‘O título foi usado ontem pela ‘Folha’ no editorial sobre a morte dos dois sem-teto quando eram desalojados em Goiânia. Tragédia brasileira cabe perfeitamente para retratar o assassinato da freira Dorothy Stang por pistoleiros no Pará.
Nossa tragédia é federal, ampla, visível em toda a parte, composta por diferentes elementos, matizes, formatos, chorada em todos os rincões – mesmo onde não correm lágrimas nem jorra o sangue mas a vergonha, a dor e a revolta combinam-se para produzir uma arrasadora sensação de perda.
Não parece sinistro o ‘episódio Severino Cavalcanti’ ou o ‘tsunami Severino’ como querem alguns. Desprovido de brutalidade, à primeira vista é apenas patético, caricatura dolorosa dos nossos costumes políticos e paradigmas morais. Mas esta surpreendente eleição na Câmara Federal e o seu inesperado protagonista representam uma tragédia ainda mais perturbadora porque se desenvolve como farsa, incapaz de produzir o choque, a purgação e o alívio, portanto, lenta e demorada.
Desde os seus primeiros lances a encenação da Praça dos Três Poderes é vexatória, mesquinha, ridícula e, por isso, ainda mais revoltante. Exemplo foi a visita do novo presidente da Câmara ao presidente da República na última quinta e aquele abraço não apenas inconveniente mas, sobretudo, ofensivo pela cumplicidade que insinua.
Severino Cavalcanti, pretende-se pernambucano mas é o protótipo nacional do coronel, dono vitalício de curral eleitoral, exemplar perfeito do político que há gerações avilta nosso sistema representativo. Designá-lo como representante do ‘baixo clero’ é uma forma malandra de ocultar sua importância como legítimo cardeal dos ‘300 picaretas’ – a expressão é do Presidente Lula e ainda não foi desmentida – que povoam os corredores e gabinetes da Câmara.
Os trambiques de diferentes proporções que imediatamente começaram a ser revelados pelos jornais e blogs desvendam como uma pregação aparentemente devota e um desempenho ‘folclórico’ conseguem disfarçar percursos nada exemplares e só agora denunciados.
Severino Cavalcanti é o ingrediente grotesco que se mistura às tragédias para que os personagens não a percebam. Ele fornece o risinho nervoso que impede a percepção do enredo armado pelos fados.
O hipócrita beijão-mão dos presidentes da Federação das Indústrias e da Associação Comercial de São Paulo ao recém-eleito antecipam os vexames que assistiremos nos próximos dois anos. Só porque o obscuro deputado de repente alçado à condição de luminar da República juntou-se àqueles que estão contra a Medida Provisória 232 (que aumenta a tributação das pequenas empresas prestadoras de serviços), os dois baluartes da livre iniciativa do estado mais poderoso da União perderam a compostura e correram para incensá-lo.
Esqueceram-se de que o aumento nos vencimentos e vantagens dos deputados prometido pelo mesmo Severino vai na direção contrária da responsabilidade nos gastos públicos, bandeira dos empresários liberais. A acintosa pressa do chefe do poder Judiciário, o ministro Nelson Jobim, em apoiar o autofavorecimento serve como degustação para o grande banquete demagógico e corporativista iniciado na última segunda-feira.
Nas verdadeiras tragédias todos imaginam-se inocentes mas são igualmente culpados, esta é a ardilosa mecânica que exacerba os desatinos. A nova trama começou com uma saraivada de incriminações jamais vista na Capital. A derrota do candidato oficial petista ora foi atribuída ao governo, ao presidente da República, ao ministro da Coordenação Política, ao PT, ao presidente do PT, ao candidato independente do PT, aos traidores da base aliada e à oposição. Esqueceram-se de incluir os anteriores presidentes da Câmara e do Senado, João Paulo Cunha e José Sarney que durante mais de meio ano aferraram-se à idéia da prorrogação dos respectivos mandatos e, com isso, abriram caminho para o festival de ambições mesquinhas, delírios paranóicos e, para completar, o triunfal retorno de Sinhozinho Malta em ‘Roque Santeiro’.
A impagável criação de Dias Gomes ai está para comprovar o quanto a vida imita a arte e, no caminho, desanda.’
