Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Alberto Dines

‘Sexta-feira é dia de susto. E de susto em susto descortina-se a dimensão do estrago. De estrago em estrago, escancara-se o tamanho da devastação. Os respingos que agora atingiram a gestão de Antônio Palocci na prefeitura de Ribeirão Preto não são mais graves do que as confissões do mago-marqueteiro Duda Mendonça sobre suas contas no exterior e a eventual relação com a campanha eleitoral de 2002. As confissões de Rogério Buratti não se comparam ao desvendamento do mensalão ou do valerioduto.

Assustador é o conjunto dos escombros. A avaliação da crise pode ser feita através do número de parlamentares e funcionários já incriminados ou pela variedade de ilicitudes que já abarcam parte substancial do Código Penal e correm o risco de avançar no campo dos homicídios com a convocação do irmão do prefeito assassinado de Santo André, Celso Daniel, para depor na CPI dos Bingos. Agora que os atos de delatar ou trair perderam certas conotações farisaicas e legitimam-se como contribuição ao processo judicial pode-se esperar uma realimentação infinita das denúncias.

A oposição, felizmente, escapou da armadilha da pena capital, os tais ‘movimentos sociais’ livraram-se das tentações de fazer política na marra. Resta a solução mais complicada, mais demorada, tensa e desgastante: o ritual da verdade, esta diabólica homeopatia em que a lenta diluição dos venenos, em vez de curar, só revela a extensão das enfermidades.

A sociedade brasileira está diante do seu maior desafio desde a proclamação da República: desta vez não adiantam as impaciências, os cortes bruscos e atalhos. Muito menos a exacerbação e os paroxismos. A compulsão de virar a página, desta vez, precisará ser contida para que a leitura faça-se linha por linha, palavra por palavra.

O milenarismo que herdamos da cultura portuguesa com os seus rasgos apocalípticos precisará ser controlado, o Juízo Final deve ser compreendido como algo semelhante à revelação. A natureza do nosso inferno precisa ser urgentemente conhecida.

A revista ‘Economist’ na sua última edição coloca no banco dos réus o pragmatismo das lideranças do PT. Errado: o dantesco espetáculo com que nos defrontamos origina-se de um esquema detectado há quase 70 anos justamente por um dos fundadores do PT, Sérgio Buarque de Holanda. A tal ‘sociedade cordial’ que a ele se atribui é uma formulação simplista de quem não o compreendeu em profundidade. Nada tem a ver com o penetrante diagnóstico de um sistema onde a esfera privada, pessoal, impõe-se à esfera pública, institucional.

O velho PT está sendo implodido por uma falsa ‘afetividade’ que corroeu não apenas seus princípios políticos mas seus compromissos morais. Aquela carga de emoção orquestrada pela publicidade dinamitou regulamentos, passou por cima de códigos, consagrou uma forma espúria de sentimentalidade. Daí as crises de choro e os soluços engolidos quando confrontada com a realidade. A ‘ingenuidade socialista’ não permitiu que os aprendizes de feiticeiros percebessem o poder letal da corrupção num circuito marcado por compadrios e cumplicidades.

O poder tóxico da nossa ‘informalidade’ pode ser melhor percebido se recortado e comparado com o que acontece nestes dias na Faixa de Gaza onde o Estado de Israel (compreendidos os seus três poderes), sem armas mas com determinação, disciplina e lágrimas consuma a dolorosa evacuação dos assentamentos em território palestino como etapa inevitável para a construção da paz.

A saída cabal desta crise, além das punições e outras terapias tópicas (como a mini-reforma eleitoral votada no Senado na quinta-feira) impõe uma reeducação intensiva. O poderoso processo de ‘desregulamentação’ e afagos gestado ao longo de alguns séculos precisa ser urgentemente denunciado e combatido. Em todas as esferas. É deletério, injusto, favorece a impunidade, não estimula a busca de excelência, contraria o princípio da isonomia sem a qual não existe o Estado de Direito.

O espetáculo da terra arrasada será interrompido quando aparecer alguém disposto a desmontar esta amabilidade mentirosa e perversa.’



Flávia Marreiro e Uirá Machado

‘‘Oposição perdeu a hora do golpe branco’’, copyright Folha de S. Paulo, 21/08/05

‘A oposição deixou passar ‘a hora do golpe branco’. PSDB e PFL refizeram os cálculos e avaliam, agora, que é melhor ‘sangrar o governo, sangrar o presidente da República’ do que partir para uma tentativa de impedimento de Luiz Inácio Lula da Silva.

A opinião é do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, professor do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro). Em meados de junho, ainda no começo da crise, Santos provocou polêmica ao afirmar, em sua coluna no jornal ‘Valor Econômico’, que, a julgar pelo comportamento de tucanos e pefelistas, o ‘novo lacerdismo’ havia ‘se mudado para São Paulo’: a oposição preparava um ‘golpe branco’ contra o governo.

Agora, diz o professor, a situação mudou. ‘Já passou a hora do golpe branco, sim. E isso cria um problema complicado, porque, agora, se houver motivos jurídicos e políticos razoáveis que comprovem a participação ou conivência do presidente nesses episódios, ele tem de sair. E aí, quem não quer mais isso é a oposição.’ Para ele, na arena nacional, o PFL não passa de um ‘partido laranja’ do PSDB.

Quanto ao PT, Santos vê o partido caminhar para um racha. O professor não enxerga possibilidade de um ‘denominador comum’ no confronto entre a ala esquerda, crítica do governo, e a ala que apóia o governo, mas que tem integrantes no centro do escândalo do ‘mensalão’.

O autor de ‘A Democracia e seu Futuro no Brasil’ (2001) avalia essa desmontagem do PT como um retrocesso político brasileiro, que pode dar mais espaço a discursos ‘populistas demagógicos’: ‘Se isso vier a acontecer, será o grande ilícito que a antiga cúpula dirigente do PT terá praticado’.

Santos ainda criticou o oportunismo de uma reforma política neste momento, atacou o que classificou de ‘omissão’ de intelectuais e questionou o papel da imprensa.

A seguir, trechos da entrevista concedida à Folha, por telefone, na última quinta-feira.

Folha – O sr. disse enxergar movimentação para um ‘golpe branco’ da oposição. A estratégia ainda está em curso?

Wanderley Guilherme dos Santos – Fico espantado com a dúvida das pessoas sobre esse assunto, quando ele passou a ser um tópico banal. Basta ver que o que passou a ser discutido todos os dias no começo da crise eram os cálculos da oposição para saber se, quando e como promoveriam o impedimento do presidente.

Quem falou em impedimento foi o ex-presidente Fernando Henrique. Ora, um pedido de impedimento com base no que havia… O que havia era a descoberta de uma transação corrupta dentro dos Correios, mais nada.

A representação tendo em vista o impedimento aparece inteiramente descolada de qualquer argumento em relação aos motivos comprovados que justifiquem o pedido de impedimento. Aparece, isto sim, como discussão em torno da oportunidade.

