Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Agência Carta Maior

POLÍTICA
Clarissa Pont e Marico Aurélio Weissheimer

A mídia e a agenda da democratização do poder político

‘As experiências argentina e brasileira mostram que a mídia entrou, definitivamente, na agenda de debates sobre a democratização de nossas sociedades. ‘Independente da vontade da grande mídia, ela está em discussão e isso não ocorre à toa’, observou Venício Lima, jornalista, sociólogo e fundador e primeiro coordenador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília (UnB), durante o debate promovido sexta-feira à noite pela Carta Maior.

No dia 16 de abril de 1971, Ivan Seixas foi preso pela Operação Bandeirantes, em São Paulo, aos 16 anos de idade, junto com seu pai, o metalúrgico Joaquim Seixas, militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Os dois foram torturados por agentes da Operação Bandeirantes (Oban) e Joaquim foi assassinado no dia seguinte. Ivan hoje é jornalista e coordenador do primeiro fórum de presos e perseguidos políticos, além de membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Ele, Laurindo Leal Filho, Venício Lima, Luis Nassif e Antonio Roberto Espinosa estiveram juntos na noite de sexta-feira, em São Paulo, em um debate promovido pela Carta Maior e transmitido ao vivo pela TV Carta Maior.

O tema geral do debate foi a atuação da mídia brasileira na cobertura da vida política, social e econômica do país. Mas o debate não se limitou ao caso brasileiro. Professor da Universidade de Buenos Aires, Damian Loreti trouxe a experiência Argentina sobre o tema, relatando uma realidade muito semelhante à brasileira no que diz respeito ao estado das artes da mídia. No início do encontro, as relações entre mídia e ditadura dominaram o debate. Relações estas que ecoam até os dias de hoje.

Ivan Seixas contou um pouco de sua história: ‘Eu era militante dessa organização, era guerrilheiro. Não estamos falando aqui de talvez, vamos deixar claro. Nessa condição de militante de uma organização clandestina de luta armada contra a ditadura que eu fui preso com o meu pai, mecânico de 49 anos. Nossa casa, que também era um aparelho da revolução, foi invadida e saqueada.. Eles invadiram e roubaram absolutamente tudo. Vi capitão e sargento com sapato e roupas nossas, com o relógio do meu pai. Prenderam também minha mãe e minhas duas irmãs. Elas foram colocadas numa sala próxima e ouviram todo processo de tortura’.

Jornalistas e censores

O relato de Seixas remete ao livro da historiadora Beatriz Kushnir, ‘Cães de Guarda: Jornalistas e Censores do AI-5 à Constituição de 1988’. Nesta obra, Beatriz recupera a trajetória da Folha da Tarde. Segundo ela, o jornal foi o reduto, entre 1967 e 1984, de um grupo de jornalistas colaboracionistas, os ‘cães de guarda’, que tocavam a redação como uma delegacia de polícia. Durante uma década e meia o jornal ficou sob o comando da direita e muitos dos seus jornalistas tinham cargos na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. ‘Sempre tinha um carro de distribuição da Folha da Tarde no local do cerco, quando prendiam alguém. Um carro da Folha da Tarde nunca era coincidência, pessoas foram até presas e transportadas nos carros da Folha da Tarde’, relembrou Seixas.

Outra prática, que foi exemplar na Folha da Tarde, era a publicação da versão integralmente oficial do Estado para desaparecimentos e assassinatos, como no caso de uma manchete de abril de 1971 que anunciava a morte do guerrilheiro Roque, em confronto com a polícia de São Paulo. Roque era o codinome de Joaquim Seixas. Ivan lembra que foi levado pelos policiais para fora da Oban e leu em uma banca de jornal a notícia da morte do pai. Quando voltou, Joaquim ainda estava vivo, mas foi assassinado horas depois. Os jornais do dia seguinte reproduziram friamente a nota oficial dos órgãos de repressão que falava da morte em um enfrentamento armado que não aconteceu.

A ‘ditabranda’ e o ‘sequestro de Delfim’

O segundo relato que resgatou as relações entre a mídia e a ditadura foi de Antônio Roberto Espinosa. No dia 5 de abril deste ano, o professor de Política Internacional e doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), levou um susto ao abrir a edição dominical da Folha de S. Paulo, jornal que não assina mais. Algumas semanas depois de cunhar o termo ‘ditabranda’ em editorial para caracterizar a ditadura militar brasileira, o jornal estampava na primeira página ‘Grupo de Dilma planejou sequestro de Delfim Neto’. Nas páginas internas, o jornal se referiu à ministra como ‘ex-integrante da cúpula da organização terrorista…’.

