Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Agência Carta Maior

CRISE
Emir Sader

A crise da mídia e a democracia

‘A inquestionável crise da mídia brasileira se choca com um processo de maior democratização da sociedade brasileira o que, por si só, deveria levar a pensar o caráter tanto da imprensa no Brasil, quanto da própria democracia entre nós.

O que está em crise é a forma de produzir notícias, a forma de construção da opinião pública. Seria grave se a dimensão da crise que afeta a mídia refletisse, nas mesmas dimensões, a democracia no Brasil. Ao ler alguns órgãos da imprensa, pode-se ter a impressão que a democracia retrocede e não avança entre nós, que estamos à beira de uma ditadura, ao invés de um processo – lento, mas claro – de democratização da sociedade brasileira.

Cada classe social toma sua decadência como a decadência de toda a sociedade, quando não de toda a humanidade. Neste caso, é uma casta que controlou a formação da opinião pública, de forma monopólica e que, com isso, se considerou depositária dos interesses do país. Derrubou a Getúlio, contribuiu decisivamente para o golpe militar de 1964 e para o apoio a este, uma parte dela tentou desconhecer a campanha pelas eleições diretas, tentou impedir a vitória de Brizola nas primeiras eleições diretas para governador do Rio de Janeiro, apoiou a Collor, esteve a favor de FHC, a ponto de desconhecer a evidente corrupção presente nos escândalos processos de privatização, na compra de votos para a reeleição, entre tantos outros casos. Agora, se coloca, em bloco, contra o governo Lula, o de maior popularidade na história do Brasil, chocando-se assim flagrantemente com a opinião do povo brasileiro.

A mídia tradicional está em crise, a democracia brasileira, não. Porque se amplia significativamente o circulo de produção de opinião, de difusão de noticias, se democratiza a informação e os que são afetados pelo enfraquecimento do seu monopólio oligárquico – em que umas poucas famílias controlavam a mídia – esbravejam. Tentam impedir a realização da Conferência Nacional de Comunicação, convocada para novembro, porque detestam que se debata o tema da democracia e a mídia..

A crise do poder legislativo é parte do velho poder oligárquico, que sobreviveu na passagem da ditadura à democracia, que se vale do fisiologismo para vender seu apoio aos governos de turno. Não por acaso os mesmos personagens envolvidos nas acusações atuais no Congresso apoiariam ao governo FHC e, com o beneplácito da mídia, foram poupados das acusações agora dirigidas contra eles, na tentativa de enfraquecer a base de apoio parlamentar do governo. Enquanto o Brasil se torna mais democrático, com a promoção social de dezenas de milhões de famílias, a estrutura parlamentar reflete o velho mundo oligárquico, similar ao da propriedade da mídia privada.

No momento em que o Brasil precisa de uma nova mídia, uma nova forma de difundir notícias, de promover o debate econômico, político, cultural, a velha mídia resiste em morrer, em dar lugar à democratização que o Brasil precisa. Sabem que a continuidade do governo atual e o aprofundamento dos processos de saída do modelo herdado do governo FHC sepultarão toda uma geração de políticos opositores – derrotados pelas urnas e/ou pela senilidade. Daí seu desespero na luta contra o governo – que conta com 6% de rejeição a Lula, contra 80% de apoio.

A crise da mídia é outro reflexo do velho mundo que desmorona, para dar lugar à construção de um Brasil para todos e não para as elites minoritárias que historicamente o dirigiram.’

 

TV PÚBLICA
Beto Almeida

Comunicação pública: os novos desafios para a TV Brasil

‘O editorial da Folha soa como declaração de guerra contra a comunicação pública. A TV Brasil deveria tomar-se em brios, aproveitando esta estapafúrdia recomendação da concorrente para não apenas seguir avançando naquilo que tem acertado com uma grade de programação humanista, educativa, respeitadora da diversidade cultural e histórica brasileira, sem concessões à imposição da ditadura publicitária cervejeira ou medicamentosa que domina a mídia privada. O artigo é de Beto Almeida.

