‘Não foi uma humilde pregação de postulante mas a afirmação de um vitorioso: a homilia celebrada pelo cardeal Joseph Ratzinger um dia antes de ser eleito não buscava votos, oferecia certezas. Convicta na exposição e no teor, deverá alimentar um debate que transcende à teologia e transborda para a filosofia e a política. Inclusive a nossa, tão paroquial e rastaqüera.
Aquele que no dia seguinte adotaria o título de Bento 16, escolheu o relativismo como o eixo de sua manifestação. Ao explicar que ter uma fé clara não significa fundamentalismo condenou o relativismo ‘que se deixa arrastar para lá e para cá pelos ventos doutrinários’ e ‘parece ser o único sistema aplicável aos tempos modernos’. Vai adiante ao mencionar na frase seguinte a ‘ditadura do relativismo, que não reconhece nada como definitivo e toma como medida última das coisas o eu e as vontades do eu’.
Esta mesma profissão de fé ortodoxa e absoluta poderia ter sido proclamada por um pertinaz marxista, por um ferrenho humanista, por um obstinado moralista, por um ético intransigente, por um agnóstico inflexível. E até por um inflexível secularista pois a imperiosa e democrática separação entre Religião e Estado – exceto na França e talvez na Espanha em breve – está visivelmente mitigada pelo relativismo que se infiltra através das tradições, costumes e modismos.
O relativismo torna tudo vulnerável e não apenas as questões da fé. Mas é inevitável. Faz parte do formidável processo de intercâmbios (que alguns denominam de globalização) a que estamos formalmente submetidos desde o início do século 20 mas que, na realidade, existe desde o momento em que os homens aprenderam a comunicar-se e perceberam que não existe outro caminho se não o do entendimento.
O cardeal Ratzinger manifestou-se igualmente contra o sincretismo atribuindo-o à ‘astúcia dos homens’ mas o sincretismo não está confinado aos tumultos da ilha de Creta (daí o nome), é produto de um forno que abastece a humanidade desde os seus primórdios: a necessidade da síntese. Sem congraçar, impossível sobreviver. A neutralização dos antagonismos é a única saída para a inesgotável capacidade humana de produzir idéias, alternativas e controvérsias.
Como religioso, o cardeal Ratzinger vê o relativismo como inimigo da fé e da fidelidade. Não apenas o catolicismo, todas as religiões são imperiosamente tradicionalistas, conservadoras, integristas e integradas. Mas na esfera temporal e leiga, o relativismo também pode ser pernicioso ao comprometer fundamentos e mandamentos que não podem ser atenuados sob pena de tornar impossível a convivência.
O relativismo moral tem sido usado para justificar massacres, para oprimir os fracos, legitimar o roubo, promover injustiças, desculpar a corrupção, enganar inocentes, perseguir os diferentes. Em nome de suspeitos compromissos históricos, imprecisas utopias e causas discutíveis cometem-se crimes, violações, fraudes, transgressões e infrações de toda a espécie. O relativismo moral torna perigosamente permeáveis os contratos essenciais à sobrevivência e à coesão da humanidade.
Bento 16 ofereceu suas certezas ao grêmio religioso em geral e ao católico em particular. Mas ao grêmio dos céticos e agnósticos ofereceu um riquíssimo e estimulante acervo de dúvidas. As ‘vontades do eu’ condenadas pelo novo pontífice podem ser vistas como manifestações de um perigoso narcisismo mas, ao mesmo tempo, fornecem o combustível necessário à busca do conhecimento. E este conhecimento torna transitório o que se pretende definitivo.A terra deixou de ser o centro do mundo, a noção de universo, universalizou-se. Impossível retroceder.
O confronto entre o relativo e o absoluto é inexistente porque ambos são relativos. Isto, sim, é absoluto A solução que se vislumbra é o concílio, conciliação.’
