Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Agência Carta Maior

TV PÚBLICA
Beto Almeida

TV Brasil sinaliza nova etapa da comunicação pública

‘A TV Brasil, que já oferece aos brasileiros uma programação não capturada pela publicidade cervejeira e medicamentosa, que exibe apenas publicidade de valores cidadãos e humanizados, que já recupera em grande medida parte substancial do nosso audiovisual, além das conquistas civilizatórias de sua grade de programação, agora dá um passo à frente, criando a novidade democrática de discutir com a sociedade como se deve fazer televisão. O artigo é de Beto Almeida, presidente da TV Cidade Livre de Brasília.

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Com a presença de 3 ministros de estados ( Franklin Martins, Juca Ferreira e Sérgio Rezende) e transmitida ao vivo pelo canal NBR, a primeira audiência pública da TV Brasil inaugura uma nova etapa para a tv brasileira, dando continuidade a várias mudanças que o governo Lula tem realizado no sentido do fortalecimento da comunicação pública no Brasil. Esta audiência tem o simbolismo de se inscrever no processo de recuperação dos espaços públicos midiáticos, processo que ocorre também em vários países da América Latina, com o surgimento de emissoras públicas e estatais, com o nascimento de jornais públicos e de acesso popular como ‘Cambio’ , na Bolívia, e o ‘Correo del Orinoco’, na Venezuela, e com políticas de estado que permitem concretamente que os povos já tenham alternativas ao jornalismo consumista e de manipulação informativa sob o controle dos conglomerados privados.

Aqui no Brasil, com esta primeira audiência pública, onde o diálogo de ministros e público foi televisionado na íntegra, sem edições, a Empresa Brasil de Comunicação EBC, criada pelo governo Lula , marcou um golaço em termos de democracia participativa. Além desnudar toda a tagarelice acerca de interatividade alardeada pelas emissoras privadas, que jamais realizaram nem planejam realizar uma audiência pública – mesmo sendo detentoras de concessões públicas para uso do espaço rádio-elétrico que pertence à União. Na tv comercial, a democracia começa e termina no Departamento Comercial, no preço do anúncio, no jabaculê, no controle do mercado cartelizado sobre a programação, ditando seu vale-tudo rebaixador dos conteúdos cada vez mais animalizados.

A TV Brasil, que já oferece aos brasileiros uma programação não capturada pela publicidade cervejeira e medicamentosa, que exibe apenas publicidade de valores cidadãos e humanizados, que já recupera em grande medida parte substancial do nosso audiovisual que luta para sair da clandestinidade, agravada após a demolição da Embrafilme, além das conquistas civilizatórias de sua grade de programação, agora dá um passo à frente, criando a novidade democrática de discutir com a sociedade como se deve fazer televisão. Só uma empresa no campo do poder público pode fazer isto, colocando ministros de estado, seu Conselho Curador, seus diretores e parte de seus funcionários diante do público e de para ouvir críticas e propostas de superação e de consolidação do que já está sinalizado desde que Lula decidiu montar a TV Brasil cumprindo com o seu programa de campanha de 2002: a criação de uma TV pública constava do documento-compromisso ‘A imaginação a serviço do Brasil’, assumido pelo presidente.

Audiência convoca para fazer tv de novo modo

Claro que uma novidade democrática como uma audiência pública para debater como fazer televisão é também uma oportunidade tão singular que revela também desconcerto por parte do público participante, confundindo prioridades. Tal como declarou o Ministro Franklin Martins, muito tempo da audiência foi dedicado ao debate de conceitos, quando o fundamental, que estava diante de todos e da sociedade que assistia pela TV era uma preciosa oportunidade para a apresentação de idéias e propostas sobre como fazer uma nova televisão. A missão pública da TV Brasil já vem sendo crescentemente revelada, construída e comprovada em parte pela sua própria programação. Primeiro, ao mostrar o Brasil por inteiro, todas as suas regiões e manifestações sociais e culturais, sem praticar a desigualdade regional-informativa, buscando o cumprimento da Constituição. Também ao mostrar a América Latina e a África, sobretudo por exibir documentários como, por exemplo, a luta do povo de Angola, com ajuda de Cuba para derrotar o exército racista na Batalha de Cuito Cuanavale, que, para Mandela, significou ‘o começo do fim apartheid’. Jamais documentários como este foram exibidos na tv brasileira em toda sua existência.