Uma entrevista de Espinosa, ex-dirigente da VAR-Palmares, foi usada pela Folha para acusar a ministra de ter participado de um plano para seqüestrar, no final da década de 60, o então ministro Delfim Netto. ‘Todos os dias arranjam uma ação para mim. Agora é o seqüestro do Delfim? Ele vai morrer de rir’, disse Dilma à Folha. Espinosa resumiu a história como uma estratégia contra a virtual candidata petista à presidência da República.

‘Eu sou jornalista e a minha vida inteira é dedicada à luta pelas liberdades. A jornalista essa que escreveu a matéria, eu sempre esqueço o nome dela, usou uma técnica que eu sempre censurei. Fui editor de muitos jornais e revistas, tive o meu jornal o Primeira Hora, e o apelido que sempre dei a esse tipo de técnica é fonoportagem’. Os dois conversaram por três horas.

‘Em páginas corridas de jornal, seis colunas, sem foto, essa conversa estaria em cinco ou seis páginas. Dois meses depois da entrevista, eu pego o meu exemplar da Folha e estava na capa que a Dilma queria seqüestrar o Delfim e que isso teria sido dito por mim. Aliás, grafando meu nome de uma maneira incorreta do mesmo jeito que era grafado nos cartazes dos procurados pela ditadura militar’.

No mesmo dia, Espinosa enviou uma carta de retratação para a Folha, que não foi publicada. Na segunda-feira, a carta circulava por e-mail e era publicada em milhares de pontos da internet, menos na Folha de S. Paulo. ‘No final da tarde, o editor do Painel do Leitor me procurou e disse que estavam dispostos a publicar uma carta inédita de no máximo 1,5 mil toques. Eu quis que o pedido fosse enviado por e-mail, tudo documentado, porque não confio mais neste jornal’. A carta de Espinosa foi publicada, mas a história rendeu discussões em blogues, universidades e na mídia sobre a prática jornalística da publicação de Otávio Frias.

O debate sobre a mídia na Argentina

O caso argentino e o debate sobre a Lei de Serviços de Comunicação Social

Assim como no Brasil, as normas que regem o sistema de radiodifusão na Argentina são filhas da ditadura militar. Um aceno de mudança foi dado ainda neste mês, quando a Cristina Kirchner apresentou uma proposta à sociedade para elaborar um projeto de lei destinado a substituir as leis que datam de 1981. A proposta para uma nova Lei de Serviços de Comunicação Social foi apresentada no Teatro Argentino de La Plata, cidade situada a 80 quilômetros da capital Buenos Aires. Dentre as medidas, está a definição de uma cota de 33% de licenças de rádio e televisão dedicadas exclusivamente a entidades sem fins lucrativos, como universidades, cooperativas, igrejas e organizações não-governamentais.

A intenção geral da proposta é democratizar o acesso aos meios de comunicação. ‘A expressão não pode ser monopolizada por um setor ou empresa. Só podemos formar cidadãos livres se eles têm a possibilidade de formar seu próprio pensamento’, disse Cristina Fernandez de Kirchner ao abrir o debate. Além disso, argumentou que a atual legislação de audiovisual ‘é inválida por sua origem’, já que foi aprovada pelo governo militar, e que por isso o novo projeto é ‘uma velha dívida da democracia’.

O mediador do debate promovido pela Carta Maior, o sociólogo e jornalista Laurindo Leal Filho, pediu a Damian Loreti para que falasse sobre o andamento deste debate na Argentina. Segundo ele, trata-se de um processo com uma longa gestação, de uma proposta de projeto de lei que vem sendo tema de debates públicos em cada uma das universidades nacionais das províncias argentinas. ‘De quem é a liberdade de expressão’? – perguntou antes de concluir que é necessário uma ‘mudança de paradigma, com instâncias de pluralismo e de diversidade’. Os sindicatos de trabalhadores de imprensa também têm chamado especialistas das universidades para travar esta discussão’. Até aqui, os grandes ausentes deste processo público são justamente os meios de comunicação que rejeitam debater o tema com a sociedade.