Sarah Lyall
‘O que a mídia britânica vê no papa? Apenas um alemão’, copyright The New York Times / Último Segundo (www.ultimosegundo.com.br), 22/04/05
‘Já se passaram 60 anos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e 30 desde que o hoteleiro fictício Basil Fawlty se sentiu estranhamente forçado a dançar em uma sala de jantar com a chegada de alguns convidados alemães.
Mas a obsessão da Grã-Bretanha com o papel alemão na guerra, pelo menos como expressado na mídia, ainda não mostra sinais de trégua. E é por isso que as manchetes sobre a seleção do cardeal Joseph Ratzinger como papa esta semana foram dominadas por alusões a seu passado de guerra.
‘De jovem Hitler a papa Ratzi’, era a manchete do jornal The Sun na terça-feira, enquanto o Daily Express dizia que o novo papa, Bento 16, tinha os apelidos não apenas de ‘Rottweiler de Deus’, mas também de ‘cardeal panzer’, uma referência aos tanques alemães usados na guerra.
Na verdade, segundo o Daily Mirror, que também colocou ‘Jovem Youth’ em sua manchete, Bento 16 considera estes apelidos ‘impressionantes’, junto com um terceiro ‘Joe, o rato’.
Em um artigo explorando a conduta do papa durante a guerra, o The Mirror citou Elizabeth Lohner, uma mulher de 84 anos de sua cidade-natal na Bavária, dizendo que ao contrário da afirmação do papa de que não teve escolha, a não ser entrar para o movimento de Hitler, ‘era possível resistir’. Seu próprio irmão, disse, era um opositor que foi enviado a Dachau por suas crenças.
Na Alemanha, onde os repórteres britânicos foram vistos vasculhando o interior do país aparentemente em um esforço para encontrar evidências de atividades obscuras do novo papa durante a guerra, as pessoas não ficaram contentes com o que viram como a incapacidade britânica de abrir mão dos acontecimentos da era nazista.
‘É uma tristeza reduzir o papa alemão, no dia após sua eleição, a um membro do movimento jovem de Hitler’, disse o jornal Bild. ‘Os britânicos fizeram isso. Eles reportam sobre Bento 16 com zombaria e uma raiva incontrolável’.
Enquanto isso, um colunista do jornal, Franz Josef Wagner, escreveu uma carta aberta aos tablóides britânicos, alertando-os que o demônio ‘parece ter entrado nas redações’ e que ‘suas manchetes sobre o novo papa alemão fedem ele, como enxofre e ovos podres’. Ele acrescentou, ‘Qualquer um que leu os jornais britânicos poderia ter achado que Hitler era o novo papa’.
Xenofóbicos e ansiosos para incitar os preconceitos de seus leitores sobre os estrangeiros, os tablóides britânicos têm uma história de sentimento antialemão. Um sentimento antifrancês, também. Os alemães ainda podem ser os krauts na linguagem dos tablóides, mas os franceses serão os eternos sapos.
‘Os sapos precisam de um bom chute’, reportou o Daily Star em sua capa em 1998, em um artigo sobre o que foi visto como a má administração francesa da Copa do Mundo naquele ano.
Mas são os alemães, antes inimigos mortais da Grã-Bretanha, que recebem o pior. O mais notório exemplo ocorreu em 1996, quando o The Mirror, em outro artigo relacionado ao futebol, tratou seus leitores como uma enorme manchete ‘Achtung! Surrender!’. Enquanto isso, o príncipe Harry, o filho mais novo do herdeiro ao trono, foi recentemente flagrado usando um uniforme nazista em uma festa a fantasia.
Agora, muitos alemães estão cheios de tudo isso. Os alunos alemães que viajam para a Grã-Bretanha regularmente reportam que são ridicularizados, levam cuspes e são chamados de nazistas pelos cidadãos britânicos. O governo britânico declarou que o currículo de história poderia ajudar a aliviar isso, melhorando o perfil da Alemanha lecionado às crianças.
‘Está certo que a Segunda Guerra Mundial e os crimes do período nazista são lecionados e entendidos’, disse o embaixador britânico na Alemanha, Sir Peter Torry. ‘Mas as crianças britânicas também devem aprender o que a democracia alemã alcançou desde 1945’.