Muitos dos conceitos debatidos a longa data pelos movimentos de democratização da comunicação e também na academia já se transformaram em realidade, em fatos, em nova programação televisiva, muito embora haja muito por ser superado, sobretudo no campo do jornalismo ainda convencional praticado pela TV Brasil. No entanto, não foi este o tema mais debatido, quando na discussão conceitual a própria universidade brasileira e seus laboratórios de comunicação continuam em dívida com a sociedade brasileira já que, embora há décadas debatam e debatam um modelo de tv pública, ainda não chegaram a qualquer proposta objetiva. Lula tinha uma: a TV Brasil, que estava no Seminário de Comunicação e Cultura do PT, realizado em 2002. Enquanto estamos com uma tv no ar, saldando parcialmente a dívida informativo-cultural contra o povo, realizando mudanças, avançando em novidades democráticas, como a realização de audiências públicas democráticas, razoavelmente acessíveis e televisionadas, há quem ainda insista num debate predominantemente acadêmico.

A oportunidade foi criada, mas talvez pudesse ter sido ainda mais plenamente bem aproveitada, exatamente porque trata-se de uma novidade democrática. Vale lembrar que boa parte das reivindicações dos diferentes movimentos que constituem a luta pela democratização da comunicação já são atendidas pela própria programação da TV Brasil. Não há propaganda violentando direitos das crianças, não se cultua o álcool, nem se iconiza a velocidade ou o consumismo de guloseimas quando diabetes, obesidade e doenças cardíacas assumem estatísticas epidêmicas. Há documentários de importância histórica e política imensa, filmes nacionais finalmente democratizados e tirados do ostracismo.

Jornalismo da integração

No entanto, o jornalismo da TV Brasil continua desafiado a apresentar mudança de conceitos, não de apenas de formatos como argumentou-se durante a audiência. Para exemplificar, há uma mudança política importantíssima no cenário latino-americano, com muitos países recuperando a soberania sobre suas próprias riquezas nacionais, escapando dos controles imperialistas sobre as práticas comerciais impositivas, alterando a composição e as políticas de organismos de sombria trajetória como a OEA. E há, sobretudo, um conjunto de iniciativas para a integração regional, inclusive, em muitos casos, com a dispensa de operações em dólar, como entre Brasil e Argentina. Que diante deste conjunto expressivo de mudanças a mídia comercial continue a dizer que a criação da Unasul, do Banco do Sul, da Unila, etc é apenas retórica itamarateca, passando informações manipuladas e descontextualizadas para afirmar que há fracasso nestas políticas, não há nenhuma surpresa pois está praticando o seu jornalismo de desintegração, em sintonia com o objetivos das transnacionais que querem a América Latina desunida, confrontada, para melhor rapiná-la. Mas, que o jornalismo da TV Brasil não seja capaz de apresentar uma nova concepção de notícia diante desta riqueza de experiências transformadoras, é um contra-senso com a novidade que a própria TV Brasil encarna, e um conservadorismo que leva a que a sociedade brasileira não tenha informação alternativa para perceber o que já ocorre concretamente com, por exemplo, o verdadeiro Mercosul Social em curso, medidas de cooperação e integração entre municípios de fronteira, na esfera de políticas. Tudo isto sonegado.

Alguns exemplos ainda não explorados pelo jornalismo da TV Brasil frente ao jornalismo da desintegração: lançada a campanha midiática contra a adesão da Venezuela ao Mercosul, o jornalismo da integração, sintonizado com nossa Constituição, poderia mostrar a importância da integração energética entre Brasil e Venezuela, pela qual Roraima já é abastecida pela Hidroelétrica venezuelana de Guri, quando antes era iluminada por poluentes e caras termoelétricas a diesel. Eis aí o único ‘perigo’ da cooperação com a Venezuela: mais progresso social, menos dependência de petróleo, menos poluição etc. Outra possibilidade de exploração pelo jornalismo da TV Brasil, se adotasse outra concepção de notícia: quanto já foi economizado com o início das operações bilaterais entre Brasil e Argentina sem a presença da moeda inconfiável do dólar, ademais, emitida sem lastro? Quanto se pode explorar jornalisticamente deste fato, inclusive do ponto de vista simbólico, localizado nesta soberana dispensa ao dólar?