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Não surpreende o editorial do jornal Folha de São Paulo pedindo o fechamento da TV Brasil a pretexto desta ser irrelevante e gastar muito. Não será a primeira vez que a Folha incorre em posições antagônicas ao previsto na Constituição. Antes, a Folha participou do esquema de repressão a cidadãos brasileiros montados pela ditadura e esta é uma página inapagável na história deste jornal que não tem como reivindicar, sem a causar risos, liberdade de expressão e direitos humanos.

Mas, agora a Folha, cuja tiragem de exemplares despenca ladeira abaixo – seria bom se pudéssemos também conhecer a ‘voltagem’ de exemplares rejeitados pelo escasso público leitor – vem novamente afrontar um dispositivo constitucional, aquele que prevê a complementaridade entre sistemas público, privado e estatal de comunicação. Embora não tenha oferecido os instrumentos para a realização concreta deste equilíbrio salutar e democrático entre modelos comunicativos, os constituintes foram sábios, como revelou o saudoso senador Arthur da Távola, indicando que as gerações futuras saberiam construir as condições políticas para que a nefasta tirania do mercado sobre a comunicação fosse corrigida e superada, tornando este artigo da Constituição uma realidade, que ainda não é.

Um passo concreto para começar a inverter este desequilíbrio que tem como efeitos submeter a sociedade brasileira a uma comunicação embrutecedora, sensacionalista e deseducativa, foi a criação da TV Brasil, por meio da constituição da Empresa Brasil de Comunicação, de posse do estado brasileiro. Sabemos como é complexa a constituição de uma emissora de televisão, a superação de sua herança de jornalismo oficialista-bajulativo – o que já vinha sendo processado pelas gestões recentes da ex-Radiobrás – mas também a resistência às pressões de fato e de direito para realizar outra concepção de comunicação. Tão é complexo isto que a própria Folha se vê às voltas com queda vertiginosa de suas tiragens, jornais como a Gazeta Mercantil e a Tribuna da Imprensa fecharam as portas, fenômeno que também ocorre nos Eua e na Europa hoje, tendo o legendário jornal ‘Le Monde’ também confessado recentemente estar em meio à vigorosa crise.

Mas, diante dos desafios de fazer uma tv de novo tipo, sintonizada com a Constituição, que prega a uma comunicação humanista, educativa, brasileira, regionalizada, diversificada – nada disso é praticado pelas tvs comerciais brasileiras – qual a solução apontada pela Folha para a TV Brasil que está apenas iniciando sua caminhada e já registrando elementos positivos na grade de programação que apresenta ao público? Fechar!

Repitamos: ao invés de solicitar que a TV Brasil siga no seu esforço para cumprir sim o que está previsto na Constituição, fazendo uma tv sem marca da tv privada que com mais de 50 anos de existência – sempre privilegiada pelos recursos públicos que lhe permitiram erguer-se como conglomerados poderosos, e, até mesmo exorbitar para uma atuação política não respaldada em lei – a Folha pede simples e candidamente que se feche a TV Brasil!

O fechamento da Embrafilme

Tivemos exemplos anteriores em que a demolição do instrumentos públicos de comunicação e cultura – apoiados pela mídia privada, a Folha inclusive -resultou em prejuízos para o Brasil, a nossa cultura, a nossa indústria de audiovisual. Refiro-me à extinção da Embrafilme. Quando ela existia, o filme brasileiro de maior bilheteria da história foi ‘Dona Flor e seus dois maridos’, baseado na obra genial do baiano Jorge Amado. Naquela época, o cinema brasileiro chegou a ocupar 40 por cento do mercado.. Uma campanha orquestrada de fora, com o apoio da mídia que embora se diga ‘a serviço do Brasil’ trabalhou contra o audiovisual brasileiro e favoravelmente à ocupação deste mercado pela produção audiovisual oligopólica norte-americana, fez com que hoje o mercado cinematográfico brasileiro seja ocupado em mais de 90 por cento por filmes de Hollywood.