O embaixador alemão na Grã-Bretanha, Thomas Matussek, falou sobre a aparente preocupação da mídia com o nazismo – ‘não passa um dia sem um documentário ou um filme sobre a era nazista’, afirmou uma vez – e a freqüente ‘repetição de clichês e estereótipos’ sobre a Alemanha.
Na Der Spiegel, Matthias Matussek, que é o irmão do embaixador, escreveu um severo artigo sobre a questão depois de algumas crianças alemãs serem atacadas em Londres. ‘Na Grã-Bretanha, os alemães sempre foram parte da vida diária, com caricaturas nazistas espalhadas por todos os lados’, escreveu. ‘Sessenta anos após o fim da guerra, crianças alemães de 10 anos são caçadas nos parques de Londres por serem ‘krauts’.’
Reinaldo Azevedo
‘O grande carnaval’, copyright Primeira Leitura (www.primeiraleitura.com.br), 24/04/05
‘Enquanto a imprensa cantava, entre irônica e tonitruante, o risco de naufrágio da Igreja Católica ou antevia o fim da era João Paulo 2º com a eleição de um papa alinhado com as demandas das esquerdas do Terceiro Mundo – e não necessariamente com as demandas do Terceiro Mundo, que, oh surpresa!, podem não ser as mesmas -, quem naufragou de verdade na cobertura da eleição do novo papa foi o jornalismo, aquele das grandes empresas, globalizando, por assim dizer, o desastre protagonizado pela mídia americana na cobertura das eleições. Deu Bento 16. Contra todas as evidências. As falsas evidências.
Nos EUA, coube aos blogs desfazer mentiras, apontar distorções, corrigir desinformações, dar destaque a contradições. Enquanto qualquer leitor de sites pequenos – se comparados, vá lá, ao New York Times – tinham a clara percepção da vitória de George W. Bush, a candidatura do indeciso democrata John Kerry era embalada por um misto de convicções e fantasias. O processo custou até a demissão do decano e antes intocável Dan Rather. E tudo porque um americano qualquer teve a curiosidade de investigar a tipologia de uma máquina de escrever e concluiu que um documento anti-Bush não tinha a data alegada e, pois, era falso.
Ali, tratava-se de evidenciar com uma fraude material o que era uma fraude política e intelectual. A mídia liberal (a esquerda de lá) americana tinha chegado à conclusão de que a vitória de Bush era inaceitável. Os eleitores achavam outra coisa. Como toda a verdade sobre o presidente, por pior que fosse, não parecia suficiente para convencer os donos dos votos e evitar o que essa mídia considerava um mal, optou-se por combatê-lo com um bom par de mentiras. Mentiras para defender o bem, é claro, já que mentira nefasta é só aquela contada pelos nossos adversários.
No caso da eleição de Bento 16, a coisa foi um pouquinho diferente. Ninguém tentou encontrar uma ‘prova’ contra o cardeal. O que se construiu foi um cenário de pantomima midiática, em que a torcida anti-Ratzinger – e, de fato, anti-João Paulo 2º – buscou criar um clima de racha e conflagração na Igreja Católica que, como se vê, dada a rapidez da decisão, nunca existiu. Boa parte, com as exceções de sempre, não foi a Roma ver para enxergar, escutar para ouvir. Prevaleceram o comportamento de manada e a idéia fixa de que a Igreja ora pende para um lado, ora para o outro, para se corrigir.
No fim das contas, tratava-se de mera operação mimética: cobria-se o Conclave ou os bastidores da Igreja mais ou menos segundo os critérios dispensados à cobertura da política partidária. Políticos estão sempre na corda bamba, fazem concessões, negociam, cedem, mudam de lado, retornam ao nicho de origem, trocam de novo, discursam contra a sua própria prática, praticam sua política, com freqüência, contra o discurso, banalizam falas e a própria biografia em nome da sobrevivência. E talvez assim deva ser. Excesso de rigidez na Res Publica não é necessariamente prova de qualidade. O que não quer dizer que se deva ser uma vestal na oposição e uma cafetina de lupanar quando no governo, a exemplo do que temos visto.
