Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Agência Carta Maior

IRÃ
Esam Al-Amin

O que realmente aconteceu nas eleições do Irã?

‘As eleições iranianas uniram a esquerda e a direita no ocidente, desatando duras críticas e ataques que vão desde os ‘indignados’ políticos aos ‘indignantes’ meios de comunicação. Até a blogosfera se uniu a esta batalha de maneira quase homogênea, pondo-se ao lado da oposição iraniana, o que é bastante pouco comum no ciberespaço. Muitas das acusações de fraude eleitoral são simplesmente isto: acusações sem fundamento. Ninguém foi capaz de proporcionar nem uma só prova sólida de uma fraude em grande escala. A análise é de Esam Al-Amin.

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Desde a realização das eleições presidenciais de 12 de junho, proliferaram ‘experts’ em Irã como bactérias numa placa de Petri. Assim, fica uma pergunta a todos esses especialistas instantâneos: ‘Que país elegeu mais presidentes que qualquer outro no mundo desde 1980? Mais ainda, que nação é a única que celebrou dez eleições presidenciais em trinta anos desde a sua revolução?

A resposta a ambas as perguntas é, claro, Irã. Desde 1980 o país elegeu seis presidentes, enquanto os EUA ocupam o segundo lugar, com cinco, e a França em terceiro, com três. Ademais, os EUA, nos dez anos de revolução iraniana, realizou três eleições, o Irã realizou 10.

As eleições iranianas uniram a esquerda e a direita no ocidente, desatando duras críticas e ataques que vão desde os ‘indignados’ políticos aos ‘indignantes’ meios de comunicação. Até a blogosfera se uniu a esta batalha de maneira quase homogênea, pondo-se ao lado da oposição iraniana, o que é bastante pouco comum no ciberespaço.

Muitas das acusações de fraude eleitoral são simplesmente isto: acusações sem fundamento. Ninguém foi capaz de proporcionar nem uma só prova sólida de uma fraude em grande escala, que tivesse obtido onze milhões de votos para um candidato sobre seu oponente.

Dessa maneira, analisemos as provas disponíveis até agora.

Foram feitas mais de trinta pesquisas eleitorais no Irã desde que o presidente Mahmoud Ahmadinejad e seu principal opositor, o ex-primeiro ministro Hossein Mousavi, anunciaram suas candidaturas no começo de março de 2009. As pesquisas variavam amplamente entre ambos os rivais, mas havia algo em que seus resultados coincidiam, era que Ahmadinejad seguiria no seu cargo. Contudo, algumas das organizações que patrocinaram essas pesquisas, como a Iraniana Labour News Agency e a Tabnak admitem abertamente terem sido aliadas de Mousavi, da oposição ou do assim chamado movimento reformista. Seus números foram claramente inclinados em favor de Mousavi, da oposição e lhe deram uma vantagem irrealista de 30% em algumas pesquisas. Sem essas pesquisas enviesadas, a vantagem de Ahmadinejad sobre Mousavi se ampliaria em até 21 pontos percentuais.

Por outro lado, só houve uma pesquisa elaborada por um agência de imprensa ocidental. Foi a comissionada conjuntamente pela BBC e pela ABC News, e realizada por uma entidade independente chamada Centro para a Opinião Pública (CPO, em sua sigla em inglês) da New America Foundation. O CPO tem reputação de levar a cabo pesquisas de opinião rigorosas, não apenas no Irã, mas em todo o mundo muçulmano, desde 2005. A pesquisa, realizada algumas poucas semanas antes das eleições, apontavam uma participação de 89%. E mais: mostrava que Ahmadinejad tinha uma vantagem nacional numa razão de dois para um, sobre Mousavi.

Por acaso esses dados não se assemelham com os resultados finais? Quais são as possibilidades de uma fraude eleitoral de grande escala?