Honduras, TV e solidariedade

Ainda partindo do cenário da integração promovida por vários governos, a própria cobertura sobre o golpe em Honduras poderia ter sido muito superior a partir da simples cooperação com Telesur que transmitiu ao vivo praticamente todos os dias do golpe, da resistência e também da gigantesca manifestação que esperava a chegada do presidente Manoel Zelaya. A TV Cidade Livre de Brasília retransmitiu o sinal de Telesur e recebeu inúmeras manifestações informais de reconhecimento, especialmente de membros do governo, dada a relevância o fato televisionado. Não poderia tudo isto ter sido feito pela TV Brasil? O que impediu? Recursos técnicos? Não, apenas a necessidade de se adotar novos conceitos para o jornalismo, conceitos que podem ser colocados em prática imediatamente, o que não seria possível numa tv privada onde o jornalismo depende do departamento comercial. No caso da TV Brasil, o patrocinador é o povo brasileiro e a linha mestra editorial é a Constituição Brasileira, que compromete-se com a integração latino-americana. E esta integração tem que ser também informativa e cultural. E teria sido a solidariedade política do povo e do governo brasileiro para com o povo de Honduras, pois, dado o seu simbolismo para o momento, todos os povos fomos alvos do golpe de estado hondurenho.

A criação da Sociedade dos Amigos da TV Brasil

Dentre as várias propostas apresentadas na Audiência uma destina-se a agregar participação do público para um diálogo propositivo e organizado da TV Brasil com o telespectador. Trata-se da idéia da criação de uma Sociedade Brasileira dos Amigos da TV Brasil, com capacidade tanto de estimular por parte do público a qualificação de sua leitura crítica televisiva, criando mais canais pelos quais (além da Ouvidoria que só a EBC possui) os impactos da programação em diferentes partes do país sejam captados, comunicados, refletidos de modo organizado e regular, fazendo com que se desenvolva por meio de uma emulação e fruição de opiniões e propostas, uma noção de pertencimento e co-responsabilidade do público em relação à emissora pública.

Esta Sociedade estimularia a participação crítica dos telespectadores – idéia rigorosamente desprezada e vetada na tv comercial – na linha de uma cidadania televisiva. Diante da baixaria televisiva privada, devemos zelar, consolidar e qualificar a tv que nos pertence diretamente, assumindo como coletivo, e não apenas pelos seus dirigentes, o desafio de uma televisão cada vez mais humanizadora, um contribuição brasileira para a tv mundial. Mas que também seja capaz de disputar audiência, sem ilusões com o diletantismo da tese que defende indiferença diante do número de telespectadores sintonizados . Em se tratando de política pública de comunicação e de televisão em particular, será temerário cultivar a idéia de que devemos ser indiferentes se milhões de brasileiros seguem capturados por uma programação embrutecedora da tv comercial que reforça práticas anti-cidadãs, anti-democráticas na sociedade. Deve-se colocar como problema de todos, coletivo, que a TV Brasil tem o direito de pretender ter audiência e que para isto deva também ter uma programação de entretenimento sadio e inteligente, até mesmo aceitando o desafio de produzir, quando possível, teledramaturgias culturalmente elevadas, sobretudo para oferecer ao povo a chance de conhecer em profundidade a vida de personagens relevantes de nossa história tais como Santos Dumont, Euclides da Cunha, Villa-Lobos, no bem sucedido formato de telenovelas..

Como desdobramento, é importante levantar o debate sobre o legítimo direito da TV Brasil em não se submeter às várias formas de reservas de mercado impostas pela TV comercial, com o concurso de recursos públicos. A TV Brasil pode e deve pretender ter uma programação de futebol e demais esportes de massa, de Carnaval e demais festas populares (como já começa a experimentar com sucesso o São João Nordestino) e também não se sujeitar à verdadeira reserva de mercado informal existente para a telenovela. Tal como disse o presidente do Conselho Curador da EBC, Luiz Gonzaga Beluzzo: a TV Brasil também deveria poder transmitir o Campeonato Brasileiro, o que no fundo indica que há uma legítima resistência que precisa ser organizada contra a tendência de privatização da transmissão de futebol pela filosofia da tv paga, dificultando cada vez mais que os brasileiros tenham acesso a umas de suas grandes paixões. Absurdo: quanto mais tecnologia televisiva, menos acesso para a grande maioria à totalidade dos jogos!

