Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Agência Carta Maior

LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Venício Lima

Liberdade de expressão: o ‘efeito silenciador’ da grande mídia

A interdição do debate verdadeiramente público de questões relativas à democratização das comunicações pelos grupos dominantes de mídia funciona como uma censura disfarçada. Este é o ‘efeito silenciador’ que o discurso da grande mídia provoca exatamente em relação à liberdade de expressão que ela simula defender.

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Desde a convocação da 1ª. Conferência Nacional de Comunicação (CONFECOM), em abril de 2009, os grandes grupos de mídia e seus aliados decidiram intensificar a estratégia de oposição ao governo e aos partidos que lhe dão sustentação. Nessa estratégia – assumida pela presidente da ANJ e superintendente do grupo Folha – um dos pontos consiste em alardear publicamente que o país vive sob ameaça constante de volta à censura e de que a liberdade de expressão [e, sem mais, a liberdade da imprensa] corre sério risco.

Além da satanização da própria CONFECOM, são exemplos recentes dessa estratégia, a violenta resistência ao PNDH3 e o carnaval feito em torno da primeira proposta de programa de governo entregue ao TSE pela candidata Dilma Roussef (vide, por exemplo, a capa, o editorial e a matéria interna da revista Veja, edição n. 2173).

A liberdade – o eterno tema de combate do liberalismo clássico – está na centro da ‘batalha das idéias’ que se trava no dia-a-dia, através da grande mídia, e se transformou em poderoso instrumento de campanha eleitoral. Às vezes, parece até mesmo que voltamos, no Brasil, aos superados tempos da ‘guerra fria’.

O efeito silenciador

Neste contexto, é oportuna e apropriada a releitura de ‘A Ironia da Liberdade de Expressão’ (Editora Renovar, 2005), pequeno e magistral livro escrito pelo professor de Yale, Owen Fiss, um dos mais importantes e reconhecidos especialistas em ‘Primeira Emenda’ dos Estados Unidos.

Fiss introduz o conceito de ‘efeito silenciador’ quando discute que, ao contrário do que apregoam os liberais clássicos, o Estado não é um inimigo natural da liberdade. O Estado pode ser uma fonte de liberdade, por exemplo, quando promove ‘a robustez do debate público em circunstâncias nas quais poderes fora do Estado estão inibindo o discurso. Ele pode ter que alocar recursos públicos – distribuir megafones – para aqueles cujas vozes não seriam escutadas na praça pública de outra maneira. Ele pode até mesmo ter que silenciar as vozes de alguns para ouvir as vozes dos outros. Algumas vezes não há outra forma’ (p. 30).

Fiss usa como exemplo os discursos de incitação ao ódio, a pornografia e os gastos ilimitados nas campanhas eleitorais. As vítimas do ódio têm sua auto-estima destroçada; as mulheres se transformam em objetos sexuais e os ‘menos prósperos’ ficam em desvantagem na arena política.

Em todos esses casos, ‘o efeito silenciador vem do próprio discurso’, isto é, ‘a agência que ameaça o discurso não é Estado’. Cabe, portanto, ao Estado promover e garantir o debate aberto e integral e assegurar ‘que o público ouça a todos que deveria’, ou ainda, garanta a democracia exigindo ‘que o discurso dos poderosos não soterre ou comprometa o discurso dos menos poderosos’.

Especificamente no caso da liberdade de expressão, existem situações em que o ‘remédio’ liberal clássico de mais discurso, ao invés da regulação do Estado, simplesmente não funciona. Aqueles que supostamente poderiam responder ao discurso dominante não têm acesso às formas de fazê-lo (pp. 47-48).

Creio que o exemplo emblemático dessa última situação é o acesso ao debate público nas sociedades onde ele (ainda) é controlado pelos grandes grupos de mídia.

Censura disfarçada

A liberdade de expressão individual tem como fim assegurar um debate público democrático onde, como diz Fiss, todas as vozes sejam ouvidas.

Ao usar como estratégia de oposição política o bordão da ameaça constante de volta à censura e de que a liberdade de expressão corre risco, os grandes grupos de mídia transformam a liberdade de expressão num fim em si mesmo. Ademais, escamoteiam a realidade de que, no Brasil, o debate público não só [ainda] é pautado pela grande mídia como uma imensa maioria da população a ele não tem acesso e é dele historicamente excluída.