De acordo com os resultados oficiais, houve 46,2 milhões de votantes registrados no Irã. A participação foi massiva, como anteviu o CPO. Quase 39,2 milhões de iranianos participaram do pleito, com um total de participação de 85%, dos quais 24,5 milhões de votos foram para Ahmadinejad, contra 13,2 milhões dados a Mousavi, ou 62,6% contra 33,8% do total de votos, respectivamente. De fato, esse resultado era praticamente idêntico ao as eleições de 2005, quando Ahmadinejad recebeu o total de 61,7% dos votos e o presidente Hashemi Rafsanjani, 35,9%, naquelas eleições. O resto dos votos foi parar noutras candidaturas minoritárias, como as de Mehdi Karroubi e Mohsen Rezaee.

Pouco depois dos resultados serem anunciados, os partidários de Mousavi e os especialistas políticos ocidentais gritaram ‘trapaça’ e acusaram o governo de fraude eleitoral. A acusação se baseou em quatro pontos.

Primeiro: ainda que a votação tenha se extendido durante muitas horas dada a alta participação, alegou-se que os resultados apareceram muito rápido para terem sido obtidos logo após o encarramento da votação, quando havia mais de 39 milhões de papéis para contar.

Em segundo lugar, esses críticos insinuaram que os observadores atuaram partidariamente, ou que, em alguns casos, a oposição não contou com seus próprios observadores presentes durante a recontagem. Em terceiro lugar, assinaralam que era absurdo pensar que Mousavi, que descende da região do Azerbaijão, no noroeste do Irã, fosse derrotado facilmente em sua própria cidade natal. Quarto, o campo de Mousavi denunciou que alguns colégios eleitorais encerraram a votação antes do tempo e as pessoas tiveram de voltar as suas casas sem terem exercido seu direito ao voto.

No dia seguinte, Mousavi e outros candidatos derrotados apresentaram 646 queixas ao Conselho de Guardiães, a entidade encarregada de supervisionar a integridade das eleições. O Conselho prometeu levar a cabo uma investigação exaustiva de todas as queixas. Na manhã seguinte, uma cópia de uma carta de um funcionário do ministério do interior enviada ao Guia Supremo Ali Khamenei começou a circular por todo o mundo (os políticos ocidentais e os meios de comunicação gostam de chamar Khamenei de ‘Líder Supremo’, mas não existe nenhum título como esse no Irã).

A carta afirmava que Mousavi havia vencido o pleito e que Ahmadinejad tinha ficado na realidade em terceiro lugar. Também assegurava que as eleições tinham sido arranjadas em favor de Ahmadinejad por ordens de Khamenei. Com toda segurança pode afirmar-se que essa carta é uma falsificação, pois nenhum funcionário desse nível se dirigiria ao aiatolá Khamenei. Robert Fisk, no Independent, chegou a mesma conclusão, levantando graves dúvidas de que Ahmadinejad pudesse ter ficado em terceiro – obtendo menos de 6 milhões de votos numa eleição tão importante como essa – como se afirma na carta falsa.

Houve um total de 45.713 urnas eleitorais nas cidades, povos e aldeias de todo o Irã. Com 39,2 milhões de votos, houve portanto menos de 860 votos por urna. À diferença de outros países, onde os eleitores podem dar seu voto a várias candidaturas e por diferentes questões numa mesma jornada eleitoral, os eleitores iranianos têm uma opção em que votar: seu candidato presidencial. Por que haveria de se levar mais de uma hora ou duas contar 860 papeletes por colégio eleitoral? Depois da recontagem, os resultados foram enviados eletronicamente ao Ministério do Interior em Teerã.