Fernando Rodrigues
‘Verbas da Câmara superam as de 8 Estados’, copyright Folha de S. Paulo, 20/02/05
‘Em uma de suas várias tentativas frustradas de presidir a Câmara, o deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) disse o seguinte: ‘Isso aqui é um mundo maior do que vários Estados’.
Severino está certo. Os R$ 2,477 bilhões do orçamento anual da Câmara fazem dessa Casa do Poder Legislativo uma potência financeira maior do que oito Estados brasileiros -essa é uma das razões de ser tão cobiçada.
De acordo com dados do Tesouro Nacional para o ano de 2003 -os únicos disponíveis, mas a relação de comparação continua semelhante até hoje-, os governadores de Acre, Alagoas, Amapá, Piauí, Rondônia, Roraima, Sergipe e Tocantins administram orçamentos menores do que o de Severino.
Entre os 5.562 municípios do país, só três têm uma verba anual maior que a Câmara dos Deputados: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. As demais 5.559 cidades têm menos dinheiro para gastar do que o emergente Severino Cavalcanti e os outros 512 deputados federais.
A divisão dos R$ 2,477 bilhões pelos 513 deputados dá R$ 4,82 milhões por congressista na Casa criada para representar os interesses diretos dos eleitores brasileiros. Nenhuma cidade brasileira tem tanto dinheiro por eleitor.
Só para comparação, segundo o Tesouro Nacional, o orçamento de São Paulo em 2003 foi de R$ 11,511 bilhões. À época, o eleitorado da maior cidade brasileira era de cerca de 7,7 milhões de pessoas. Ou seja, dá R$ 1.494,94 por eleitor paulistano por ano.
Mesmo que se inclua na Câmara o número total de assessores, aposentados, pensionistas e ocupantes de cargos de confiança, além dos 513 deputados, chega-se a um total de 20.579 pessoas. A parcela do orçamento anual para cada uma fica ainda em expressivos R$ 120.365,42.
Essas contas são feitas com base no Orçamento proposto e aprovado para 2005. Não estão contabilizados eventuais aumentos de gastos com a elevação de salários prometida por Severino durante sua campanha vitoriosa.
A Câmara é como uma pequena cidade do interior com orçamento de metrópole. Os 513 deputados têm 15.666 funcionários na ativa para atendê-los. Desses, 9.821 estão à disposição nos gabinetes dos congressistas, que podem também nomear outros 2.266 para os chamados CNEs, os ‘cargos de natureza especial’ -pessoas que podem atuar nos Estados e ganham de R$ 1.697,47 a R$ 5.474,10 por mês.
Esses CNEs concentram-se na Mesa Diretora da Câmara e nos gabinetes das lideranças partidárias. Na direção da Casa são 165 CNEs -sendo que Severino terá 21 à sua disposição na presidência. Nos gabinetes dos líderes partidários estão outros 386 CNEs.
Na história recente da Câmara, nunca tantos representantes do chamado baixo clero estiveram tão presentes na Mesa Diretora. Entre os sete titulares, cinco são do Nordeste, um do Centro-Oeste e um do Norte.
Quando se considera os 11 integrantes da Mesa Diretora da Câmara (sete titulares e quatro suplentes), nota-se que três (27,3%) deputados são de Alagoas. Uma desproporção em relação ao que representa a bancada alagoana no total da Casa -só nove (ou 1,75% dos 513 deputados) são eleitos pelo Estado de Alagoas.
Do outro lado do Congresso, outro alagoano está em posição de destaque. Renan Calheiros (PMDB) vai presidir o Senado Federal pelos próximos dois anos. Desde a vitória de Fernando Collor de Mello para presidente da República, em 1989, que Alagoas não tinha tanta relevância na política nacional.
Como atua o baixo clero
O deputado do baixo clero é basicamente alguém que não teve força política para conseguir ser notado pela mídia dentro da Câmara. Aparecer num jornal de TV é uma das formas de sobrevivência do congressista. Seu nome fica em evidência e ele ou ela tem uma chance maior de reeleição na próxima disputa.
Sem acesso à mídia, sua saída é uma só: conseguir alguma verba no Orçamento da União para obras em cidades onde estão seus eleitores. Todos os anos a história se repete. Em novembro e dezembro os deputados coletam assinaturas de apoio a emendas ao Orçamento. Quando conseguem, o passo seguinte é fazer a notícia sair nos jornais de seu Estado.