Ou seja, a discussão não é se há motivos para o impedimento, mas se, considerando o sucessor, o impedimento deve ser promovido. O que é isso? Estão discutindo de forma precipitada o afastamento do presidente. Se é precipitado, significa que não tem base. E isso se chama golpe.

Folha – Mas parece que a oportunidade para pedir o impedimento já apareceu e a oposição não levou isso adiante…

Santos – Já apareceu, sim. A colocação é muito interessante, porque golpe branco ou você dá em 48 horas ou, então, não dá mais.

O que ficou claro é que houve a tentativa imediata de tirar o presidente nos primeiros dias da crise. Depois, com o passar dos tempos é que perceberam o que significaria tirar Lula, com todas as conseqüências políticas.

Já passou a hora do golpe branco, sim. E isso cria um problema complicado, porque, agora, se houver e se aparecerem motivos jurídicos e políticos razoáveis que comprovem a participação ou conivência do presidente da República em todos esses episódios, ele tem de sair. E aí quem não quer mais isso é a oposição.

Folha – Por quê?

Santos – Há duas formas de esterilizar um governo. Uma é o impedimento. A outra é a que a oposição vem usando, impedindo o governo de governar. Isso vem sendo chamado pelo nome ‘gentil’ de sangrar o governo. É uma retórica de jagunço, sangrar o governo, sangrar o presidente da República.

Folha – O sr. vê uma ‘conspiração das elites’ contra Lula?

Santos – No século 20, a linguagem educada esteve e está até hoje muito influenciada pelo marxismo e pela psicanálise. Assim, quando se fala em elite, imediatamente, as pessoas educadas pensam em elite econômica, que é a forma primária ou o marxismo primário ou vulgar. Pensam em elite econômica e ficam sem saber como explicar se, afinal de contas, as elites econômicas estão favoráveis ao governo. E não sabem sair desse círculo de giz.

Esses comentaristas, por causa disso, ficam extremamente incapacitados de perceber algo que está acontecendo e que é raro ver dessa maneira, que é a luta pelo poder nua e crua. Trata-se de disputa por poder. Quem não enxerga isso perde a oportunidade de ver essa disputa, as estratégias que são utilizadas, as manobras.

Folha – E que papel joga o PFL nessa crise?

Santos – Uma outra coisa que, para mim, ficou revelada, foi que, no plano do poder nacional, o PFL é um partido laranja do PSDB. O PFL é um partido autônomo nos planos estaduais, mas no plano nacional não tem projeto autônomo e é liderado pelo PSDB.

Folha – O sr. concorda com a opinião segundo a qual o nosso sistema político, com o presidencialismo de coalizão, seria o responsável pela crise?

Santos – Não concordo. A responsável pela crise é uma luta de poder. E só. O que houve foi a utilização de um bolsão de corrupção como arma para atacar o governo. Fosse qual fosse o sistema político. Até porque o parlamentarismo existente no mundo democrático é de coalizão.

Folha – O que o sr. pensa sobre as propostas de reforma política?

Santos – Em um momento como esse, surgem predadores de todo tipo. Não sei se alguma delas vai ter sucesso, mas eu não posso tomar isso como uma discussão fora do contexto em que é apresentada. No contexto atual, são predadores. Se é solução para alguma coisa? Não é. O que está em pauta é o esquema de corrupção que tem de ser investigado com a extensão dele.

Folha – Qual prejuízo que uma reforma agora pode trazer?

Santos – Uma das conseqüências ruins é o reforço da tradição bacharelesca brasileira de elaborar leis draconianas na suposição de que, se você torná-las mais duras, conseguiria impedir os crimes políticos. Por exemplo, querer proibir chaveirinho é de um ridículo atroz.

O que fica implícito nisso é simplesmente o potencial de enriquecimento de um outro grupo de predadores da vida político-social brasileira, que é a corporação dos advogados. O resultado dessa legislação perfeccionista é que se pagam advogados a peso de ouro para ensinar como fraudar e a quilos de ouro para fazer a defesa de quem é pego fraudando.

Folha – Como o sr. avalia o comportamento da imprensa na crise?

Santos – O que está em jogo é o seguinte: como é que o sr. Roberto Jefferson conseguiu obter a projeção que obteve e levar durante muito tempo a CPI dos Correios pelo ‘narizinho’? Por que ele conseguiu isso? Porque ele estava falando a verdade? Não. Porque interessava ao PSDB e ao PFL.

Só por isso. Achar que é porque ele estava falando uma coisa que chocava… Se fosse só isso, não dava. Se não desse no ‘Jornal Nacional’, não acontecia tudo isso. E, para dar no ‘Jornal Nacional’, tem que interessar ao PSDB e ao PFL. Por exemplo, não foi suficiente o editorial da Folha [no episódio da compra de votos para a provação da emenda da reeleição de FHC, em 1997] para criar um escândalo.

Folha – E por que foi diferente no caso de Jefferson?

Santos – Porque é do interesse das Organizações Globo. Isso é um outro tema. Quando digo imprensa, eu quero me referir implicitamente às Organizações Globo, que são um problema dentro do processo político brasileiro.

O ‘Jornal Nacional’ tem a emoção da opinião pública brasileira sob controle. Durante o mês passado, as ansiedades, expectativas e angústias eram geradas pela dramaturgia do ‘Jornal Nacional’. Ele tem controle sobre a temperatura da emoção. Isso não é algo que deva ser considerado normal em uma democracia.

O que acontece é que, em países como o Brasil, a imprensa é um ator político relevantíssimo. Sua moeda é justamente ter poder sobre a emoção da opinião pública. Para que serve esse poder? Para obter conformidade de governo.

Folha – E o comportamento dos intelectuais? Eles devem participar do debate na imprensa?

Santos – O papel dos intelectuais é oferecer suas análises. Mas o espetáculo que eles deram agora, os poucos que se manifestaram, a convite, para dizer que não havia golpe, foi triste. A análise deles é primária, são incompetentes. A maioria dos intelectuais que se manifestaram foi de uma pobreza franciscana.

Não sabem o que está acontecendo e ficam dizendo bobagens. Se você prestar atenção, os intelectuais que falam sobre política só têm opinião do senso comum.

Só que eles manifestam o senso comum com uma linguagem e uma pomposidade que parece que eles estão ensinando alguma coisa que valha a pena.

Eles não estão tendo nenhuma influência nesse momento. Não estão tendo nenhum papel. Estão omissos. O que dizem não tem a menor repercussão. Não tem nenhum impacto.

Folha – Qual a avaliação que o sr. faz do momento que vive o PT?

Santos – A origem dos problemas atuais foi essa, segundo o diagnóstico do próprio PT. Seu funcionamento interno foi maculado e só porque foi maculado é que aconteceram as coisas que até agora aconteceram.