‘A mídia está em discussão e isso não ocorre à toa’

As experiências argentina e brasileira mostram que a mídia entrou, definitivamente, na agenda de debates sobre a democratização de nossas sociedades. ‘Independente da vontade da grande mídia, ela está em discussão e isso não ocorre à toa’, observou Venício Lima, jornalista, sociólogo e fundador e primeiro coordenador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília (UnB). Os estudos de Lima sobre a concentração da mídia e o coronelismo eletrônico são fundamentais para entender as deficiências da democracia brasileira. Segundo ele, quando a mídia não consegue alcançar um mínimo de diversificação e quando a distribuição das concessões é viciada pela ilegalidade e pelos conchavos, as condições essenciais para a democracia e para a justiça ficam comprometidas.

‘Estamos vivendo no Brasil e na Argentina um momento especial em relação à mídia. Nos últimos anos, a mídia entrou na agenda publica de discussão e esse encontro aqui promovido pela Carta Maior é uma comprovação disso’, disse Lima. Enquanto a Argentina se prepara para um importante debate que deve envolver toda a sociedade, Carta Maior também discute o tema que envolve diretamente o Brasil, justamente no ano em que será realizada a primeira Conferência Nacional de Comunicação.

O ‘movimento tenentista’ da internet

Nos últimos anos, esse cenário de concentração vem sendo contaminado por um vírus que não pára de crescer: o vírus da blogosfera e de uma rede de espaços alternativos na internet. ‘Hoje você tem uma estrutura articulada de blogues que conectam este debate’, destacou Luis Nassif, responsável desde 2007 por uma série de artigos sobre os bastidores da Veja, em que critica os últimos anos da publicação. ‘A Veja sempre foi uma caricatura, mas hoje é uma caricatura ostensiva’, resumiu.

Nassif classificou esse processo como uma espécie de movimento tenentista na mídia, numa alusão ao movimento político-militar e à série de rebeliões de jovens oficiais do Exército brasileiro no início da década de 1920, descontentes com a situação política do Brasil. Esses jovens oficiais propunham reformas na estrutura de poder do país, o fim do voto do cabresto, a instituição do voto secreto e a reforma na educação pública. Pois, no debate sobre a mídia, trata-se justamente de discutir a atual estrutura de poder no país, onde os meios de comunicação desempenham um papel fundamental.

Para Nassif, o modelo midiático atual é inviável e estamos assistindo a um processo de transformação que não tem retorno. Ainda não é possível prever, admitiu, o que virá no lugar do modelo atual, mas as mudanças já estão em curso.. O jornalista destacou o extraordinário dinamismo da rede de blogs e sites que acompanham diariamente o trabalho da chamada grande mídia. Hoje, os acontecimentos políticos e econômicos e os movimentos midiáticos em torno deles são rapidamente repercutidos e as tentativas de manipulação são alvo de reações quase que imediatas. Elas se tornaram inviáveis com o crescimento das redes de produção e circulação de informações na internet..

E o próprio debate foi um exemplo disso. Durante as mais de duas horas de transmissão pela TV Carta Maior, mais de 800 internautas encaminharam mensagens com comentários e perguntas aos debatedores. O interesse que o tema desperta é um sinal que a sociedade está muito interessada em discutir esse assunto e cultiva uma atenção especial acerca do comportamento da mídia. No ano em que o Brasil se prepara para realizar sua primeira Conferência Nacional de Comunicação e no momento em que a Argentina promove um debate nacional sobre a necessidade de democratizar o acesso à comunicação, entendida como um direito e não como uma mercadoria a mais, fica evidente a crescente demanda pela ampliação e aprofundamento dessa discussão..’

 

REFORMA ORTOGRÁFICA
Olgária Mattos

A última Flor do Lácio: gramática e civilidade

‘A mais recente reforma ortográfica do português no Brasil subordina a língua às contingências do mercado. A reforma em curso atende à pura funcionalidade da circulação das mercadorias no mercado consumidor e à carência de tradição alfabética no país.

Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant separava a vida do espírito e o mercado, observando que todas as coisas que podem ser comparadas, podem ser trocadas e têm um preço. Mas aquelas que não podem ser comparadas, não podem ser trocadas, por isso não têm preço, mas dignidade. Para garanti-la, o ideário iluminista e democrático da constituição do espaço público—comum a todos e acessível a todos—estabelecia uma esfera de autonomia com respeito às determinações econômicas e às razões do mercado. Porque privilégios e carências pertencem ao âmbito do que não pode se universalizar como modo de vida sem comprometer os laços sociais, porque de privilégios resultam, no plano ético e político, patrimonialismo e injustiça, porque a carência produz privações e ressentimentos, a invenção democrática é a criação contínua de novos agentes sociais e do imaginário do direito a ter direitos. Para isso, era função do Estado a separação dos interesses particulares e do interesse público.