Com a Igreja, no entanto, as coisas podem ser um pouquinho diferentes. É por isso que ela tem 2000 anos e ninguém mais se lembra da Arena, o ‘maior partido político do Ocidente’. Foi enterrada pela história. Seus remanescentes, abrigados no PP, se vocês forem perguntar, vão se dizer todos de centro-esquerda! Até Paulo Maluf reivindica o estatuto de ‘progressista’, o que não lhe fica necessariamente feio num critério puramente comparativo: também são ‘progressistas’, aliados de Lula, políticos como Roberto Jefferson, Valdemar Costa Neto e José Sarney. Por que não Maluf? Sim, eu sei, ele tem uns túneis e umas avenidas sob suspeita a mais, mas a diferença, parece, é só de expertise e performance, não de essência, entendem?
Porque se cobre política assim, porque se destacam os políticos, necessariamente efêmeros, e essa efemeridade é condição da manutenção do sistema democrático, faz-se uma leitura da Igreja que se pretende semelhante. E é assim em qualquer lugar do mundo. As operações intelectuais são às vezes risíveis. Pegue-se o caso de dom Cláudio Hummes. Não estou dizendo que não possa vir a ser papa um dia. Talvez sim. Mas qual foi o destaque principal conferido ao arcebispo de São Paulo? Teriam sido suas contribuições teológicas, o embrenhar-se pelos caminhos dos doutores da Igreja, suas investigações profundas sobre doutrina? Não! Aqui e alhures, contavam era o seu perfil ‘social’ e seu alinhamento com as greves do ABC – a única concessão que se fazia ao fato de que o homem, afinal de contas, é um padre e, diziam, candidato a Santo Padre era o fato de ser ‘moderado’ em doutrina. Vendia-se dom Cláudio como papa com as credenciais que o fariam capelão de sindicato.
A moderação, evidentemente, não deve ser vista como um defeito de origem. No mais das vezes, ela serve a bons propósitos. Lamento chocar alguns com o que farei em seguida, recorrendo a um dos príncipes da Igreja na indagação que se seguirá (quando eu estiver falando de sindicato, prometo apelar à literatura pertinente): é que falo sobre Igreja, afinal. Então vamos à Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios: ‘Se a trombeta emitir um som incerto, quem se preparará para a batalha?’ (14:8). A resposta de dom Cláudio sobre a fé de Lula, por exemplo, é um desastre só. Disse que o presidente é um ‘católico a seu modo’. Melhor teria sido se calar. Não era obrigado a falar. E teria sido melhor, quem sabe?, até para sua possível ambição (emprego o termo sem ironia) de ser papa. É uma daquelas situações em que infinitas respostas servem, ainda que não necessariamente certas. Escolheu, no entanto, uma que, sem deixar de estar errada, ainda serve para semear confusão. Um sonido com esse grau de relativismo, se emitido do Trono de Pedro, levará o rebanho a bater cabeça e cair na boca do lobo.
Na homilia que antecedeu o Conclave, o ainda apenas cardeal Ratzinger elegeu justamente o ‘relativismo’ como o seu alvo principal. Relativismo este que ele entende, e com razão, é a principal ameaça à Igreja Católica. Neste ponto, peço especial atenção tanto aos leitores que costumam gostar do que escrevo como aos que detestam da primeira à última linha.