Portanto, e isso é importante, os ilícitos que ocorreram não resultaram do funcionamento normal do PT, mas, justamente, de uma violação das normas legais de funcionamento interno. Pelo que tem aparecido nos jornais, há duas linhas principais de concepção que o PT pode seguir.

Uma entende que o que ocorreu foi uma violação do modo normal de o partido operar. Esse é o diagnóstico da nova direção. Por todas as declarações que tenho lido, sobretudo do Tarso, ele considera que a ‘regeneração’ do partido depende de uma ascensão de tendências bem à esquerda do que vinha sendo a direção. Por quê? Porque elas teriam uma opinião apropriada do partido em relação ao governo, ou seja, se contrapondo a algumas políticas.

Discordo. Neste momento, a visão de Tarso escapole para uma avaliação que vai ajudar a inviabilizar o PT como partido, pelo menos integrado como até agora.

Do outro lado, aqueles que acho que têm a perspectiva correta do partido em relação ao governo, que é de apoio, são as pessoas, pelo menos as que tem aparecido, que são apontadas como responsáveis pelos desvios de administração. E vejo que, se se preservar esses que violaram a democracia interna, também se levará a impasses de difícil superação.

Folha – O partido caminha para um racha?

Santos – Acho que sim. Temo que sim. É com isso que eu estou preocupado, porque eu acho que os dois campos principais que se defrontam agora criam linhas de clivagem. Não vejo denominador comum. Estou vendo um racha de cabo a rabo: na política em sentido partidário, na política mais ampla, na política econômica…

Folha- Qual a conseqüência de uma eventual desagregação?

Santos – Estou preocupado com o PT como instituição. Por conseqüência, com o PT como uma força capaz de incorporar camadas muito amplas da população na vida política. É um partido com capacidade de agregar setores mais pobres da sociedade, que não estariam ligados à política, e que foram incorporados por uma adesão pelo menos simpática ao PT.

Essa participação ampliada é importante para a democracia. Isso pode abrir campo para populismos demagógicos, na ausência de um partido mais disciplinado e mais ideologizado.

Folha – E isso seria um certo retrocesso no amadurecimento político brasileiro?

Santos – Sem dúvida nenhuma. Se isso vier a acontecer, será o grande ilícito que a [antiga] cúpula dirigente do PT terá praticado.’



Luis Fernando Verissimo

‘Parcialidades’, copyright O Globo, 21/08/05

‘Leitores têm estranhado minha reticência em relação ao escândalo que domina o noticiário e as conversas e ameaça fazer o Brasil cair no caos, ou nas mãos do Severino. Estranho a estranheza. A reticência não é tanta assim, tenho dado meus palpites. Mas alguém esperava que eu fosse participar de um massacre só para parecer imparcial? Critico o governo Lula desde que ficou claro que sua política econômica seria a do PSDB e que iria de Malan a pior e não tenho nenhuma ligação com o PT fora a simpatia declarada e alguns amigos. Mas não devo nenhum tipo de contrição pelo que acreditava e não vou contribuir nem com silêncio constrangido para a tese propagada com furiosa euforia pela direita, de que a ruína do PT é a ruína definitiva da esquerda no Brasil e a prova de que um governo de origem popular não tem competência nem para esconder sua sujeira sob o tapete como gente mais preparada – sem falar nos seus erros de português – o que dirá administrar um país. O PT que saia, se puder, do lodaçal em que se meteu e – para repetir o mantra do momento, nem sempre dito com muita sinceridade – que tudo seja investigado e todos os culpados sejam punidos, mas que se chame o fervor ideológico que move certos políticos e certa imprensa pelo seu nome verdadeiro: massacre.

Não sou imparcial. Sou parcial a tudo que prometa nos tirar desta triste rotina de oligarquias eternizadas e privilégios intocáveis, ou miséria eternizada e submissão intocável, e a esta outra triste rotina de governos de esquerda abatidos no nascedouro – quando não se autodestroem. E, claro, ao Internacional e ao Botafogo, mesmo quando não merecem.

No Brasil, ser objetivo é quase uma forma de cumplicidade.

***

A Cora Rónai me dedou. Sou parcial a comida de avião. Ela e eu pertencemos a uma minoria, gente que não apenas come o que as empresas aéreas oferecem durante o vôo mas gosta. Perdoamos tudo: carne muito passada, Coca-Cola servida em copos absurdamente pequenos, tudo, pelo prazer de ter aquela bandejinha na nossa frente. Algumas companhias aboliram as refeições. Não importa, comemos seus tabletes com o mesmo entusiasmo. No meu caso, o gosto pela comida de avião tem muito a ver com o gosto por viajar. Sou dos que ficam felizes de esperar em aeroporto. Gosto até de atraso, como não iria gostar de lasanha borrachuda? O importante não é a comida, é estar comendo a caminho de algum lugar.’



Roberto Benevides

‘Nosso homem em Brasília’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 19/08/05

‘Ninguém melhor do que o nosso personagem para fazer a própria apresentação: ‘Faz mais de quatro décadas que, ainda moleque, comecei a trabalhar em jornal. De lá para cá, fiz de tudo um pouco. Cobri geral, internacional, agricultura e política – muita política. Mexi com jornal, agência de notícias, rádio, televisão e Internet. Atuei na imprensa estudantil e sindical. Durante a ditadura, passei mais de dez anos escrevendo em jornais clandestinos e ajudando a publicá-los. Colaborei com a imprensa alternativa no período da redemocratização. Anistiado, trabalhei em jornais nanicos e, mais tarde, em jornalões. Fui foca, repórter, redator, correspondente internacional, editor, colunista – e chefe também. Mas gosto mesmo é de correr atrás de notícias e de interpretar os fatos no momento em que eles estão ocorrendo’.

Aos 57 anos, completados no dia 10 de mais este agosto turbulento da política brasileira, Franklin Martins é o comentarista político de maior audiência no país. Acorda cedo para fazer o comentário matinal na CBN e, muitas vezes, vai dormir já de madrugada, depois de apresentar a análise do dia no ‘Jornal da Globo’. Entre as duas tarefas, aparece ainda no ‘Jornal Nacional’, sempre comentando as coisas da política – o que faz dele, depois de oito anos em Brasília, um dos mais bem informados brasileiros sobre a crise detonada no governo Lula pelas denúncias do deputado Roberto Jefferson. Nesta entrevista a NoMínimo, no entanto, Franklin vai além dos fatos e busca tanto explicar as origens da crise quanto antever o seu desdobramento, um duplo exercício a que está acostumado no programa semanal ‘Fatos e Versões’ que ele comanda semanalmente na Globonews.

Capixaba de Vitória, Franklin criou-se no Rio. Ou como ele conta em seu site: ‘Mais especificamente em Copacabana, no Posto 6, na Bulhões de Carvalho – rua que, segundo Paulo Francis, era o pesadelo dos revisores de jornais. Afinal, num só nome, havia dois palavrões cabeludíssimos à espreita’. Antes de aportar em Brasília, morou em São Paulo, como militante clandestino contra a ditadura militar, em Cuba, onde participou de treinamento para guerrilha, no Chile e na França, como asilado político, e na Inglaterra, como correspondente internacional.