Leitura crítica da comunicação

Existe um clamor difuso na sociedade brasileira contra a programação degradante das tvs comerciais, mas há evidentemente um captura de sua audiência ainda em razão da não existência de alternativas na TV Pública com a força, a decisão e a qualificação para fazer plenamente e ‘pra valer’ uma disputa de audiência. Um componente deste intrincado problema é a inexistência de uma prática de leitura crítica da televisão – mesmo estando nas emissoras da EBC as raras oportunidades para que isto se realize, nos programas da Ouvidoria e no Ver TV – e é isto também que poderia ser estimulado com a criação da Sociedade dos Amigos da TV Brasil, com debates bem organizados, com a publicação de textos, com a realização de encontros, inclusive com multi-auditórios e com transmissão simultânea. Trata-se de investir em democracia televisiva. Não devemos deixar passar esta oportunidade preciosa como antes ocorreu, quando em 2004 o Presidente Lula criou a RTVI (Rede de TVs Institucionais) tendo sido combatido oficialmente tanto pela Abert como pela Fenaj. Sem apoio, desistiu da iniciativa, até porque o governo vivia outras dificuldades e o tema comunicação só foi retomado mais tarde com a criação da EBC e da TV Brasil.

Esta linha de fortalecimento da comunicação pública, da qual fazem parte a nova política de democratização dos anúncios públicos, a criação do Blog da Petrobrás e até mesmo presença de Lula diretamente no jornalismo com sua coluna ‘O presidente responde’, é indicadora de condições para novos passos à frente, sobretudo para um formato mais democrático da tv digital, assegurando de fato pluralidade, diversidade, regionalização e humanização. Este é um tema para a Conferência Nacional de Comunicação, que também é uma novidade democrática, tirando o tema da penumbra dos tabus e tornando-o agenda do governo e da sociedade.

Com sua primeira audiência a TV Brasil dá um passo bem significativo no rumo de conquistar novos modos de fazer e de ver tv, tanto para se perceber os limites a corrigir e superar, mas sobretudo por ser esta novidade democrática de imensa significação política para o fortalecimento das políticas públicas. A audiência também funciona como uma espécie de convocação à sociedade para o desenvolvimento e até mesmo para a invenção de novos instrumentos capazes de sustentar, dialogar, questionar e consolidar a TV Brasil e o seu modo de fazer televisão e jornalismo como direito e tarefa de todos.

(*) Beto Almeida é presidente da TV Cidade Livre de Brasília.’

 

PUBLICIDADE
Gilson Caroni Filho

Sem colarinho, a espuma mercantil da publicidade

‘Até que ponto a publicidade, mais do que produtos, vende relações capitalistas que precarizam a vida? Se técnicas de apelo pela imagem, música e embalagem fazem parte da estética da mercadoria, qual a singularidade possível para indivíduos que são validados unicamente por sua capacidade de se definir como consumidores do fetiche?

Os artigos de Emir Sader e Eduardo Galeano, publicados recentemente em Carta Maior, reacenderam um velho debate. Até que ponto a publicidade, mais do que produtos, vende relações capitalistas que precarizam a vida? Não é o caso de pensarmos o marketing apenas como artifício de venda, mas como elemento estruturador de controle social. Se técnicas de apelo pela imagem, música e embalagem fazem parte da estética da mercadoria, qual a singularidade possível para indivíduos que são validados unicamente por sua capacidade de se definir como consumidores do fetiche? Como compradores encantados de produtos que lhes parecem sobre-humanos, destituídos de história.