É claro que sei que há quem queira a dissolução da Igreja Católica ou a considere de uma irrelevância danada. Conheço gente com sólidas credenciais democráticas que não atribui à Santa Sé a importância que eu, por exemplo, lhe atribuo como guardiã de alguns valores fundamentais da cultura ocidental. Então vem o ponto principal: parece-me uma tolice e, mais do que isso, uma fraude intelectual cobrar da Igreja Católica, como se fosse um imperativo categórico ditado pela neutralidade científica, que ela adote procedimentos que implicariam a sua dissolução. Reparem: a neutralidade científica – que, de resto, não existe – é parte do problema no que respeita à Igreja, não a solução. Se eu escolhesse o subgênero satírico para o meu texto, diria que é mais difícil que 115 cientistas cheguem a um consenso do que 115 cardeais…
Os que querem, no fim das contas, que a Igreja seja reduzida a uma espécie de reunião de ONGs dedicadas à assistência social e à distribuição de sopão e camisinha podem continuar na sua militância ativa. Ninguém lhes tolhe os movimentos. Ao contrário até, contam com um poderoso lobby na mídia. Mas não creio que devam esperar o concurso da própria Igreja em sua tarefa (não com o da hierarquia ao menos, já que os Leonardos Boffs e Freis Bettos estão por aí para conferir suposta legitimidade teológica à sua luta).
De volta ao começo
O padrão de cobertura do pré-Conclave deixou-se, pois, contaminar por uma visão puramente política, de política comezinhamente partidária, e por um punhado de questões que são relevantes, sim, mas sobretudo para quem não tem nenhumar relação com a Igreja Católica ou, mais claramente ainda, a tem como inimiga da sociedade. Por isso tantos viram ameaça de racha no Conclave; por isso tanto se falou de uma decisão difícil; por isso tanto se escreveu sobre o confronto entre uma ‘Igreja curial’ e uma ‘Igreja pastoral’; por isso tanto se especulou sobre a impossibilidade de Joseph Ratzinger tornar-se, enfim, papa; por isso os ‘especialistas’ convocados a analisar o resultado, no mais das vezes, ou são inimigos declarados de João Paulo 2º e, agora, de Bento 16 ou consideram o divino, a religião, mera questão de tempo, a ser superada fatalmente pelo avanço científico.
Ora, dirão, quer dizer que a Igreja terá de ser analisada apenas e tão-somente segundo seus próprios critérios e fundamentos? Não, não quer dizer. Mas quer dizer que não se pode dispensá-los sem que se perca parte importante da cultura, da civilização e do aporte filosófico que se relaciona com a questão. Reitero: algumas das grandes dúvidas e perplexidades dos leigos honestos foram dirimidas, no âmbito teológico, por Santo Tomás de Aquino ao estabelecer a independência entre os domínios da fé e da razão. Ninguém é obrigado a concordar com Santo Tomás. Mas, se é o caso de fazer reportagem sobre Igreja, ignorá-lo é fazer a opção preferencial pela bobagem; ignorá-lo corresponde a investir na fantasia de que a Igreja Católica acabará cedendo, fatalmente, em algumas questões doutrinais porque a ciência não lhe deixará alternativa. E eu, no entanto, lhes digo: não vai! Nem que, por isso, esmoreça até se tornar uma seita minoritária, como anseiam alguns. Mas o fará, se o fizer, optando pelo próprio caminho. Não vai ser empurrada para o atalho que a conduziria cedo ao destino a que, querem aqueles, chegará, ainda que tarde.
Há católicos bons e sinceros que estão descontentes com a ascensão de Bento 16. Mas compõem a minoria dos decepcionados com o resultado do Conclave. A larga maioria quer que a Igreja se lixe. Ora, se o novo papa é mesmo o desastre que vislumbram, estão reclamando de quê? Deixem que ele faça por vocês o que vocês fariam se pudessem. Ocorre que, suspeito, há nesses setores a ligeira desconfiança de que ainda não foi desta vez que o Trono de Pedro se partiu.
