín defiende la ley de la dictadura’ e trazia fotografia onde aparecem diretores do diário argentino brindando com ninguém menos que Jorge Videla, em agosto de 1978. Miradas al Sur também denunciava na mesma edição que os outdoors espalhados pela cidade que estampavam a foto foram cobertos por cartazes de propagandas falsas. Enquanto isso, a presidente Cristina Kirchner anunciava em entrevistas a certeza de que a nova lei reforçará a democracia ao dar maior acesso aos canais de transmissão para pequenos grupos e ONGs, além de restringir o número de concessões que possam ser outorgadas a uma só empresa.
No mesmo domingo, o diário Clarín trazia matéria intitulada ‘El formidable enriquecimiento de los amigos del poder K’, denunciando a multiplicação de capital do casal Kirchner e de aliados. Durante toda semana seguinte, o diário reuniu munição contra a lei e o governo. Segundo o diário, todos que defendem um pluralismo ideológico devem estar preocupados com a decisão da Câmara dos Deputados argentina. Segundo o líder da bancada do governo, deputado Agustín Rossi, a lei ‘é profundamente antimonopolista, propicia uma maior quantidade de vozes com a mesma potência. Propicia uma sociedade mais democrática, com maior quantidade de opções’. Mas, ao contrário do que diz a oposição, ‘não coloca a destruição da grande empresa, mas a convivência entre a grande empresa e as empresas pequenas’.
Os críticos do chamado ‘poder K’ denunciam que a mudança na lei reflete apenas a briga comprada pela presidente e o seu marido e antecessor, Néstor Kirchner, contra o Grupo Clarín, principalmente pela postura crítica de seus veículos na disputa do governo com o campo.
O projeto, com 157 artigos, realmente aumenta a regulação dos meios de comunicação audiovisuais por parte do Estado. Entre outras coisas, estabelece que uma mesma empresa não possa possuir canais de TV aberta e a cabo, além de reduzir de 24 para dez o limite das concessões de rádio e TV em mãos de um mesmo proprietário. Cria uma entidade de supervisão das comunicações, com a presença da sociedade civil e do governo. A recente revogação de uma cláusula que permitia que empresas telefônicas atuassem no mercado de TV a cabo assegurou o apoio de parlamentares de esquerda ao novo projeto. De acordo com a presidente, a nova redação da lei afastará os temores de que as telefônicas criem novos monopólios. A oposição tentou adiar a votação para dezembro, quando assumem os deputados e senadores eleitos no final de junho.
Para Macri, nova lei demonstra ‘fascismo’ do governo
As críticas à lei não partem apenas do Grupo Clarín. Para o prefeito de Buenos Aires e ex-dirigente do Boca Juniors, Mauricio Macri, as mudanças na lei de radiodifusão representam ‘mais um retrocesso institucional dos Kirchners’ e são a prova do ‘fascismo’ do governo. Macri, que se tornou a grande voz contra os Kirschner pela direita, avalia que a proposta restringe a liberdade de imprensa e torna as empresas do setor vulneráveis a pressões do governo. A oposição se reuniu para afirmar que fará de tudo para barrar as mudanças. Agustín Rossi descarta a possibilidade de anulação ou revisão. ‘A oposição não poderá anular a lei, seja com este Parlamento ou com o novo’, disse. O governo agora prepara seus aliados para a votação no Senado, as estimativas no âmbito parlamentar indicam que o governo contaria com 38 dos 72 votos no Senado.
‘A lei possui muitos aspectos positivos’, diz Esquivel
Para o argentino Pérez Esquivel, Nobel da Paz de 1980, o mecanismo de concentração e contaminação da informação não está apenas na Argentina, mas existe em escala mundial. ‘Pretende-se confundir liberdade de imprensa com liberdade de empresa, que não são sinônimos. A Nova Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual causa revolta e preocupação principalmente àqueles que não querem mudança alguma e pretendem continuar com a lei vigente, imposta durante a ditadura militar’, avalia Esquivel, que em 1974 coordenou a fundação do Servicio Paz y Justicia en América Latina (Serpaj). Ele sublinha que a todos os governos que se sucederam no país desde 1983 até agora, faltou vontade política para solucionar e democratizar os meios de comunicação. Ao contrário, grifa Esquivel, Menem apenas impulsionou políticas de entrega do patrimônio público, dos recursos do país aos grandes capitais estrangeiros e permitiu que o monopólio dos meios de comunicação seguisse em poucas mãos.
‘A lei possui muitos aspectos positivos, mas é necessário o debate para que se avance em algumas propostas. Isso, para conquistar a democratização de imprensa como fundamento dos direitos humanos, que a liberdade de informar e ser informado seja maior que os interesses dos monopólios. A nova lei deve abrir espaços de liberdade de expressão e valores que nos permitam construir um novo amanhecer da pátria. Uma palavra, uma participação e um pensamento esquecido que devemos recuperar. A dominação não começa pelo econômico, começa pelo cultural’, resume Esquivel.
Proyecto Sur apóia a proposta, mas mantém ressalvas
‘Queremos discutir esta norma que é a lei das leis na democracia e uma grande política de Estado’, explicou o deputado nacional eleito e cineasta Pino Solanas durante coletiva de imprensa que também teve a presença do deputado Cláudio Lozano. A força política encabeçada por Solanas, chamada de Proyecto Sur, representa a crítica pela esquerda ao governo e à proposta de lei. ‘No Proyecto Sur confluem tanto o campo cultural como o social, atores que participaram durante as últimas duas décadas no debate sobre a necessidade da democratização do sistema de meios na Argentina’, explicou Lozano. ‘Para todos nós, existe um conceito central que é o tema de entender o espaço do audiovisual como um patrimônio do conjunto da sociedade que deve ser administrado pelo Estado com um controle público adequado’, completou.
A revisão de licenças a cada dois anos, a convivência entre cooperativas de serviços públicos e distribuidoras de TV a cabo no interior do país e a participação das telefônicas na comunicação são os principais pontos de conflito entre os Kirschner e Solanas, que considera pontos positivos na nova lei, mas apresentou modificações no projeto. ‘O Proyecto Sur não chegou a este debate nem por uma circunstancial confrontação com o Grupo Clarín, nem tampouco como parte daqueles que a cada vez que se planteia a necessidade de regular o sistema, colocam isso como se fosse autoristarismo’, comparou Solanas. O diretor de ‘Sur’ é uma das grandes pedras no sapato do casal Kirchner e possível candidato à prefeitura de Buenos Aires ou até a presidência da república nas próximas eleições.’
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