Filho de Mário Martins – jornalista e político de oposição às ditaduras de Getúlio Vargas e dos militares, fundador da UDN e senador cassado após a edição do AI-5 – Franklin começou a trabalhar aos 15 anos, como estagiário na ‘Última Hora’, e muito cedo ingressou na política estudantil, tendo chegado a presidir o DCE da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1968. Por pouco tempo, pois, em outubro daquele ano, foi preso no Congresso da União Nacional do Estudante, em Ibiúna, São Paulo, em companhia de mais 700 líderes estudantis de todo o país. Ele lembra: ‘Fiquei dois meses atrás das grades. Em ótima companhia, aliás – entre outros, foram meus companheiros de cela Luiz Travassos, Vladimir Palmeira, José Dirceu e Antônio Ribas, líder secundarista em São Paulo, morto na guerrilha do Araguaia’.

Num texto autobiográfico, registra ainda: ‘Dei mais sorte do que eles, que ficaram presos por um bom tempo. Dois dias antes da edição do AI-5, fui libertado graças a um habeas corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal. Passei imediatamente para a clandestinidade’. Na clandestinidade, participou do grupo de militantes da Ação Libertadora Nacional e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, que seqüestrou o embaixador americano Charles B. Elbrick para forçar o governo a libertar 15 presos políticos – inclusive o atual deputado José Dirceu, um dos pivôs da crise política em que está mergulhado o governo Lula.

O jornalista Franklin Martins poderia, portanto, estar do outro lado do balcão nessa crise que ele acompanha com a disposição de um jovem repórter, comparecendo diariamente ao Congresso Nacional, onde costuma conversar com dezenas de parlamentares antes de ir para a redação da Globo no final da tarde. A idéia de fazer política partidária, no entanto, não mais lhe passa pela cabeça. Franklin é jornalista em tempo integral e acaba de publicar o livro ‘Jornalismo Político’ (Editora Contexto), em que procura compartilhar sua longa experiência com os jovens leitores e dá algumas lições de Brasil – como esta: ‘Rouba-se muito no Brasil. Talvez roube-se menos hoje do que há algumas décadas. A imprensa está mais vigilante, o Ministério Público, mais atuante, a Polícia Federal, mais esperta, a sociedade, mais exigente. Resultado: ficou mais difícil desviar dinheiro público sem ser descoberto’.

Os protagonistas dos escândalos atuais não tiveram tempo de ler o aviso, pois Franklin entregou os originais do livro em abril, pouco antes de Roberto Jefferson detonar o esquema de que era beneficiário. Protagonistas e coadjuvantes vão ter, então, de conviver mais uma vez com o olhar implacável, mas sereno, desse jornalista que já cobriu as CPIs do Collor e dos Anões do Orçamento, adora o que faz, mas pensa muitas vezes em trocar o dia-a-dia da política por algo diferente: ‘Eu adoraria ser repórter esportivo’, conta.

Embora você seja um dos mais importantes comentaristas políticos do Brasil, talvez o mais importante, os mais jovens não sabem que você é um cara dessa geração que está no poder, foi companheiro de militância de muita gente que chegou a Brasília no governo Lula. Como bate essa crise em você? Você não imagina, às vezes, que poderia estar do outro lado do balcão?

Eu ajudo mais o país fazendo um bom jornalismo – eu acho que faço um bom jornalismo, procurando dar ferramentas às pessoas para elas tomarem as posições delas, as definições delas. Sinceramente, não tenho a tentação de estar do outro lado. E quero dizer o seguinte: a vitória do Lula tem um significado extraordinário no país, mas ela não significa que a minha geração, a geração de 68, chegou ao poder. Eu nunca achei isso. Faço uma pergunta: ‘Onde é que está o Vladimir?’ O Vladimir é o principal representante, o nome simbólico mais importante da geração de 68, e não só não foi para o poder, como está marginalizado no PT, embora eu acredite que agora vá ser candidato ao governo do Estado do Rio. Mas, quando foi o candidato aprovado na convenção do PT, houve uma intervenção lá e impediram sua candidatura para que o PT pudesse fazer uma aliança com Garotinho. Então, essa história de que a geração de 68 chegou ao poder é muito relativa.

Mas o José Dirceu, o José Genoino, o Gilberto Gil também são figuras emblemáticas de 68 e desembarcaram no poder com o Lula…

Há muitas pessoas, mas não existe uma continuidade. Tem muita gente que fez 68 e foi para o PSDB, tem muita gente de 68 que está no PMDB, tem muita gente que vem de 68 e não se reconhece em partido nenhum, acha que tudo isso são os partidos burgueses e ponto final. Não existe continuidade, embora eu ache que, na vitória do Lula e na construção do PT, uma das vertentes vem do pensamento difuso, heterogêneo, heterodoxo de 68. O que existe é um desconforto muito grande, não apenas na geração de 68 mas no país, em tudo que existe de moderno, democrático e, para usar uma palavra da moda, republicano, independentemente de partido político.

Qual é a principal causa desse desconforto?

Primeiro, os fatos em si. Nós estamos no meio da apuração, não sabemos ainda exatamente o que é. Há duas, três semanas, eu dizia que dessa missa não sabíamos a décima parte ainda. Acredito que, hoje em dia, nós sabemos a quarta parte da missa, mas não sabemos ainda o montante do valerioduto. Não sabemos de onde veio o dinheiro. O dinheiro é, como diz o Valério, como diz o Delúbio, ‘apenas de empréstimos bancários’? Não é uma história fácil de acreditar. A verdade é que não sabemos a origem do dinheiro – se é essa história mal contada do empréstimo, se são contratos superfaturados, se vem de empresas privadas que por alguma razão não podem ou não querem aparecer. Não sabemos nada!

E ainda há uma certa confusão também sobre o destino desse dinheiro – ou, pelo menos, de parte dele.

Para baixo, está tudo misturado: compra de parlamentar, acerto de dívidas de campanha, caixa 2, o cara que simplesmente estava botando dinheiro no bolso. A gente não sabe aonde vai dar isso. Mas é evidente que ninguém esperava que o PT – que, durante 25 anos, construiu sua imagem partidária fazendo da questão da ética uma questão central – fosse fazer uma lambança dessa natureza. É estarrecedor que as coisas tenham chegado a esse ponto, mesmo supondo a melhor das hipóteses – que fosse apenas pagamento do caixa 2 de campanha. Mas é um pagamento centralizado, que passa de um partido para outros. Passou de qualquer limite.

O PT ainda tem salvação nessa crise toda?