Há cinco anos, o fascínio do produto sobre o produtor, ‘a velha consciência invertida de uma realidade invertida’ de que nos falou o materialismo histórico, ocupou páginas e telas. Sorrateiramente o discurso publicitário apresentou o estatuto ontológico do homem no consumo espetacular; seu discurso de palavras evanescentes, entrecortadas pelo vazio mercantil. É importante voltar no tempo e resgatar o episódio.

‘Corações e Mentes’ é o título de um documentário sobre a guerra do Vietnã, exibido nos anos 1970. Fosse produzido no início do século 21, em solo brasileiro, talvez retratasse outro embate: o da guerra das cervejas.

Tudo começou, naquele início de 2004, quando um sambista ‘abandonou’ sua marca preferida de cerveja (Brahma) pela concorrente (Schincariol), aconselhou aos demais a fazerem o mesmo e, sob irrecusáveis três milhões de reais, mudou de opinião e voltou à predileção inicial. A trama, aparentemente banal, é por demais significativa para ser ignorada por quem se propõe a analisar o discurso noticioso em suas interações com o marketing.

Campo tensional por excelência, jornalismo e publicidade sempre viveram uma relação de complementaridade conflitante. Se a convivência era necessária, em que momento haveria o risco de um vir a ser confundido com o outro? Quando o discurso noticioso, despido de suas fantasias de objetividade e isenção, tomaria o fato publicitário como objeto jornalístico? E mais, ainda, o roteirizariam como um caso de amor, tal como pretendiam os anunciantes?

O amor romântico, concebido na renascença, não envolve apenas o casal enamorado. Cala fundo no imaginário e enlaça a todos nas juras, desditas e desventuras dos amantes. A empatia da narrativa folhetinesca prende a respiração de quem a lê ou ouve. Impossível ficar indiferente. Afinal, sejamos sinceros, quem nunca teve um amor de verão? Tão insensato quanto fugaz, até encontrar aquele que, por ser o verdadeiro, redefine sentidos e restitui a inteireza afetiva do apaixonado.

A trama do sambista e da cerveja que envolveu o noticiário conteve todos os ingredientes requeridos pelo gênero: traição, arrependimento, reconciliação e imprecações da amante abandonada. Ocupou espaços generosos nas primeiras páginas dos principais jornais, produziu reflexões supostamente éticas em colunistas entediados e análises formuladas a partir de várias angulações. Grosso modo podemos dizer que, ao longo de um trimestre, Zeca Pagodinho não mais experimentava a Ambev o espremia, a Schin espanava e a imprensa espumava. Subsumido pelo marketing que parece anunciar o fim da intermediação, o jornalismo se assumia como apêndice.

Talvez tais episódios reflitam um processo mais amplo. O fetichismo da mercadoria que alcança o campo jornalístico não é um acontecimento súbito. Basta uma leitura rápida nas editorias de economia para observar a qualidade da análise produzida pelos articulistas mais renomados, bem como o tratamento dispensado ao noticiário macroeconômico. Índices e categorias são tratadas como manifestações concretas, explicáveis per si, dispensando qualquer referência ao contexto histórico em que são produzidas.

Seria o caso de relembrar dois alertas de Marx: ‘As categorias econômicas não são mais que abstrações das relações sociais’; ou, quando se refere à fraude de economia burguesa que se pretendia natural, denuncia economistas que percebem as leis econômicas como ‘leis eternas que devem reger sempre a sociedade. De modo que até agora houve história, mas agora já não há’(Miséria da Filosofia).

Há mais de 150 anos, o materialismo histórico prenunciava o surgimento do pensamento único. Se alguém pretende ler uma coluna, que, sob um pretenso didatismo, nada mais faz que entronizar os axiomas do capitalismo financeiro, deve, por exemplo, visitar ‘Panorama Econômico’ do jornal O Globo. Desconfiem da clareza do texto de Miriam Leitão.. Às vezes simplicidade implica simplificação grosseira. Renúncia à análise e entrega do espaço a consultores de corporações e grandes bancos. Tudo estupidamente gelado.

Não há como ignorar que a ética que preside a produção capitalista é o lucro. Se considerarmos mercadoria tudo o que tem valor de uso e de troca, terá muito sentido cobrar das partes envolvidas posicionamentos que colidam com a lei do valor? Numa esfera em que os homens se coisificam e as coisas se humanizam, Zeca Pagodinho, Schin e Brahma puderam enfim se amar (ainda que dure uma estação), trair, e urdirem vinganças (na resposta da Schin, um homem afirmava que por 3 milhões de reais faria qualquer coisa) sem qualquer problema de ordem moral.