Tolices
Sugiro aos leitores que façam uma breve pesquisa. Selecionem, ao acaso, dez textos da grande mídia brasileira sobre o pré-Conclave. Eu fiz isso. Ponham tudo numa página de Word do computador e depois acionem o mecanismo de busca de palavras. Proponho algumas chaves: ‘camisinha’, ‘homossexuais’; ‘casamento’, ‘sexo’, ‘aborto’, ‘direito à vida’, ‘doutrina’, ‘fé’, ‘Deus’, ‘Cristo’. Cada um defina o seu cardápio. Façam isso sobretudo com a transcrição do noticiário de TV que alguns sites de emissoras põem no ar. Vocês hão de verificar que a palavra mais escrita ou pronunciada na cobertura da eleição do papa foi, sem dúvida, ‘camisinha’. Uma série de reportagens especiais sobre, sei lá, sex-shops poderia apresentar resultado semelhante. A ‘fé’ certamente perde de longe. ‘Deus’, então, é uma ocorrência fortuita, geralmente na boca de algum religioso. Tudo, em suma, fora do lugar.
Poder-se-ia dizer que o jornalismo cedeu àquilo que tem mais importância para as pessoas. É um ponto de vista, que, é claro, não é o da Igreja e, modestamente, fica claro, não é o meu. Realmente aguardo argumentação consistente, segundo o ponto de vista religioso ou leigo, tanto faz, que demonstre que a camisinha é um assunto moralmente superior à fé. Como isso é indemonstrável e como, na prática, serem esses dois termos comparáveis ou permutáveis num debate expõe nada além de ignorância teórica e confusão prática. O jornalismo naufragou.
O máximo que se pode argumentar em favor da camisinha não é, obviamente, a sua superioridade teológica (tenho quase vergonha de escrever isso), mas a sua eficiência como método contraceptivo e proteção contra as doenças sexualmente transmissíveis. Por isso, Santo Tomás de Aquino me orienta – ou a razão prática, esta que se ausentou da cobertura da eleição de Bento 16 -a que recomende aos governos que continuem a fazer suas políticas preventivas. E a Igreja Católica continuará a orientar os seus fiéis. Quem seguir a orientação de um Estado leigo e eficiente (incompetente não vale) vai, certamente, usar o preservativo se fizer sexo de risco. Quem seguir a orientação da Igreja não vai usá-la. Mas também não fará sexo de risco, pois não? Ou será que uma eventual vítima da aids argumentaria que, por causa das palavras da Santa Madre, fez sexo de risco sem proteção? Tenham paciência!
De resto, quando o debate evoluiu com alguma seriedade, muito se falou sobre a pesquisa com células-tronco ou que destino dar aos embriões congelados. Creio que a própria Igreja Católica, sem renunciar – e não vai renunciar – ao princípio da preservação da vida, chegará ainda a uma orientação aos seus fiéis (e não a uma lei a ser imposta sob força armada, é bom lembrar) mais precisa do que as suas óbvias indefinições de hoje em dia. A mim me basta que sua posição política – sim, política! – a respeito seja em favor de uma definição ética por parte dos cientistas que tire do horizonte a ameaça do vale-tudo. Que há gente lidando com a vida humana como se, num extremo, decidisse que destino dar a um chinelo velho (a turma da eutanásia) e, no outro, como se estivessem numa simples pesquisa de engenharia de materiais, isso há. Atenção: não há mal nenhum em que as restrições éticas da Igreja Católica possam fazer ao futuro da humanidade que os cientistas, eventualmente sem ética nenhuma, não possam fazer em escala infinitamente superior.
Diálogo
Finalmente, há o diálogo que a Igreja Católica é instada a fazer com as outras religiões, tema também menosprezado enquanto as reportagens se perdiam na Pastoral do Látex… O diálogo é necessário desde que haja com quem e sobre o que dialogar. Ainda apenas cardeal, Ratzinger redigiu um documento, Dominus Iesu, no qual afirma o catolicismo como ‘religião revelada’, em que reconhece que os outros credos ‘podem receber a graça divina’, mas estão em situação de ‘deficiência’ na comparação com os católicos.