O PT está fortemente atingido, vai ter dificuldades para se reequilibrar. A decepção do país é maior do que em outros momentos. A opinião pública se decepcionava com determinado partido, mas existia um outro e ela dizia: ‘Bom, esse está limpo na história’. Eu brinco que a UDN podia ser o UDN porque nunca tinha sido poder; então, sentava o pau, falava o capeta da corrupção do PTB, do Jango, dos bigorrilhos (termo que ficou conhecido numa machinha de carnaval do começo dos anos 60 e identificava um grupo de petebistas que, então, já eram tidos como oportunistas e corruptos, dispostos a trocar os votos no Congresso por vantagens), dos bagrinhos (outro termo da mesma época, identificava estivadores subempregados que deflagraram uma longa greve nos portos e foram durante reprimidos pelo Exército) e coisa e tal e, como ela nunca tinha estado metida naquilo, as pessoas acreditavam. O PT também sentou o pau em todo mundo e, como nunca havia estado no governo federal, as pessoas acreditaram. Mas, hoje em dia, o PSDB vai lá e senta o pau, o PFL vai lá e senta o pau, quer dizer, um Catão do PFL ou um Catão tucano não conseguem convencer muito. Por quê? Porque o PSDB fez isso antes e até no esquema do Marcos Valério estava metido. E as histórias do PFL? E as histórias dos outros partidos? Então, vem uma desilusão com o conjunto da atividade política, com a representação política, com o jogo político. É mais ou menos assim: ‘A gente elege esses caras e eles vão lá para meter a mão, para roubar’. Nós já vínhamos com um Congresso extraordinariamente enfraquecido, desgastado com a vitória do Severino Cavalcanti, que era o sintoma de que o vale-tudo estava chegando ao poder, e agora chegamos a um desgaste que eu nunca vi igual. Em outras épocas, se dizia: ‘Vamos fechar o Congresso e vamos dar um golpe Estado’. Hoje em dia, não, porque o país felizmente amadureceu, o país percebe que isso não dá certo. E existe o quê? Uma interrogação. Para onde nós vamos? E com que instituições nós vamos contar? Bom, tem uma vantagem: o país tomou consciência de que nós temos de fazer uma reforma política e eleitoral profunda. O nosso sistema eleitoral é horrível.

Quem poderia ser, hoje, o sujeito dessa mudança?

Esse é o problema. Eu acho que vai ter de se fazer uma certa repactuação no país, com uma participação muito maior da sociedade em matéria de reforma eleitoral e política. Pela dinâmica das instituições, nós não vamos ter a mudança necessária. Vamos ter ajustes, uma pequena melhoria, como acabar com o showmício, diminuir o tempo de campanha, baratear os programas de televisão, melhorar a fidelidade partidária, mas a questão medular é o nosso sistema eleitoral, que só existe aqui e na Finlândia. E tudo que só existe no Brasil e não é jabuticaba não dá certo. Nosso sistema é muito ruim e, por sinal, foi adotado na maioria das democracias ocidentais, mas foi descartado nos anos 70, 80, porque, em todos os países, produziu algo semelhante: fragmentação partidária, número excessivo de partidos, dificuldade para montar maiorias, deputados donos do seu mandato e franco-atiradores, eleitos sem qualquer controle por parte de eleitores. Os países foram vendo e se afastando. No Brasil, demoramos mais 25 anos porque nós tivemos 25 anos de ditadura. Durante o período da ditadura, a nossa experiência com esse ou aquele sistema era nula, não era para valer. Então, estamos nos defrontando agora com o mesmo problema que a maioria das democracias ocidentais enfrentou nas décadas de 70 ou 80.

Qual seria o cerne das mudanças?

O brasileiro vota muito bem nas eleições majoritárias. Vota muito bem no sentido de que o voto é uma opção política, programática. Ele vota bem para prefeito, vota bem para governador, vota bem para presidente, ou seja, ele escolhe alguma coisa, o voto significa alguma coisa. É um voto eficaz, digamos assim. Ele pode errar, descobrir depois que votou mal, mas é um voto eficaz, ele quis alguma coisa. Na eleição para vereador, deputado estadual, deputado federal, ele vota em qualquer um, vota no que deu uma camiseta para ele, vota porque a tia pediu, porque o sujeito que ele viu na televisão lembrou o pai dele, vota em qualquer coisa, porque ele sabe que aquilo não é para valer. Como é que é montada uma chapa de deputados de um partido? Não tem nada a ver com o programa do partido. Como o eleitor vota em nomes, em pessoas e não em partidos, os partidos procuram o quê? Nomes com densidade eleitoral, é um procurador aqui, um jogador de futebol ali, um comunicador, um cara que tem programa de rádio, alguém da região tal. Eles saem montando um mosaico de nomes com densidade eleitoral. Durante a campanha, os partidos não existem, só existem os nomes. Na hora da apuração é que somam os nomes na legenda dos partidos. O que acontece? Entre o dia em que a urna é aberta e se compõe a nova Câmara de Vereadores ou a Assembléia Legislativa ou a Câmara dos Deputados e o dia da posse, muitos já trocaram de partido. Nessa atual legislatura, um terço dos deputados federais trocou de partido entre a diplomação e a posse. Eles dizem: ‘Eu sou dono do mandato’. O mandato não pertence ao partido. Então, dão banana para o partido e vão embora. E o eleitor não tem controle nenhum sobre isso e nem se lembra em quem votou. Pesquisas do Datafolha feita três meses depois das eleições municipais de outubro mostram que 38% das pessoas não se lembravam mais, na cidade de São Paulo, em quem tinham votado para vereador.

Se a gente pegar as eleições pós-Collor, vai ver que o país tem indicado muito claramente um sentimento majoritário pró-PSDB e PT, mas os dois partidos nunca entenderam esse recado do eleitorado. Não seria uma aliança mais de acordo com o sentimento do país uma aliança entre tucanos e petistas e não, como temos visto, entre PSDB e PFL e, depois, entre PT, PL, PTB e PP?

São coisas diferentes. Se você somar os tucanos e os petistas, dão, no máximo, um terço da Câmara. O PT fez uns 90 deputados, acho que o PSDB fez uns 80. Se a gente pegar os dois candidatos a presidente, eles somam no primeiro turno uns 80% dos votos. Existe um descolamento, pois temos vários pequenos e médios partidos, muitos com peso numa única região, e eles vão pulverizando o voto proporcional. Então, o que acontece? O partido faz 60% dos votos nas eleições majoritárias, mas vai ter uns 150 votos, 160 na Câmara, mesmo somando os deputados dos partidos que o apóiam. O chefe do Executivo tem, então, de compor a maioria com quem não votou nele. É uma coisa muito complicada. Esse é o problema que vem do sistema eleitoral, que produz fragmentação partidária e dispersão da representação parlamentar. A outra questão que você coloca: evidentemente, PSDB e PT têm mais afinidade entre si do que o PSDB tinha com o PFL e o PT tem com o PL ou o PP. É por isso que Fernando Henrique diz que os dois disputam para ver quem é a vanguarda do atraso. E o atraso passa a ter uma importância muito grande. Se PT e PSDB se juntassem, se aliassem, o atraso perderia peso. Como os dois disputam o atraso, a noiva se faz de difícil para os dois e cobra seu peso em ouro.