Nossa imprensa tardia se desenvolveu nos marcos do de um ‘liberalismo antidemocrático’ no qual as normas e procedimentos relativos a outorgas e renovações de concessões de radiodifusão são responsáveis pela concentração da propriedade nas mãos de tradicionais oligarquias políticas regionais e locais (nunca tivemos qualquer restrição efetiva à propriedade cruzada), e impedem a efetiva pluralidade e diversidade nos meios de comunicação.

A interdição do debate verdadeiramente público de questões relativas à democratização das comunicações pelos grupos dominantes de mídia, na prática, funciona como uma censura disfarçada.

Este é o ‘efeito silenciador’ que o discurso da grande mídia provoca exatamente em relação à liberdade de expressão que ela simula defender.

Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010.

 

QUARTO PODER
Luís Carlos Lopes

O pretenso poder do chamado quarto poder

Não existe um quarto poder. Entretanto, existe o poder da palavra que pode servir para mudar o mundo ou deixar tudo como está. Nela, concentra-se a verdadeira disputa que poderá ter algum resultado.

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Desde há muito, veio dos EUA, salvo engano, a idéia de que a imprensa seria o quarto poder da República, ao lado do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Os maiores entusiastas deste ponto de vista chegaram a dizer que o quarto poder seria no tempo presente, o maior dos poderes republicanos. Há décadas, a própria imprensa repete, por toda parte, este mesmo conceito. Vários filmes abordaram esta temática acreditando, nem sempre do mesmo modo, neste modo de ver as coisas.

Apesar do inegável poder da imprensa, compará-lo aos demais poderes da República é como achar que a água é a mesma coisa do que o azeite, porque ambos são líquidos. Os governos continuam a governar, a partir da fórmula inventada por Montesquieu na França do século XVIII. Logicamente, que o formalismo do autor iluminista é adaptado às circunstâncias.

Nas repúblicas conhecidas, jamais houve o verdadeiro e ideal equilíbrio entre os três poderes. A tendência foi a de que restasse algo de tirânico e absolutista nas autodenominadas democracias contemporâneas. O epicentro do poder político continuou sendo o executivo. Este, não raro, se sobrepõe sobre aos demais poderes da república. Em várias situações, este fato é, inusitadamente, o que garante algum nível de práticas realmente democráticas, dependendo dos significados verdadeiros acreditados pelos demais poderes. Estes podem ser igualmente tirânicos e tutelarem qualquer possibilidade de convivência democrática.

O Estado contemporâneo de qualquer lugar continua sendo monstruoso, um ogro com mil faces, fruto da complexidade histórica de cada país e dos contextos internacionais onde ele se desenvolve. A imprensa jamais foi uma das faces oficiais do Estado. Entretanto, ela pode representá-lo cabalmente, não somente quando se trata da imprensa oficial. Isto ocorre, quando empresas privadas são aliadas, financiadas e/ou policiadas para agirem de acordo com o que o Estado deseja. Foi assim na época da ditadura militar brasileira, até meados da década de 1980.

No mundo do capital e das democracias formais, a mediação entre o Estado e a imprensa empresarial perpassa a rede de relações políticas e econômicas do governo com os diversos setores das classes empresariais. Inúmeros interesses precisam ser atendidos. Como se vê no Brasil atual, a chamada grande imprensa costuma ser de oposição a tudo que foi e é progressista da era Lula e laudatória ou silenciosa sobre o que o capital local e internacional considera como correto na mesma administração. Vive em paradoxo, mesmo que isto talvez lhe custe sérios prejuízos.

Se a imprensa tem algum poder é porque ela veicula os poderes de Estado e da Sociedade. Ela tem esse primeiro papel quando se trata de periódicos oficiais. Os jornais e revistas sob o domínio da iniciativa privada ou estão vinculados a governos que os sustentam, e/ou aos anunciantes que injetam as verbas da publicidade. Ao se comunicar com o grande público e, sobretudo, ao vender seus artefatos para as massas, a imprensa precisa dizer algo que possa parecer interessar aos seus consumidores.