Não por filmes estrangeiros genericamente, mas apenas por filmes de Hollywood, que lá recebe estratégico apoio estatal. Não apenas porque como disse um dos ocupantes da Casa Branca ‘aonde vão os filmes norte-americanos, também vão as nossas mercadorias’, mas, sobretudo porque mantém acesa, renovada e agressiva a estratégica de ocupação e de expansionismo dos chamados interesses vitais do império. Eles enviam os filmes, contratam bolsistas, compram ações da Petrobrás com dólar emitido sem lastro-ouro, depois enviam tropas para o Iraque, Colômbia e renovam a Quarta Frota, que é muito mais que uma base flutuante sobre os limites do petróleo pré-sal, lembrando que não reconhecem o mar territorial das 200 milhas. Tema que deveria ser tratado com muito mais exuberância e pertinência pelo jornalismo da TV Brasil…..Afinal, o presidente Lula está condenando a nova instalação de bases militares estadunidenses na Colômbia e também a presença da Quarta Frota. Que pautaço!

Neste contexto, vai ficando sempre mais claro o papel desempenhado pela Folha. A TV Brasil deveria tomar-se em brios, aproveitando esta estapafúrdia recomendação do concorrente para não apenas seguir avançando naquilo que tem acertado com uma grade de programação humanista, educativa, respeitadora da diversidade cultural e histórica brasileira, sem concessões à imposição da ditadura publicitária cervejeira ou medicamentosa que domina a mídia privada. Deve também perceber o complexo quadro que está sendo formado, de hostilidades declaradas, ainda mais porque a mídia privada tem o eterno e petulante sonho de não ter que dividir recursos públicos com uma empresa de comunicação do campo público. A mídia privada fala nos benefícios da concorrência, mas quer mesmo é monopolizar as verbas públicas para a comunicação social. Não quer concorrência, nem da TV Brasil. Esta também foi a razão da campanha da mídia comercial quando do surgimento da TV Senado , da TV Câmara: a mídia privada não admite a idéia da comunicação pública escapando ao seu controle e quer o monopólio sobre a cobertura dos assuntos do Congresso, agora dificultada pela transparência e pela diversidade editorial que a comunicação legislativa oferece ao público, com uma possibilidade de alcance crescente, enquanto a tiragem da Folha vai em direção oposta.

O exemplo encorajador do retirante que venceu o jornalismo conservador……

O presidente Lula compreendeu muito bem este panorama, provavelmente por sua experiência própria em resistir e vencer a tamanhas e tão sistemáticas campanhas de demolição de sua imagem que queriam impedir que um retirante chegasse á presidência da república. Talvez falte à TV Brasil compreender esta situação que se afigura como de sabotagens anunciadas – ou seja, o concorrente quer apenas que você não exista – e transforme esta compreensão num jornalismo realmente liberado dos padrões jornalísticos praticados pela mídia comercial. Seu caráter educativo, cultural, diversificado regionalmente vai sendo assegurado e merecendo reconhecimento. Porém, o jornalismo padece dos males que levam o jornalismo privado a cometer os mesmos erros de interpretação, avaliação, pautando-se pelos mesmos valores. É verdade que não chega a ponto de divulgar montagem de documentos de ex-presos políticos, como a Folha fez com a ficha da Ministra Dilma Roussef. Bom, mas aí já não estamos falando de jornalismo né?

A TV Brasil tem sim uma função a cumprir, tem cumprido parcialmente o papel previsto na Constituição para a tv e está superando vários obstáculos que a impedem fazer isto com plenitude. É, por exemplo, a única emissora que tem programas que discutem a própria mídia como o ‘Ver TV’ e o ‘Observatório da Imprensa’. Tem espaço cativo só para o samba, este gênero peregrino da alma brasileira, escasseado na tv privada. Tem um correspondente na África. Há pontos positivos, mas falta ainda falta caminhar.