Como se vai resolver isso?

É em São Paulo. Se não existisse São Paulo no Brasil, talvez o PSDB e o PT pudessem se entender, mas existe São Paulo, os dois disputam aquilo, São Paulo tem um peso descomunal na política brasileira, na economia, e acaba influenciando. Como os paulistas fazem política trombando o tempo todo, não fazem política conversando, o PT e o PSDB trombam o tempo todo. Então, eu acho muito difícil uma aliança, embora programaticamente eles estejam muito mais próximos do que outros partidos.

Se é assim, que saída política tinha o Lula para formar uma maioria decente no Congresso?

No dia que em que o Lula se elegeu, os partidos que o apoiaram no primeiro turno tinham uns 140 deputados, 150. Se juntar o PTB, dá uns 180. Ele precisava de 257, no mínimo. Não que o resto fosse oposição, boa parte está ali para sentar e conversar. Então, ele tem que sentar para conversar. O que eu acho que foi um erro estratégico do Lula e é a mãe de todos os erros que vieram dar, inclusive, nessa lambança toda? O Lula precisava ter feito uma aliança com o PMDB, uma aliança orgânica, pública, assumida para o país, ao invés de fazer a aliança que fez com o partido dele. O Lula deu 19 ministérios, de 33, ao PT. Ele devia ter dado uns 12 ministérios para o PT e uma meia dúzia para o PMDB. ‘Ah, mas o PMDB é um partido difícil!’ Sim, sem dúvida, é muito difícil. Quem disse que o PTB é fácil (sem conter um riso discreto), que o PL é fácil, que o PP é fácil? Uma aliança com o PMDB seria algo tenso, problemático, teríamos crises políticas, mas seria algo feito às claras, diante de todo o país. O PMDB, com todos os problemas que tem – e ele tem problemas que não acabam mais -, representa alguma coisa na sociedade: o Rigotto é governador do Rio Grande do Sul, o Luís Henrique é governador de Santa Catarina, o Requião é governador do Paraná, o Roriz é governador de Brasília, o Jarbas Vasconcelos é governador de Pernambuco, ou seja, são pessoas que representam Estados, segmentos importantes da sociedade. Quando se faz uma aliança, se estabelece um grau de debate político com esses setores em torno do governo. O que representam PL, PTB e PP? Nada. Com honrosas exceções, são partidos de negócios. O que o Lula fez na prática? ‘Eu não vou me aliar porque eu não vou ceder espaço, não vou me submeter aos partidos.’ Quis cantar de galo.

Optou por um governo do PT.

Um governo do PT com os penduricalhos. Deu aí umas prebendas aos partidos, um espaço na máquina que, evidentemente, qualquer pessoa sabia que era uma chance enorme de produzir uma máquina de fazer dinheiro, dado o padrão das pessoas que dominavam o PL, o PTB e o PP. Pra mim, não foi surpresa nenhuma que tenha acontecido isso. Seria uma surpresa se não acontecesse. O Roberto Jefferson controlar o IRB, controlar a Eletronorte… Para mim, seria uma surpresa se não houvesse algum assalto aos cofres públicos. Para mim e para qualquer pessoa que conhece o Congresso. O Valdemar Costa Neto, a mesma coisa. O Janene, a mesma coisa. O que o PT esperava? Que eles melhorassem, mudassem pelo contato?

Quer dizer, então, que a surpresa na crise é o PT?

A surpresa na crise é o PT. A surpresa é o PT.

Você acha que a imprensa política falhou nessa crise, por não ter percebido que ela viria?

Vou lhe dizer o seguinte: eu, pessoalmente, nunca tinha ouvido falar no mensalão. E vou dizer mais, eu acho que não há mensalão, mensalão no seguinte sentido: uma mesada, todo mês lá. Isso aí é coisa do Roberto Jefferson. Com o estilão que Deus lhe deu e ele cultivou ao longo da vida, cunhou algo de que eu nunca tinha ouvido falar. O que se ouvia mais era a idéia de compra de deputado, compra de passe. Ouvia-se muito. Garotinho, por exemplo, foi acusado de ter comprado gente para ir para o PMDB. Quando inchou o PL, quando inchou o PTB com gente basicamente que veio do PFL e do PSDB, houve suspeita disso, daquilo, mas é aquela coisa: você não tem como provar. Nós, jornalistas, não noticiamos rumores, teorias, teses, denúncias vazias, a não ser que suba um deputado na tribuna e denuncie. Ninguém denunciou. Havia um sentimento de que havia algo de esquisito acontecendo. Depois das eleições municipais do ano passado, a Câmara deu uma virada, ficou claro que tinha um problema. O que era, exatamente, não estava muito perceptível, mas ficou claro que tinha algum problema. Isso foi somado, a meu ver, a um erro político monumental do governo, que foi o comportamento nas eleições da Câmara. Ou seja, o João Paulo tenta a reeleição, não consegue, e, ao invés daquilo ser arquivado e o governo passar a trabalhar um outro nome, fica a insistência do João Paulo na emenda da reeleição como se aquela fosse a única possibilidade. O João Paulo só jogou a toalha no dia 10 de dezembro. O Congresso ficou paralisado pela briga que havia entre o Renan e o João Paulo e, em cima disso, o cacife dessa turma de PL e PTB foi às alturas. O governo, perplexo, devia ter feito a reforma ministerial logo no começo de novembro, a coalizão com o PMDB, e também resolver o problema da Câmara. Mas resolveu esperar o que iria acontecer na Câmara para fazer a reforma depois. Recusou-se a interferir no processo político. Na verdade, o Lula se comportou como um autista político nesse processo. Quando veio a eleição do Severino, era um sinal evidente de que a crise era gravíssima, gravíssima: o Palácio do Planalto foi derrotado, o candidato do Palácio perdeu e perdeu para alguém que ia evidentemente organizar uma resistência ao governo. Quem elegeu o Severino? O PL, o PTB, o PP e a oposição. Foi a turma, como se diria hoje, do mensalão e a oposição. Juntaram-se para quê? Para sangrar o governo. Como é que o Lula reage? ‘Eu não fui derrotado porque ele é da base do governo, quem foi derrotado é o PT.’ É o autismo chegando a proporções inacreditáveis. E aí o Severino, cheio de gás, dá aquele ultimato ao Lula, que pára a reforma de novo, deixando claro que ele não comandava mais a processo político. A Tereza Cruvinel tem uma frase que eu acho muito boa: ‘O Congresso é uma casa de ventos’. Está sempre ventando. Ou venta para um lado ou venta para o outro. Ou venta a favor do governo ou venta contra o governo. Nesse caso, estava ventando contra e o governo fingia que estava ventando a favor. Eu não tinha idéia de que o Roberto Jefferson ia fazer isso ou aquilo, mas, um mês antes da crise, conversei com várias pessoas e estava seguro de que vinha uma crise monumental. De onde ela vinha eu não sabia. E por que? O governo tinha perdido a iniciativa política, tinha perdido a capacidade de organizar a sua tropa, havia uma brigalhada monumental no PT. Naquele negócio do Luís Eduardo (Greenhalgh) e do Virgílio (Guimarães), na verdade, o João Paulo manobrou o tempo todo para que fosse eleito o Virgílio, produziu a derrota do Luís Eduardo e acabou criando as condições para a oposição, de uma forma absolutamente irresponsável, botar o Severino na presidência da Câmara. O governo não tinha mais iniciativa política, continuava perplexo e fingia que comandava o processo.