Desde 1980 o Irã sofreu uma guerra brutal de oito anos com o Iraque, um embargo e um boicote punitivos e uma campanha de assassinatos de dúzias de seus juízes, um presidente eleito e um primeiro ministro, nas mãos do grupo Mujahideen Khlaq Organization (MKO é uma organização nacional violenta, com sede na França, que visa a derrotar o governo pela força) (1). Apesar de todos os desafios, a República Islãmica do Irã nunca fracassou numa consulta eleitoral em três décadas. Levou a cabo mais de trinta eleições nacionais. E, mais, estabeleceu uma tradição eleitoral ordenada, muito similar às circunscrições eleitorais nos EUA (election precincts) ou no Reino Unido (borough). As eleições no Irã são organizadas e vigiadas e os papeletes contados por professores e profissionais, inclusive funcionários e aposentados (de modo muito similar aos EUA).

Não existe uma tradição de fraude eleitoral no Irã.. Pense-se o que se quiser sobre o sistema da República Islãmica, mas seus juízes impugnaram ministros e lhes dificultaram o acesso (borked) (2) a vários presidentes, inclusive ao próprio Ahmadinejad. O que não são é funcionários burocratas que só carimbam. De fato, o antigo presidente Mohammad Khatami, considerado um dos principais reformisas no Irã, foi eleito presidente pelo povo quando o Ministério do Interior era dirigido por ultraconservadores. Venceu as eleições com mais de 70% dos votos não apenas uma vez, mas duas.

Quando se fala de eleições, o verdadeiro problema no Irã não é a fraude, mas o acesso dos candidatos aos votos (um problema que não é exclusivo do país, senão perguntem a Ralph Nader, ou a qualquer outro terceiro partido nos EUA). É altamente improvável que tenha havido uma ampla conspiração que implique dezenas de milhares de professores, profissionais liberais e funcionários em algo que, de algum modo, siga sendo totalmente oculto e sonegado aos olhos da opinião pública.

Ademais, enquanto Ahmadinejad pertence a um partido político ativo que já venceu várias eleições desde 2003, Mousavi é um candiato independente que apareceu na cena política apenas há três meses, depois de um intervalo de 20 anos. Durante a campanha se viu claramente que Ahmadinejad tinha capacidade de chegar a toda a nação: fez mais de sessenta viagens por todo o Irã em menos de doze semanas, enquanto seu oponente só fez campanha nas cidades maiores, e carecia de um aparato eleitoral sofisticado.

É verdade que Mousavi tem ascendência azeri. Porém, a presquisa do CPO acima mencionada e publicada antes das eleições observa que ‘seus resultados indicam que só 16% dos iranianos de etnia azeri votarão em Mousavi. Em troca, 31% dos azeris afirmaram que votariam por Ahmadinejad’. Ao final, segundo os resultados oficiais, a eleição naquela região foi muito mais concorrida do que no cômputo nacional. De fato, Mousavi ganhou por uma estreita margem na província ocidental azerbaidjana, mas perdeu a região para Ahmadinejad por uma diferença de uns 45 a 52% (ou de 1,5 a 1,8 milhões de votos).

Contudo, o duplo tratamento das agências de notícias ocidentais é assombroso. Richard Nixon derrotou esmagadoramente George McGovern no estado nativo deste, de Dakota do Sul, nas eleições de 1972.. Se Al Gore tivesse ganhado em seu estado natal, do Tennessee, em 2000, ninguém teria se importado com a recontagem de votos na Flórida, nem teria havido a nomeação de Bush por uma Corte Suprema. Se o candidato a vice John Edwards tivesse ganhado nos estados em que nasceu e foi criado (Carolina do Norte e Carolina do Sul), o presidente John Kerry agora estaria no cargo em seu segundo mandato. Porém, por alguma razão as salas de redação dos meios ocidentais no Oriente Médio escolhem seus candidatos não por seus méritos, mas em função da ‘tribo’ a que pertencem.

É fato que candidatos menores, como Karroubi, obtiveram menos votos do que o esperado, inclusive em suas regiões de origem, como denunciam os críticos, sem sair do lugar comum. Muitos eleitores chegam à conclusão de que não querem desperdiçar seus votos quando o quadro se define na disputa entre dois candidatos. Karroubi recebeu muito menos votos nesta eleição do que em 2005, inclusive em sua cidade natal. Do mesmo modo que Ross Perot perdeu em seu estado natal, o Texas, para Bob Dole, nativo do Kansas, em 1996, enquanto que, em 2004 Ralph Nader recebeu 20% dos votos que teve quatro anos antes.