O editorial da Folha soa como declaração de guerra contra a comunicação pública. Questiona até o surgimento da TV Brasil, aprovado pelo parlamento, característica que não marca o nascimento das tvs comerciais. Bom seria se a Folha se dispusesse a contar ao seu declinante público leitor a história do surgimento de certas redes de televisão, em particular o marcante relacionamento com a ditadura em cada caso, sobre o que, aliás, a Folha também tem experiência própria e especialização para reportar com, digamos, profundidade, sobretudo informações de bastidores, ou de porões sombrios….

Jornalismo convencional, conservador

Mas, outros obstáculos ainda estão sem equacionamento desenhado. A experiência de realização de uma audiência pública, feita pela TV Brasil em julho, é inédita no Brasil, marca um avanço democrático na história da tv brasileira, mas requer continuidade, sistematicidade, regularidade, de tal modo que os diagnósticos e idéias ali surgidas ou que venham a surgir possam encontrar condições de ser provadas, transformadas em realidade quando se comprovem adequadas. As observações mais freqüentes apontam para o jornalismo, descrito como convencional não na sua forma, mas quanto ao seu conteúdo, comparando-se à própria novidade como fato político que é a existência mesma da TV Brasil, ou de uma realidade de se ter um presidente da república que não se intimida em criticar democraticamente segmentos da mídia que resvalam mais para o preconceito e a condenação do que para a prática de jornalismo propriamente dito.

Como prova mais evidente está a cobertura internacional errática das emissoras da EBC: enquanto o jornalismo caracteriza-se por ressaltar as teses mais conservadoras do processo político latino-americano, portanto um jornalismo editorialmente conservador, a própria política externa brasileira – denunciada como retórica itamarateca pela mídia comercial – assume posturas mais progressistas, como por exemplo, ao não reconhecer de nenhum modo o governo golpista de Honduras. Enquanto Lula defende publicamente as posições de Zelaya e telefona ao presidente legítimo no momento em que ele tentava transpor a pé a fronteira, o jornalismo da TV Brasil ainda afirmava editorialmente, sem citar fontes, que Zelaya foi deposto por pretendia perpetuar-se no poder por meio de reeleição indefinida – item que não do texto da constava da Consulta Popular que seria submetida aos hondurenhos – exatamente o argumento usado pelos golpistas para tentar dar um caráter ‘jurídico’ ao golpe militar que já ceifou várias vidas e tem isolamento. Reconhecendo com importante o esforço de ter enviado a reportagem para a conturbada Honduras, a linha editorial segue merecendo reparos, no caso por falta de diversificação na divulgação de todas as teses em jogo ou por alinhamento conservador um ponto de vista.

Houve quem acreditasse que o Iraque dispunha sim de armas químicas de destruição em massa e que por isso tinha que ser ocupado, destruído, rapinado. Meses depois o jornal New York Times, em editorial, pediu desculpas aos seus leitores por ter difundido informação inverídica, pois as tais armas de destruição massiva até hoje não foram encontradas….

Tarefa civilizatória: uma tv sintonizada com a Constituição

Fora a mudança no jornalismo que ainda deve ao seu público telespectador, a TV Brasil tem todo um potencial de crescimento e consolidação como comunicação de missão pública, cumprindo o que reza a Constituição, trazendo inclusive com a sua crescente qualificação e capacidade de disputar legitimamente a audiência, uma possibilidade para que o público tenha mais alternativas informativas ao seu dispor. O que ofereceria aos que estudam a comunicação privada a chance de uma reflexão sobre o porquê, apesar de décadas de privilégios no acesso a verbas públicas, não conseguiu , salvo exceções, criar um modelo de comunicação que permita aos brasileiros elevar sua capacidade educativa, informativa, cultural.