Divergem a temporalidade do Estado e a do mercado, pois se, por sua natureza, as instituições privadas estão sujeitas às contingências da concorrência e ao cálculo dos custos e dos benefícios, ao Estado cabe velar, no longo prazo e na alternância das gerações, pela sobrevivência de todos os seus cidadãos, propiciando o acesso universal aos direitos sociais, civis e políticos,como o atendimento à saúde, à educação, à cultura. Razão pela qual ceder ao mercado o que é prerrogativa do Estado revela o encolhimento da esfera pública, determinando a privatização da vida e sua queda em valor de troca. No que diz respeito à aposentadoria, por exemplo, a vida, como valor de mercado, se submete às oscilações da cotação do dia. A civilização do consumo, a ideologização do conforto material e a determinação de todas as esferas da vida pelo fator econômico determinaram as transformações do papel filosófico e existencial da educação e da cultura, não mais valorizadas como quintessência do laço afetivo e das relações sociais.

Da Grécia clássica à modernidade democrática, a escola foi o consentimento da cidade na organização de um novo dispositivo de associação social, espaço de individuação, e apogeu da cidadania política, visando a adoção de uma identidade comum, no compartilhamento de valores através da escrita. Porque falar uma língua é algo diverso de dominá-la, e por ser um meio de comunicação público, foi necessário prover a língua de regras conhecidas por todos e praticadas por todos. Assim, a difusão da gramática fez migrar o segredo da informação do recinto fechado dos palácios e do saber hermético do escriba oriental para o espaço público da Àgora. Os mestres – os grammatistès – davam acesso às letras, retirando-as de sua condição de grammar,de ‘conhecimento oculto’, pois ‘ para quem sabe ler e escrever, coisas impossíveis serão igualmente fáceis’.

À distância da naturalidade da língua falada, a escola ensina que ela é o ‘processo de adoção’ de uma matriz identificatória que substitui a maneira tradicional da parentalidade e da comunicação em um âmbito privado, pela philia que se expressa não apenas em relações de oralidade entre os cidadãos mas por escrito. Razão pela qual a philia abrange a comunicação à distância, no espaço e no tempo, a gramática favorecendo a compreensão da língua quando ela não se apóia na presença dos falantes. Desde a pólis grega, a philia significa o amor da cidade por si mesma, através de um programa político fundado na lei legível e criticável por todos: ‘desde sua origem grega’, anota Stiegler, ‘a escola foi um lugar de adoção [porque não se trata de saberes a que se acede sem necessidade de instrução] que forma uma philia pela constituição de um ideal do Ego, mas que é também, como demos, o povo enquanto ideal da população que não é mais o grupo étnico. Esta escola é o próprio núcleo da democracia’.

A mais recente reforma ortográfica do português no Brasil subordina a língua às contingências do mercado e à agramaticalidade de sua fala oral, rompendo o equilíbrio entre a anomia e a gramatização que caracterizam uma língua viva. Expressionista antes da reforma, ‘ idéia’ ou ‘ idêia’, a pronúncia diferenciava o português do Brasil e de Portugal, suscitando o metron de seu estranhamento e de seu parentesco , revelador do ethos de um povo. Assim,diferentemente de unificar a palavra escrita, a reforma neutraliza a língua falada, despersonalizando-a. O canto próprio às línguas—sua acentuação, cadência e pronúncia– recusa a ‘ língua média’.

A reforma em curso atende à pura funcionalidade da circulação das mercadorias no mercado consumidor e à carência de tradição alfabética no país. Quando a anomia prevalece e cada locutor fala à sua maneira segundo fórmulas privadas, a língua perde sua inteligibilidade e sua aura. Eis por que o latim, língua franca pós-Cruzadas, ao contrário da koiné do Império Romano mediterrâneo, desapareceu como língua viva, resultando nas línguas vernaculares que, por sua vez, para cumprir a comunicação, criaram sua própria gramática .

Por valorizar na língua seu caráter sumário, cômodo e elementar, esta reforma dissolve a dimensão ética da linguagem, da leitura e da literatura. Sob a hegemonia da oralidade agramatical e anti-literária, as desgramatizações não seguem as ‘tendências da língua viva’, mas obscurecem nuances e refinamentos na comunicação oral e escrita. Além de promover patologias na comunicação, elas atestam desestima pela língua e um déficit na capacidade de amá-la.

Olgária Mattos é filósofa, professora titular da Universidade de São Paulo.’

 

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