Alguns observadores anotaram que quando os resultados oficiais foram anunciados, a margem de votos entre os candidatos se mantinha durante a recontagem. Isso não é, mais uma vez, mistério algum. Os especialistas assinalam que, geralmente, quando 3 ou 5% dos votos de uma dada região foram contados há 95% de segurança de que esse resultado será definitivo. E, quanto ao fechamento dos colégios eleitorais e das pessoas tendo de voltarem as suas casas, vale a pena mencionar que o tempo de votação foi extendido quatro vezes para permitir o quanto fosse possível que mais pessoas votassem. Porém, se dentre os que não votaram tivessem votado em Mousavi (algo virtualmente impossível), isso suporia uns 6,93 milhões de votos adicionais, muito menos do que os 11 milhões de votos de diferença entre os dois principais candidatos.

Ahmadinejad não é certamente uma figura simpática. É um ideólogo, é provocador e às vezes se comporta imprudentemente. Mas caracterizar a luta no Irã como uma batalha entre forças democráticas e um ‘ditador’ é exibir uma ignorância total das dinâmicas internas do Irã, ou distorcê-las deliberadamente. Não há qualquer dúvida de que existe um setor significativo da sociedade iraniana concentrado ao redor das áreas metropolitanas e composto sobretudo de gente jovem, que anseia apaixonadamente por liberdades civis. Estão compreensivelmente irritados porque seu candidato ficou muito atrás do esperado. Porém, seria um enorme erro interpretar esse desacordo nacional com um ‘levante’ contra a República Islãmica, ou um toque de atenção para que a política externa se acomode ao ocidente às expensas do programa nuclear iraniano, ou de seus interesses vitais.

Nações respeitam outras nações quando respeitam sua soberania. Se uma nação qualquer, por exemplo, quiser ditar suas políticas econômicas, sociais ou exterior aos EUA, os estadunidenses se indignariam. Quando a França do presidente Chirac se opôs à aventura norte-americana no Iraque em 2003, alguns congressistas estadunidenses rebatizaram suas batatas fritas (french fries) em de ‘freedom fries’ (liberdades fritas). E fizeram os franceses ficarem sabendo que não eram bem-vindos nos EUA.

Os Estados Unidos têm uma longa história de interferências nos assuntos internos do Irã, especialmente quando derrubaram o governo democraticamente eleito do primeiro ministro Mohammad Mossadegh em 1953. Esse ato, que muitos estadunidenses desconhecem, está muito presente na consciência dos iranianos, desde a sua infância. É a principal causa de boa parte de sua constante animosidade com os EUA. Foi preciso que se passassem 56 anos para que um presidente estadunidense reconhecesse esse ato ilegal: foi quando Obama o fez no começo do mês, no Cairo.

Por isso, seria um erro colossal interferir novamente nos assuntos internos do Irã mais uma vez. O presidente Obama está atuando sabiamente, deixando que os iranianos resolvam por si mesmos essa questão. Ater-se aos interesses políticos dos republicanos ou dos democratas pró-Israel seria extremamente perigoso e traria graves repercussões.. Uma conduta irresponsável como essa, de parte do grosso dos políticos dominantes e dos meios de comunicação parece novamente uma tentativa flagrante de demonizar o Irã e seu atual governo, para justificar dessa maneira qualquer ataque militar futuro de Israel, caso o Irã não dê o braço a torcer nas suas ambições nucleares.

As declarações do presidente Obama no Cairo estão sendo acertadamente lembradas. A esse respeito disse ao Irã: ‘Reconheço que será difícil superar décadas de desconfiança mútua, mas procederemos com coragem, retidão e determinação. Há muitas questões a debater entre nossos dois países, e desejamos dar um passo à frente, sem condições pré-estabelecidas, com base no respeito mútuo’.