Já vivemos o amor de Romeu e Julieta e Tristão e Isolda. Ambos denunciavam a intolerância. Hoje, o amor possível, um dos poucos a agregar valor, parece ser o do pagodeiro pela sua cerveja. Aguardemos os próximos capítulos que nos serão servidos pelas campanhas veiculadas em jornais, revistas e televisão. Com precisão, riqueza de detalhes e colarinho.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil’

 

Eduardo Galeano

A palavra e a publicidade

‘Se você busca a verdade, beba a cerveja Heineken. Quer autenticidade? Fume cigarros Winston. Busca a rebeldia? Compre uma máquina Canon.. Está inconformado com a situação do mundo? Coma um hambúrguer da Burger King. Deseja afirmar sua personalidade? Use um cartão Visa. Quer defender o meio ambiente? Espelhe-se no exemplo da Shell. Hoje em dia, a publicidade tem a seu cargo o dicionário da linguagem universal. Se ela, a publicidade, fosse Pinóquio, seu nariz daria várias voltas ao mundo. O texto é de Eduardo Galeano.

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Hoje em dia, a publicidade tem a seu cargo o dicionário da linguagem universal. Se ela, a publicidade, fosse Pinóquio, seu nariz daria várias voltas ao mundo.

‘Busque a verdade’: a verdade está na cerveja Heineken.

‘Você deve apreciar a autenticidade em todas suas formas’: a autenticidade fumega nos cigarros Winston.

Os tênis Converse são solidários e a nova câmara fotográfica da Canon se chama Rebelde: ‘Para que você mostre do que é capaz’.

No novo universo da computação, a empresa Oracle proclama a revolução: ‘A revolução está em nosso destino’. A Microsoft convida ao heroísmo: ‘Podemos ser heróis’. A Apple propõe a liberdade: ‘Pense diferente’.

Comendo hambúrgueres Burger King, você pode manifestar seu inconformismo: ‘Às vezes é preciso rasgar as regras’.

Contra a inibição, Kodak, que ‘fotografa sem limites’.

A resposta está nos cartões de crédito Diner’s: ‘A resposta correta em qualquer idioma’. Os cartões Visa afirmam a personalidade: ‘Eu posso’.

Os automóveis Rover permitem que ‘você expresse sua potência’, e a empresa Ford gostaria que ‘a vida estivesse tão bem feita’ quanto seu último modelo.

Não há melhor amiga da natureza do que a empresa petrolífera Shell: ‘Nossa prioridade é a proteção do meio ambiente’.

Os perfumes Givenchy dão eternidade; os perfumes dão eternidade; os perfumes Dior, evasão; os lenços Hermès, sonhos e lendas.

Que não sabe que a chispa da vida se acende para quem bebe Coca-Cola?

Se você quer saber, fotocópias Xerox, ‘para compartilhar o conhecimento’.

Contra a dúvida, os desodorantes Gillette: ‘Para você se sentir seguro de si mesmo’.’

 

IMPRENSA NA JUSTIÇA
Idelber Avelar

A história de Lúcio Flávio Pinto, jornalista condenado por fazer jornalismo

‘Lúcio Flávio Pinto talvez seja hoje o jornalista mais respeitado e destemido da Região Norte. Ele é o solitário redator do Jornal Pessoal, empreitada independente, que não aceita anúncios, tem tiragem quinzenal de 2 mil exemplares. Há 17 anos, os representantes da família Marinho no Pará (O Liberal) perseguem-no de forma implacável. Ronaldo Maiorana, um dos donos do Grupo Liberal já emboscou Lúcio por trás, num restaurante, e espancou-o com a ajuda de dois capangas da Polícia Militar. Agora, um juiz do Pará condenou Lúcio Flávio a pagar 30 mil reais aos irmãos Maiorana.. O artigo é de Idelber Avelar.

Artigo publicado no blog O Biscoito Fino e a Massa.