Se a tv de mercado não foi ainda capaz de realizar esta tarefa civilizatória, temos o direito como Nação de pretender criar outro modelo de televisão, democraticamente, cumprindo a Constituição, equilibrando a tv brasileira hoje rigorosamente capturada pelos valores impostos pelo mercado: consumismo, sensacionalismo, culto à violência, banalização sexista. Vale lembrar, foram sábios os constituintes na elaboração do Capítulo da Constituição, mas não tiveram força suficiente para que uma tv a favor da vida e da cultura vencesse a supremacia do mercado que rebaixa a tv a uma deprimente escola de consumismo. Para quem pode consumir…

Para a Folha, autora do editorial, fica a recomendação para indagar-se por que depois de tantas décadas de existência, quando teve apoio e apoiou os governos da ditadura e as campanhas que tanto prejudicaram os interesses nacionais, fundamentalmente as da privatização do patrimônio público, estaria agora perdendo leitores? Se estivesse a serviço do Brasil não defenderia o fechamento do TV Brasil, mas o cumprimento da Constituição, a consolidação também dos modelos público e estatal de comunicação. E talvez devesse também indagar sobre o que tem levado ao fechamento sucessivo de jornais, seja nos EUA, seja aqui, como o ocorrido com a Gazeta Mercantil, lugar que deverá ser preenchido, já se anuncia, por um grupo de comunicação de capital europeu. Fechamento de jornais, traz desnacionalização.

Carlos Alberto de Almeida é presidente da TV Cidade Livre de Brasília.’

 

CENSURA
Argemiro Ferreira

O heroismo do Estadão não foi bem assim

‘A mesma mídia covarde que hoje apregoa compromisso com a liberdade de imprensa – em ataques torpes ao governo Lula e especialmente a outros governos do continente, como o da Venezuela – acovardava-se durante a ditadura. Em 1973, recebeu uma lição de coragem cívica, dada por Gasparian, Opinião e o advogado Adauto Lúcio Cardoso. O Estadão ainda exerceu resistência à censura. Mas não é justo esquecer que quando Fernando Gasparian, diretor de Opinião, impetrou mandado de segurança contra a censura em 1973, o mesmo Estadão, através de seu diretor Ruy Mesquita, ficou atemorizado, negando-se a ser parte da causa. O artigo é de Argemiro Ferreira.

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Nunca é demais lembrar a resistência de O Estado de S.Paulo (e Jornal da Tarde) à censura – com os versos de Camões, as receitas de bolo e as fotos de flores. É justo lembrá-la em livro, como fez no 40° aniversário do AI-5, em dezembro do ano passado, o jornalista José Maria Mayrink, que escreveu ‘Mordaça no Estadão’, sobre aqueles tempos difíceis que viveu.

Mas não é justo esquecer que quando Fernando Gasparian, diretor de Opinião, decidiu impetrar mandado de segurança contra a censura em 1973, o mesmo Estadão, através de seu diretor Ruy Mesquita, ficou atemorizado, negando-se a ser parte da causa. Eu entenderia se a razão tivesse sido apenas o fato de ser Opinião um semanário alternativo, menor, enquanto o Estadão era um dos jornalões tradicionais do país, muito conhecido até no exterior. Mas Gasparian disse então a Ruy Mesquita que, se o Estadão preferisse não entrar junto com Opinião, estaria bem: entraria sozinho e o semanário, nanico, se somaria apenas depois à iniciativa.

Essa história, com mais detalhes, foi contada pelo próprio Gasparian e está no livro ‘Opinião x Censura – Momentos da luta de um jornal pela independência’, de J. A. Pinheiro Machado (editora L&PM, 1978). O motivo real dos Mesquita (o irmão Júlio estava então fora do país), além do medo de represálias, era o fato de já ter a promessa do general Ernesto Geisel de que a censura do Estadão seria levantada.

Adauto Cardoso, um herói esquecido

O episódio teve ainda outro herói: Adauto Lúcio Cardoso, jurista da UDN, conspirador no golpe de 1964 e ex-presidente da Câmara (em 1966, até renunciar em protesto pela cassação dos mandatos de seis deputados da oposição), ideologicamente mais afinado com o Estadão do que com Opinião. Nomeado para o Supremo, votara a favor de habeas corpus para Vladimir Palmeira e Darcy Ribeiro. Mas em 1971 aposentou-se, envergonhado com uma decisão que mantivera restrições à liberdade de imprensa.