Porém, o primeiro signo de respeito de mútuo é permitir aos iranianos que eles resolvam suas diferenças sem qualquer interferência, encoberta ou não.

(*) Esam Al-Amin é colaborador de Counterpunch.

Tradução: Katarina Peixoto

(1) Essa organização, a Mujahideen Khlaq Organization (Organização de Combatentes de Povo do Irã) armada foi fundada em 1965 e segue os escritos de Dr. Alí Shariati,uma mistura reivindicada de islamismo e marxismo. Perseguida pelo regime dos aiatolás, mudou-se para Paris e, em 1987, também para o Iraque, recibendo apoio econômico de Saddam Hussein até a queda do regime baaista. [Wikipedia: http://en.wikipedia.org/wiki/People%27s_Mujahedin_of_Iran]

(2) Este verbo ‘to bork’ tem sua primeira aparição atribuída ao Atlanta Journal Constitution, de 20 de agosto de 1987, segundo William Safire, do NYT. Safire define ‘to bork’ como ‘o modo como os democratas atacaram com ferocidade ao candidato de Ronald Reagan, o juiz do Tribunal de Apelação Robert H. Bork, no ano anterior’, de quem se elogiava sua aptidão técnica, mas se receava por ser políticamente tendencioso. Em março de 2002 o Oxford English Dictionary incluiu ol verbo ‘to bork’ para definir a quem ‘se evita de ser nomeado para un cargo público ativamente perseguido’.’

 

DEBATE ABERTO
Venício Lima

O STF e a grande mídia

‘Infelizmente, a maioria do STF ainda ‘acredita’ que a liberdade de imprensa tem hoje o mesmo significado que tinha na Inglaterra do século XVII onde ‘the press’ era apenas a tipografia onde indivíduos livres para imprimir e divulgar suas idéias estariam mais preparados para o autogoverno.

No curto período de sete semanas, o STF tomou duas importantes decisões que afetam diretamente o campo das comunicações no país: considerou não recepcionadas pela Constituição de 1988 duas normas legais oriundas do período autoritário, a saber, a totalidade da Lei 5.250/1967 (Lei de Imprensa) e a exigência de diploma de curso superior específico para o exercício da profissão de jornalista contida no Decreto Lei 972/1969.

Em ambos os julgamentos – independente das decisões finais – o STF, data venia, confirmou que a maioria de seus membros, no que se refere ao debate contemporâneo (acadêmico ou não) sobre o poder e a centralidade da mídia, vive período anterior às fusões, aquisições e joint ventures que fizeram emergir os conglomerados globais de comunicação e entretenimento na segunda metade do século passado quando, na verdade, já estamos imersos na capilaridade do ciberespaço.

Tanto no julgamento da ADPF 130 como no da RE 511961 é possível concluir que a maioria do STF:

(1) supõe uma inexistente ‘autonomia’ profissional que confunde o exercício individual da profissão de jornalista com o poder da ‘imprensa’, isto é, com o poder dos grupos empresariais que contratam e empregam os jornalistas, vale dizer, que são os seus patrões;

(2) supõe que o jornalista é senhor das pautas, vale dizer, daquilo que efetivamente é veiculado na mídia impressa ou eletrônica, ignorando que os jornalistas trabalham numa estrutura empresarial vertical e hierarquizada onde aqueles em posição de decisão editorial, lá estão porque são, eles próprios, os proprietários da empresa ou porque estão a eles ‘alinhados’;

(3) ignora que a atividade de jornalista não pode ser considerada uma extensão, sem mais, da liberdade de expressão simplesmente porque seu objeto não é a opinião mas, em tese, a notícia que deve ser isenta, imparcial e equilibrada. Aqueles que profissionalmente emitem opiniões na mídia – editorialistas, colunistas, articulistas, comentaristas, analistas – em sua maioria, nem sequer são jornalistas; e

(4) continua a considerar o Estado como a única ameaça à liberdade de expressão individual e à liberdade de imprensa, ignorando o poder de censura e controle dos próprios grupos de mídia privada, mesmo quando fundamenta o argumento jurídico em premissas que claramente conduzem a conclusões distintas.