Houve ranger de dentes e protestos. Não dos líderes islâmicos, não dos líderes do judaísmo, não dos líderes, sei lá, do hinduísmo, que pensam o mesmo de suas respectivas religiões. Quem protestou foram os leigos e os sequazes da Teologia da Libertação e exotismos assemelhados. Queriam o quê? Que um cardeal da Igreja, falando, então, em nome do Vaticano, desse um peteleco em Paulo, o apóstolo dos gentios? O curioso é que esses mesmos se deixam tomar de encantos com o Islã quando, em nome da afirmação de uma identidade cultural, seus crentes reafirmam a primazia de sua religião e sua condição de realidade revelada. Estranho exotismo teórico este dos multiculturalistas leigos: seu espírito de tolerância e amor pela diversidade não compreende, vejam só!, a Igreja Católica e os católicos…
E por que é assim?
Não sei exatamente por que é assim, mas tenho cá algumas hipóteses. Eu começaria a investigar a questão – que não se resolverá neste texto, que já vai muito longe (mas lanço a especulação) – por um aspecto que me parece fazer sentido. Até quando o socialismo era um horizonte que parecia tangível, até quando se podia, a um só tempo, pertencer a uma religião milenarista como o comunismo, mas que aspirava à condição de organização racional da sociedade, todas as cobranças e censuras de certa esquerda eram dirigidas ao capitalismo, aos capitalistas, à sociedade de classes, de que a Igreja seria mera sequaz, mera prestadora de serviços, mera produtora de alienação. Derrotado o socialismo por seus próprios deméritos, vendo no horizonte senão a realização e o desenvolvimento do modelo que julgava conduzir a humanidade ao desastre, restaram a essa esquerda alguns caminhos surgidos em pleno desespero de sua causa original.
No que respeita aos valores sociais e culturais, ela vislumbrou no multiculturalismo uma resposta a seu equívoco intelectual essencial. Multiculturalismo que, para ser ‘multi’, curiosamente, precisa excluir das opções defensáveis justamente o sistema que lhe garante a liberdade de pensar. É mais fácil encontrar um multiculturalista ofendido com a morte de iraquianos (que ofende mesmo) do que com o assassinato de americanos nas Torres Gêmeas. Um intelectual tido como um dos mais importantes sociólogos brasileiros, Octavio Ianni (já morto), chamava o terror árabe de ‘resistência’. Não estava sozinho. Vocalizava uma corrente de pensamento. No que respeita aos valores propriamente políticos, vencida esta corrente pela realidade dos fatos e enxergando, certamente, bem poucas alternativas ao modelo de mercado que lhe parecia fonte de todo o mal, vê-se obrigada a transformar em proselitismo político e, em suma, numa causa o que resta de militância transcendente: direito ao aborto, direito à eutanásia, contracepção etc.
O ‘novo homem’, aquele que viria à luz com o fim da sociedade de classes e com o socialismo, já lhe parece tarefa pesada demais e, de fato, irrealizável. No cenário de sua ideologia devastada, não vendo alternativas para a vida, supõe que pode fazer uma nova escolástica da morte. E eis o ponto: existe uma Igreja Católica no meio do caminho. E existe, sim, um Bento 16, teólogo refinado, o que é reconhecido até por seu arquiadversário, Hans Kung (Boff não entra aqui – esse não é de nada!), perfeitamente capaz de perceber que o laicismo, em muitas circunstâncias, nada mais é do que o sucedâneo do comunismo. E não necessariamente para construir a sociedade que aquele construiu ou construiria. Digamos que, daquele, aproveite apenas a fase da demolição. Não é por outra razão que a militância leiga mais ativa convoca, como aliados de sua luta, do Islã aos muitos orientalismos em voga. Não sendo cristão, serve.
Esta é só uma hipótese. Mas, como direi?, teologicamente informada. Como vêem, este é também um texto de agradecimento ao sistema que me permite – e também aos meus adversários teóricos – escrever o que havemos por bem escrever: seja sobre Santo Tomás de Aquino, seja sobre camisinhas. E isso só é possível, hoje em dia, porque algumas batalhas foram ganhas entre os séculos 11 e 13. Como bem lembrou Carlos Heitor Cony em sua coluna na Folha de quarta-feira, dia 20, já havia mundo antes da tentativa de suicídio do gato de João Gilberto.’