Qual é a responsabilidade do presidente Lula nesse episódio?

Eu acho que o Lula é um político que tem uma percepção do Brasil profundo que poucos políticos têm. Ele saca o que o povo pensa, o que o povo consegue admitir, o que o povo não tolera de jeito nenhum. Ele tem uma percepção profunda disso, muito mais do que os marqueteiros, os políticos. Nisso ele é um gênio. Agora, ele é um desastre na percepção da importância da política institucional. Ele não consegue perceber como se faz a política institucional. É como se a política institucional, na cabeça dele, não tivesse importância.

Aliás, é a mesma visão desse Brasil profundo a que você se referiu.

Óbvio. ‘Isso é coisa de político.’ Só que não é assim.

A passagem dele pelo Congresso já tinha mostrado essa falta de apetite pela política institucional.

Ele ficou quatro anos, não tinha saco para nada e nunca mais quis voltar. Mas acontece o seguinte: a política, no Brasil, tem de se dar com um pé no país profundo e um pé nas instituições, o tempo todo. Competente será o presidente que conseguir fazer com que estas duas instâncias não trombem e consigam confluir para produzir algum resultado na frente. O Lula conseguiu isso muito bem num primeiro momento de governo. No ano passado, as eleições municipais deram um recado para ele: o PT foi muito bem de Minas para o Norte e foi derrotado de Minas para o Sul, não tanto em São Paulo, onde, tirando a capital, até que o PT não foi mal. Mas ficou claro o recado: o Brasil próspero estava se sentindo desconfortável com o PT. Era necessário dar resposta ao desconforto. De onde vinha o desconforto desse Brasil próspero? Da percepção de que o PT serve um prato feito, ou seja, tem que ser assim e ponto final: ‘Você vai votar em quem eu escolher, eu não faço alianças’. Em São Paulo mesmo, o PT não fez alianças. No Rio Grande do Sul, só faltaram dizer: ‘Você vai votar na corrente que for majoritária no PT’. E o eleitor desse Brasil própsero respondeu: ‘Só um instantinho, eu quero fazer o que eu quero, não o que vocês querem, não quero esse prato feito’. O Brasil começou a resistência a esse prato feito.

Essa política do PT não tem mais a assinatura do Dirceu do que a do Lula?

Evidente. O PT é muito Lula e o Lula é muito Dirceu, com os méritos e os erros dos dois. O Lula não teria chegado à presidência da República sem o Dirceu, se não tivesse atrás dele um partido forte, implantado nacionalmente, razoavelmente disciplinado e coeso, capaz de sustentá-lo nos momentos positivos ou nos momentos negativos e, ao mesmo tempo, capaz de fazer uma inflexão política para o centro, estabelecer as alianças. Então, o Dirceu é importantíssimo na história do Lula. E por que o Dirceu fez isso? Porque o PT foi um pouco a combinação de dois partidos – um partido amplo de massas, com 800 mil filiados, sem uma ideologia muito clara, uma coisa meio frouxa, fluida, que vai se adaptando às circunstâncias, com um núcleo que é um partido de vanguarda, que vertebra o partido de massas, puxa para cá, puxa para lá, faz as inflexões, negocia, estabelece um clima de camaradagem interna que obriga maioria e minoria a caminharem juntos dentro de determinados limites. Ele tinha as duas coisas. Se o PT só fosse partido de massas, não chegava ao poder. E se fosse só partido de vanguarda, também não chegava. O fato de ser as duas coisas permitiu que chegasse, mas chegou com as contradições se acirrando. Ele deveria, no governo, cada vez mais ser um partido de massa. Eu acho que o erro do Dirceu foi não ter percebido isso e ter se comportado como se a direção do Estado fosse feita como se dirige um partido de vanguarda. Isso é um desastre porque a sociedade é muito mais complexa do que isso. Ela começa a passar recados: ‘Eu não estou satisfeita com o meu prato feito, não quero ter de votar na corrente que é majoritária dentro do PT, isso é um jogo de vocês, não me interessa, eu quero um jogo mais complexo’. Veja: no Rio Grande do Sul, não foi um conservador que derrotou o PT no governo do Estado, não foi um conservador que foi derrotar o PT na prefeitura. Foram duas pessoas com uma trajetória progressista, que não tinham espaço naquele lugar do PT e que acabaram sendo as pessoas em quem os conservadores desaguaram os votos também.

A mesma coisa aconteceu em São Paulo.

A mesma coisa. Então, o Brasil próspero passou um recado. E, ao invés de fazer um governo de coalizão, o Lula leva nove meses para fazer uma reforma ministerial. Quando fez, já tinha passado a hora, foi esse traque. O sentido político dela está correto, mas ele tinha perdido o bonde. Isso produziu um descolamento de setores da sociedade. Até partidos de esquerda, que foram junto com o Lula às eleições, foram tomando distância. O PV tomou distância, o PDT tomou distância, o PPS tomou distância, apenas o PC do B e o PSB ficaram com ele. Era evidente o problema com o eleitorado, os aliados políticos, o Congresso, mas o Lula continuou achando que a interlocução dele com a sociedade, mais a economia, seguravam tudo. Não percebeu a importância da instância política e levou uma paulada.

E agora, depois de estourar a crise, você acha que o presidente Lula repete o comportamento autista a que você se referiu antes ou há alguma luz à vista?