Um exemplo emblemático

Em outra ocasião tratei do julgamento da ADPF 130 e agora quero, em particular, referir-me à parte do argumento contido no voto do relator do RE 511961 que, como ele mesmo afirma, já havia sido apresentado também no seu voto em relação à ADPF 130. Tomo como referencia o voto sem revisão disponibilizado AQUI.

Ao concluir a primeira parte do ‘mérito’, na qual considera a exigência do diploma como uma forma de controle estatal prévio sobre a liberdade de expressão, o relator passa sem mais do exercício profissional da profissão de jornalista para a ‘atividade jornalística’ ou para ‘a imprensa e seus agentes’. Afirma ele:

(…) O entendimento até aqui delineado não deixa de levar em consideração a potencialidade danosa da atividade de comunicação em geral e o verdadeiro poder que representam a imprensa e seus agentes na sociedade contemporânea (p. 69).

Para comprovar ‘a potencialidade danosa da atividade de comunicação em geral e o verdadeiro poder que representam a imprensa e seus agentes’, o relator faz várias citações – diga-se, absolutamente pertinentes – dos juristas Fritz Ossenbuhl, Manuel da Costa Andrade e Vital Rego. Vale a longa transcrição de parte delas:

O poder da imprensa é hoje quase incomensurável. Se a liberdade de imprensa nasceu e se desenvolveu (…) como um direito em face do Estado, uma garantia constitucional de proteção de esferas de liberdade individual e social contra o poder político, hodiernamente talvez represente a imprensa um poder social tão grande e inquietante quanto o poder estatal. É extremamente coerente, nesse sentido, a assertiva de Ossenbühl quando escreve que ‘hoje não são tanto os media que têm de defender a sua posição contra o Estado, mas, inversamente, é o Estado que tem de acautelar-se para não ser cercado, isto é, manipulado pelos media’ (…).

Nesse mesmo sentido são as ponderações de Vital Moreira: ‘No princípio a liberdade de imprensa era manifestação da liberdade individual de expressão e opinião. Do que se tratava era de assegurar a liberdade da imprensa face ao Estado. No entendimento liberal clássico, a liberdade de criação de jornais e a competição entre eles asseguravam a verdade e o pluralismo da informação e proporcionavam veículos de expressão por via da imprensa a todas as correntes e pontos de vista. Mas em breve se revelou que a imprensa era também um poder social, que podia afetar os direitos dos particulares, quanto ao seu bom nome, reputação, imagem, etc. Em segundo lugar, a liberdade de imprensa tornou-se cada vez menos uma faculdade individual de todos, passando a ser cada vez mais um poder de poucos. Hoje em dia, os meios de comunicação de massa já não são expressão da liberdade e autonomia individual dos cidadãos, antes relevam dos interesses comerciais ou ideológicos de grandes organizações empresariais, institucionais ou de grupos de interesse. Agora torna-se necessário defender não só a liberdade da imprensa mas também a liberdade face à imprensa’ (…).

O pensamento é complementado por Manuel da Costa Andrade, nos seguintes termos:

‘Resumidamente, as empresas de comunicação social integram, hoje, não raro, grupos econômicos de grande escala, assentes numa dinâmica de concentração e apostados no domínio vertical e horizontal de mercados cada vez mais alargados. Mesmo quando tal não acontece, o exercício da atividade jornalística está invariavelmente associado à mobilização de recursos e investimentos de peso considerável. O que, se por um lado resulta em ganhos indisfarçáveis de poder, redunda ao mesmo tempo na submissão a uma lógica orientada para valores de racionalidade econômica. Tudo com reflexos decisivos em três direções: na direção do poder político, da atividade jornalística e das pessoas concretas atingidas (na honra, privacidade/intimidade, palavra ou imagem)’ (…).