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Prepare-se, caro leitor, para outro mergulho no Brasil profundo. Lúcio Flávio Pinto talvez seja hoje o jornalista mais respeitado e destemido da Região Norte. Ele é o solitário redator do Jornal Pessoal, empreitada independente, que não aceita anúncios, tem tiragem quinzenal de 2 mil exemplares e mesmo assim provoca um fuzuê danado entre os poderosos, dada a coragem com que Lúcio investiga falcatruas e crimes. Lúcio já ganhou quatro prêmios Esso. Recebeu também dois prêmios da Federação Nacional dos Jornalistas em 1988, por suas matérias dedicadas ao assassinato do ex-deputado Paulo Fonteles e à violenta manifestação de protesto dos garimpeiros de Serra Pelada. Em 1997, ele recebeu o Colombe d’Oro per la Pace, um dos mais importantes prêmios jornalísticos da Itália. Em 1987, foi o jornalista que investigou o rombo de 30 milhões de dólares no Banco da Amazônia, por uma quadrilha chefiada pelo presidente interino do banco e procurador jurídico do maior jornal local, O Liberal.

Há 17 anos, os representantes paraenses da corja comandada pela família Marinho perseguem-no de forma implacável. Ronaldo Maiorana, dono (junto com seu irmão, Romulo Maiorana Jr.) do Grupo Liberal, afiliado à Rede Globo de Televisão, emboscou Lúcio por trás, num restaurante, e espancou-o com a ajuda de dois capangas da Polícia Militar, contratados nas suas horas vagas e depois promovidos na corporação. O espancamento, crime de covardia inominável, só rendeu a Maiorana a condenação a doar algumas cestas básicas.

Alguns meses depois da agressão, Lúcio foi convidado pelo jornalista Maurizio Chierici a escrever um artigo para um livro a ser publicado na Itália. O texto, eminentemente jornalístico, relatava as origens do grupo Liberal. Em determinado momento, dentro de um contexto bem mais amplo, ele fez referência às atividades de Maiorana pai no contrabando, prática bem comum, aliás, na Região Norte na época. Como se pode depreender da leitura do artigo, nada ali tinha cunho calunioso, posto que – uma vez processado –, Lúcio anexou aos autos toda a documentação que provava a veracidade do que afirmava. A obra investigativa de Lúcio fala por si própria: veja a qualidade da prosa e da pesquisa que informa o trabalho de Lúcio e julgue você mesmo. O que ele oferece em seus textos, entre muitas outras coisas, é a documentação, história e raízes daquilo que é sabido até mesmo pelos mosquitos do mercado Ver-o-Peso: que n’O Liberal só se publica aquilo que é de interesse da corja dos Marinho.

Mas eis que chega do Pará a estranha notícia de que o juiz Raimundo das Chagas, titular da 4ª vara cível de Belém, condenou Lúcio a pagar a soma de 30 mil reais aos irmãos Maiorana – representantes paraenses, lembrem-se, da organização comandada pelos Marinho. Lúcio também foi condenado a pagar as custas processuais e os honorários advocatícios. A pérola de justificativa do juiz fala do ‘bom lucro’ de um jornal artesanal, de tiragem de 2 mil exemplares por quinzena. Ainda por cima, o juiz proíbe Lúcio de usar ‘qualquer expressão agressiva, injuriosa, difamatória e caluniosa contra a memória do extinto pai dos requerentes e contra a pessoa destes’, o que constitui, segundo entendo, extrapolação característica de censura prévia contrária à Constituição Federal. O juiz fundamenta sua decisão dizendo que Lúcio havia ‘se envolvido em grave desentendimento’ com eles. É a velha praga do eufemismo: um espancamento pelas costas se transforma em ‘desentendimento’. A reação de Lúcio à sentença pode ser lida nesse texto.

O Biscoito se solidariza com Lúcio, coloca o site à disposição para o que for necessário – inclusive para a publicação de qualquer material objeto de censura prévia – e suspira de cansaço ao fazer outro post que mais parece autoplágio, dada a tediosa repetição desses absurdos. Resta a pergunta: até quando os Frias, Marinho, Civita, Mesquita e seus comparsas vão manter esse poder criminoso Brasil afora?’

 

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