Provavelmente, ele continuará tendo as mesmas dificuldades no entendimento da política institucional, mas eu acho que ele já sabe que só uma relação direta com o povão e um bom desempenho na economia não resolvem o problema. Imagino que ele tenha aprendido, com essa crise, que precisa lidar com a instância institucional de uma forma profissional, responsável, séria. No entanto, agora ele precisa esperar um pouco para ver aonde vai a crise. Não é simples a situação. Eu acredito que nós estamos no meio do processo de apuração e existem duas hipóteses: chega no Lula ou não chega no Lula. Se chegar no Lula, vai para o impeachment. Eu, pessoalmente, acho que não chega no Lula. Quando falo em chegar no Lula, não é um raciocínio político – ele devia saber o que está acontecendo. Falo de haver provas contundentes de que o presidente da República participou diretamente de esquemas de corrupção, e nesse sentido eu acho que não chega no Lula. Não chegando, a crise política não deriva em crise institucional. Em algum momento, ela vai baixando, e aí é o seguinte: o governo tem um enorme passivo, o PT tem um passivo monumental, e precisam saber o que vão fazer diante disso. Essa é uma situação. A outra é a do impeachment. O presidente Lula vai ter que dar uma resposta política ao que está colocado aí. Os problemas continuam, mas é curioso que a oposição não está com essa bola toda também. O quadro não é ‘o Lula se arrebentou e o PSDB está fortíssimo’. A rejeição ao Fernando Henrique nas pesquisas é de mais de 50%, o Lula continua ganhando no primeiro turno. Claro que não vivemos uma situação de eleição, não houve um debate, ele tende a ser mais afetado para a frente, mas, em outras circunstâncias, era para ter tido um deslocamento da sociedade na direção da oposição. Não existe uma oposição que seja alternativa ao que está aí com credibilidade. O que o Lula vai poder fazer? Se ele não for atingido diretamente, se for capaz de relançar minimamente o governo, se a economia se recuperar, como eu imagino e os indicadores apontam, se tivermos um período de reaquecimento da atividade econômica já este ano e o Brasil crescer de 3,5 a 4% e em torno de 5% no ano que vem, o clima muda no país. Some-se a Bolsa Família para 40, 50 milhões de pessoas e, se o Lula não for atingido, ele pode voltar para o jogo. Há algum tempo, antes desse escândalo, eu diria que o Lula estava reeleito. Hoje em dia, a eleição dele é extremamente problemática. Ele pode vir a se recuperar, mas vai ter de fazer política. Eu acho que ele vai ter que fazer alianças políticas, não tem jeito.

Mas a reeleição do Lula, dentro desse desenho partidário que você criticou há pouco, não seria uma catástrofe, já que seguramente o PT estará menor ainda?

Depende da concepção. Se o Lula vier a ser reeleito, ele não fará mais um governo do PT, disso eu não tenho dúvida. Ele fará um governo de coalizão – do PT, que seria provavelmente uma ala esquerda do governo, mais enfraquecido, com outros setores. Mas tudo isso é futurologia, é para daqui a um ano e meio.

Um ano e meio? Nós já estamos a um ano da eleição…

Um ano e dois meses. Nós temos cem dias decisivos pela frente. Nesses cem dias, nós vamos saber se a crise afetou o Lula ou não afetou. Aliás, é claro que afetou. Vamos saber se atingiu o Lula ou não atingiu, se vai para o impeachment ou se não vai. Nós temos cem dias para ter isso claro, para saber se a economia vai se recuperar num ritmo forte ou não, se a oposição vai conseguir herdar alguma coisa dessa situação. Se a economia se recuperar e se o Lula não for atingido, acho que nós vamos ter uma eleição razoavelmente racional. Esse negócio que as pessoas falam – ‘ah, um salvador da pátria’ – faz algum sentido com a inflação, vem com a economia desconjuntada. Aí aparece o cabo Hitler, pára de pintar paredes e chega a Führer, aparece o Collor, deixa de fazer acordo com os usineiros e vira caçador de marajás. Qualquer coisa vale com a inflação alta, mas, com a inflação sob controle, a economia se recuperando, a atividade econômica em expansão, o crescimento do emprego, as pessoas olham e dizem: ‘Espera um instantinho, também eu não quero fazer uma lambança com isso aqui, eu não vou votar em qualquer maluco que chegar aqui’. Então, a pessoa vai olhar e dizer: ‘Eu tenho o Lula, eu tenho o Alckmin ou o Serra, eu tenho o César Maia’. E aí começa a fazer a opção: qual é a vantagem de um, qual é a vantagem de outro? Acho que não teremos um quadro de maluquice eleitoral, eu acho que a gente vai ter um quadro, por incrível que pareça, razoavelmente racional. Depende da economia.

Vamos sair da política para o jornalismo. O que você destaca, em sua história pessoal, como fator mais importante para o entendimento do país e até de uma crise como essa que estamos vivendo: a militância política na juventude, o curso de Ciências Sociais que você fez na França ou a vasta experiência jornalística?

Eu me beneficio de uma coisa em primeiro lugar: eu me criei num ambiente político rico na minha casa. Meu pai foi jornalista, foi deputado, foi senador, combateu duas ditaduras. Em nossa casa, somos nove irmãos e nós discutíamos política freqüentemente, tínhamos uma vida política rica em casa. Vamos dizer: eu tenho escola, tenho berço mesmo, isso me ajudou. Minha militância política também me ajudou de forma extraordinária porque me permitiu entender o que é espírito público, o que é sacrifício, e, por outro lado, o que é bandalheira. Enfim, me deu valores extremamente fortes e me acostumou a discutir política medindo correlação de forças, possibilidade de entender o que se esconde por trás de cada discurso, não acreditar no que as pessoas dizem simplesmente. Fazer política é medir a correlação de forças, entender os momentos de virada, por que está tudo de um jeito e daqui a pouco muda, por que virou. O fato de eu ter tido uma formação marxista me ajudou extremamente. Eu acho que a formação marxista ajuda, desde que não seja uma camisa-de-força, a entender os interesses que existem por trás de cada proposta e não se escandalizar com isso, não ter uma atitude moralista. Existem interesses, pronto. E os interesses precisam se exprimir politicamente, os interesses permitem ou não permitem alianças, e os fenômenos profundos vêm à tona, não tem jeito. Tudo isso a militância me ensinou bastante e eu tive uma experiência muito rica como jornalista também. Há 20 anos praticamente eu cubro o Congresso, cubro a política, e esse tempo de janela também me ajuda. O curso de Ciências Sociais não me ajuda nada, mas eu leio muito, eu leio História do Brasil, literatura, eu sou uma pessoa que lê muito. Acho que jornalista tem de ler. Jornalista que não lê, que não tem cultura, acabou.

Mesmo em seus tempos de militância na política estudantil, você já tinha este jeito equilibrado de ver as coisas…

Eu não acredito nisso, não. Minha mãe não me achava nada equilibrado. Eu seqüestrei o embaixador.

É verdade. Aliás, você ajudou, então, a soltar o Dirceu. Não se sente agora culpado pelo que ele tenha eventualmente aprontado?

Não, não, não, eu não sou culpado de nada.

Responsável. talvez…

Nem culpado nem responsável. Eu não sou responsável por nada. É a mesma coisa que dizer que eu sou responsável pela vitória do Lula. Não sou responsável nada. Eu simplesmente ajudei a tirar quinze brasileiros que se encontravam na prisão, muitos deles barbaramente torturados, correndo risco de morte, e a lhes devolver a liberdade. Evidentemente, eu não sou responsável pelo que cada um veio a fazer na vida, como eles não são responsáveis pelo que eu vim a fazer.’