É compreensível, assim, que o exercício desse poder social muitas vezes acabe por ser realizado de forma abusiva. É tênue a linha que separa a atividade regular de informação e transmissão de opiniões do ato violador de direitos da personalidade. E os efeitos do abuso do poder da imprensa são praticamente devastadores e de dificílima reparação total.

Mais uma vez citem-se as sensatas palavras de Ossenbühl sobre os efeitos perversos e muitas vezes irreversíveis do uso abusivo do poder da imprensa:

‘Numa inextricável mistura de afirmações de fato e de juízos de valor ele (indivíduo) vê a sua vida, a sua família, as suas atitudes interiores dissecadas perante a nação. No fim ele estará civicamente morto, vítima de assassínio da honra (Rufmord). Mesmo quando estas conseqüências não são atingidas, a verdade é que a imprensa moderna pode figurar como a continuadora direta da tortura medieval. Em qualquer dos casos, é irrecusável o seu efeito-de-pelourinho’ (…). No Estado Democrático de Direito, a proteção da liberdade de imprensa também leva em conta a proteção contra a própria imprensa (pp. 69-71).

Diante de arrazoado tão incisivo, esperava-se que a sequencia do argumento clamasse, por exemplo, pela regulamentação do § 5º do artigo 220 da Constituição de 88, uma das disposições que se deve observar em relação à ‘ausência de restrições à manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo’, vale dizer:

‘Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio’.

O que o relator conclui, no entanto, além de contrariar a simples lógica, está na contramão das normas legais de estímulo e controle da competição no mercado das empresas de mídia que vigoram em países como os Estados Unidos (desde 1943) e a Inglaterra (desde 1949). Afirma ele:

É certo, assim, que o exercício abusivo do jornalismo implica sérios danos individuais e coletivos. Porém, mais certo ainda é que os danos causados pela atividade jornalística não podem ser evitados ou controlados por qualquer tipo de medida estatal de índole preventiva (sublinhado nosso, p. 71).

E, logo em seguida, conclui o relator:

(…) E, como analisado acima, não há razão para se acreditar que a exigência de diploma de curso superior de jornalismo seja uma medida adequada e eficaz para evitar o exercício abusivo da profissão (pp. 71-72).

Certamente a exigência de diploma superior específico de jornalismo para o exercício da profissão nada tem a ver com a oligopolização e a monopolização das empresas de mídia que controlam o mercado de informação e entretenimento, contrariando os princípios da pluralidade e da diversidade que constituem o fundamento básico da liberdade de expressão e da democracia.

Tipografia vs. conglomerados de mídia

Infelizmente, a maioria do STF ainda ‘acredita’ que a liberdade de imprensa tem hoje o mesmo significado que tinha na Inglaterra do século XVII onde ‘the press’ era apenas a tipografia onde indivíduos livres para imprimir e divulgar suas idéias estariam mais preparados para o autogoverno. Já faz tempo a velha ‘imprensa’ se transformou em uma poderosa instituição – na mídia, que é o coletivo dos diferentes meios impressos e eletrônicos – e não tem mais qualquer relação direta com a liberdade individual de expressão dos cidadãos.

A esperança para uma comunicação democratizada e um espaço público participativo está cada vez mais no avanço da inclusão digital e nos blogs, sítios de relacionamento, redes sociais virtuais, twiters e sítios alternativos de informação e entretenimento.

Enquanto isso o STF continua a equacionar liberdade de expressão com liberdade de imprensa, permanece nos tempos idílicos de uma ‘imprensa’ de poesia e literatura e, com isso, ajuda a prolongar o domínio da grande mídia sobre o espaço público em nosso país.

é Pesquisador Sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília – NEMP – UNB’

 

 

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