A necessidade de vender jornais e revistas diretamente às pessoas, faz que a imprensa escrita e publicada seja bastante diversa dos demais meios de comunicação disponíveis hoje e ontem. Isto gera um outro paradoxo vivido por qualquer periódico vendido em banca ou adquirido por assinatura. Se o que ele recebe para existir é fundamentalmente o que vem da compra direta, o veículo não pode desagradar demais aos seus leitores. Estes podem simplesmente deixar de comprá-los.

A solução que as empresas jornalísticas desenvolveram foi a de combinar a venda direta com o lucro obtido pela propaganda governamental e pela publicidade privada. Tem sido cada vez é maior o espaço, nestes meios de comunicação, destinado a simplesmente sustentá-los e fazê-los lucrar. Ao vender-se, em primeiro lugar, aos seus anunciantes, a imprensa perdeu em cada vez maior escala qualquer independência.

Os interesses comerciais de seus donos ditam as opiniões que veiculam, por vezes, até mesmo contra seus interesses específicos enquanto membros das classes empresariais. No passado, os editoriais e alguns artigos eram de propriedade exclusiva da opinião dos donos. Hoje, isso ficou mais difícil, porque a imprensa escrita em estado de crise tem que se adequar ao mosaico de interesses dominantes na sociedade em que está inserida.

Hoje, fala-se mais em mídias do que propriamente da imprensa, isto é, juntou-se o enorme feixe dos meios de comunicação de massa em uma só denominação. O poder midiático empresarial atual, com suas várias faces e arestas, sendo formado por uma dualidade básica: a difusão da informação e a veiculação do entretenimento (diversão). Este modelo norte-americano de organização das mídias fechou as portas para uma divulgação científica mais séria e não sensacionalista, dificultou a publicização das artes não-comerciais e a veiculação da opinião política, social, crítica e independente. As janelas disto, que ainda funcionam, são cada vez mais diminutas.

A imprensa escrita que competia somente com o rádio (no Brasil) até a década de 1950 teve de dividir seu reinado com cada vez maiores e diversificados meios técnicos de comunicar. O ato de noticiar e de comentar passou a chegar ao grande público através da palavra falada e das imagens. A televisão e hoje a Internet assombram o antigo poder dos grandes jornais e das revistas. Eles têm emagrecido e alguns desses veículos desapareceram.

Nos EUA, existem calendários com datas prováveis para alguns jornais bastante tradicionais deixarem de ser impressos. Revistas desaparecem e ressurgem todos os dias pelo mundo afora. Vive-se um terreno de instabilidade e de falta de rumo possível. O jornalismo sem tinta parece que pouco a pouco se firmará no local desse antigo, centenário, meio técnico de comunicação.

A imprensa continuará a existir, porque não se pode imaginar o mundo sem informação, mesmo que ela seja manipulada, pouco ou não-comentada de modo sério e judicioso. As sociedades atuais estão embriagadas pelo fenômeno de estar ciente dos fatos eleitos pelas mídias, mesmo que isto nem sempre signifique muito. Sabe-se de muita coisa, compreendendo-se muito pouco do que se lê, se ouve e se vê na profusão cibernética de dados que afogam seus consumidores sem trégua.

Tudo leva a crer que o livro, no seu formato variável desenvolvido em séculos, continuará a existir, concorrendo com suas versões eletrônicas. Não há nenhum sinal de que esteja ameaçado pelos artefatos digitais. O prazer de lê-los e de colecioná-los é algo ainda difícil de destruir. A palavra escrita, fonte da ciência, da arte e da razão esclarecida continuará funcionando mesmo que transmitida por velhos e novos artefatos.

A luta não é contra os meios técnicos de comunicação recentes. Não são neles que o problema se aloja. A batalha é contra a ignorância e a manipulação seja ela feita pela imagem, pelo som (inclusive da voz humana) e pela palavra escrita gravada ou transmitida em algum suporte legível. Não existe um quarto poder. Entretanto, existe o poder da palavra que pode servir para mudar o mundo ou deixar tudo como está. Nela, concentra-se a verdadeira disputa que poderá ter algum resultado. Quando se menciona o vocábulo ‘palavra’ se está falando de todas formas e meios que a humanidade dispõe para se comunicar. Em última análise, em uma imagem ou em um som, a palavra humana está sempre presente na conformação do ato criativo.

Luís Carlos Lopes é professor e escritor.

 

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