Cardoso tinha prometido só voltar ao STF para defender a causa da liberdade de imprensa. Assim, ao ser procurado em 1973, concordou em ser o advogado de Opinião no caso. Como Estadão e Veja estavam também sob censura, explicou a Gasparian: a causa ganharia força se um deles (ou os dois) se somasse a ela. O dono de Opinião não tinha ilusões sobre os Civita, mas procurou Ruy Mesquita.

Ficou desapontado com a resposta negativa. Naqueles dias o Estadão, que participara do complô do golpe, apostava na troca de generais, a se consumar no Planalto. O então presidente, Garrastazu Médici, tinha Orlando Geisel à frente do ministério do Exército – uma garantia de que só um grave acidente de percurso seria capaz de impedir em 1974 a ascensão do irmão dele, o também general Ernesto Geisel.

Poupar o Estadão e esquecer o resto?

Um amigo comum do jornal e do futuro presidente, segundo Gasparian, já tinha assegurado aos Mesquita que o novo governo ia tirar a censura do Estadão. De fato, isso ocorreria em 1975. Mas as vítimas menores – Opinião, O São Paulo, Tribuna da Imprensa, Movimento, etc – continuariam sob a mesma censura implacável. Ao confiar em Geisel, a família Mesquita ficou indiferente à sorte dos demais.

Toda a prática da censura, explicitamente proibida na Constituição então em vigor, foi exposta – até com as minúcias ridículas e grotescas – na petição do mandato de segurança levada ao Tribunal Federal de Recursos, a 10 de maio de 1973, pelo advogado Adauto Lúcio Cardoso. Ao final, por 6 votos contra 5, o TFR decidiu: a censura prévia feita no Opinião pela Polícia Federal violava a Constituição.

Consumada a decisão judicial, no entanto, a Polícia Federal avisou a redação de Opinião pelo telefone: ‘Não publiquem o jornal sem obedecer à censura. Se isso acontecer, temos ordem para apreender a edição’. Na manhã seguinte o general-presidente Garrastazu Médici, em simples despacho, mandou a PF ignorar a Justiça e manter a censura no jornal, com base no AI-5. Eis a íntegra do despacho, de 20 de junho:

Despacho do Presidente – Processo 5005/73

‘Diante do exposto neste processo pelo Senhor Ministro da Justiça:

1. Ratifico o despacho exarado em 30 de março de 1971, na exposição de motivos n° 165 B, de 20 de março daquele ano, no qual adotei em defesa da revolução, com fundamento no artigo 9 do Ato Institucional n° 5, as medidas previstas no art. 152, parágrafo 2°, letra E, da Emenda Constitucional b. 1;

2. Tendo a decisão proferida no mandato de segurança impetrado pela Editora Inúbia Ltda. Afirmado não existir nos autos provas de imposição de censura por ato do Presidente da República, reitero a autorização de que a Polícia Federal estabeleça censura quanto ao período OPINIÃO.

(a) Emilio Garrastazu Médici – Presidente da República’

Um detalhe escabroso de tudo isso é que o tal despacho citado no ítem 1 (de 30 de março de 1971) teria sido secreto, nunca fora revelado. Assim, o mandado de segurança de Opinião tivera no mínimo o mérito de forçar a ditadura ou a revelar a existência de ‘despachos secretos’ (como sabemos, havia também ‘decretos secretos’), ou a fabricar um às pressas (e a posteriori), na obsessão de forjar cobertura jurídica para invalidar a decisão do TFR.

A mesma mídia covarde que hoje apregoa compromisso com a liberdade de imprensa – em ataques torpes ao governo Lula e especialmente a outros governos do continente, como o da Venezuela – acovardava-se então. Em 1973, recebeu uma lição de coragem cívica, dada por Gasparian, Opinião e o advogado Adauto Lúcio Cardoso. O Estadão, pelo menos, ainda noticiou o fato discretamente em sua primeira página do dia seguinte. O resto da mídia, nem isso.’

 

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