O ato subseqüente é dizer: ‘Preciso do apoio dos meus eleitores para pressionar o governo a liberar a verba da emenda’. Aí começa uma série interminável de visitas a gabinetes na Esplanada dos Ministérios. Como o país está há décadas tentando reduzir seu déficit, as emendas paroquiais dos deputados são as primeiras a terem sua liberação dificultada. Essa é uma das razões básicas para a crônica desavença entre o baixo clero e o Poder Executivo.
É comum ver deputados resmungando no caminho que os leva do plenário para o edifício conhecido como Anexo 4, onde estão a maioria dos gabinetes. É um caminho longo, que inclui uma passarela subterrânea apelidada de túnel do tempo, pelas suas esteiras rolantes e paredes arredondadas serem semelhantes ao cenário de uma antiga série de TV norte-americana com o mesmo nome.
Grande parte do anedotário e dos costumes da Câmara remete um pouco aos anos 70 e 80. O Anexo 4, por exemplo, é conhecido como Serra Pelada. Sua fachada amarela foi a deixa para que os funcionários da Casa apelidassem o edifício com o nome da região do Pará onde prosperou um garimpo de ouro no início da década de 80.
O saguão da entrada principal da Câmara é conhecido até hoje como chapelaria, embora há muitos anos ninguém apareça por ali com um chapéu para guardar.’
Carlos Chagas
‘A natureza das coisas’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 18/02/05
‘Passada a tempestade, fica fácil dizer que já sabíamos onde os raios cairiam. Mesmo assim, não dá para omitir as previsões feitas pela mídia amiga e amestrada (royalties para mestre Helio Fernandes) antes da votação para a presidência da Câmara. Quase todos celebravam com antecedência mais uma vitória do governo a que tão diligentemente servem seus veículos.
Até tomando emprestada parte da arrogância e da presunção com que o PT e o governo têm desenvolvido suas ações políticas, muitos de nossos excepcionais comentaristas olhavam de cima para baixo quando os bissextos colegas arriscavam alguma dúvida sobre a vitória de Luiz Eduardo Greenhalgh ainda no primeiro turno da votação.
O resultado aí está. Agora, buscam argumentos para justificar o erro. Ainda buscando agradar, dizem que o governo foi traído pela oposição, antes comprometida com o critério da proporcionalidade, mas, na cabine eleitoral, tendo votado contra o candidato oficial. Falam na traição dos partidos da base governista e voltam a denunciar o ex-governador Anthony Garotinho como inimigo público número um.
Falta experiência. Não foram só as oposições, nem apenas os partidos da base que deram a vitória a Severino Cavalcanti. Foi a natureza das coisas, incluídos nela também alguns deputados do PT. Falaram mais alto os sentimentos de basta, de chega, a exaustão da Câmara diante de humilhações impostas pelo Executivo. Claro que também funcionou a imposição do nome de Luiz Eduardo Greenhalgh à bancada do PT. Tivesse sido Virgílio Guimarães o candidato oficial e hoje a placidez dominaria a Praça dos Três Poderes.
Não que Severino Cavalcanti venha a perturbar conscientemente o clima, gerando outras tempestades. O novo presidente da Câmara é de paz. Mas exprime a reação de seus eleitores. Jamais ficará contra eles, muito menos aceitará arranhões na meta que se propôs, da independência do Legislativo.
Exemplo melhor não poderia existir do que o comentário de Severino, logo depois de eleito, a um jornalista daqueles referidos no primeiro parágrafo. O colega quis saber se o novo presidente da Câmara iria telefonar para o presidente Lula, participando a vitória. Resposta: ‘Telefonar? Eu não. Ele é que deve me telefonar…’
Reformular tudo?
Com o Lula de novo no Brasil, até por um golpe de sorte, ausente quando da mais fragorosa derrota parlamentar de seu governo, pergunta-se: como fica a reforma do ministério adiada para depois das eleições?
Não fica difícil supor que a maior parte do PMDB votou contra Greenhalgh no primeiro turno, mas certamente no parlamentar pernambucano, no segundo. Qual o tamanho da ala governista do PMDB? Merecerá um ministério a mais do que o prometido à senadora Roseana Sarney, que nem entrou no partido? Trocar Amir Lando por quem, diante da evidência de que o governo não confia mais no partido?
O que dizer do PP, que já tinha até um indicado? Não dá para punir ninguém por ter prestigiado um correligionário, como também fica difícil condenar deputados pernambucanos de todos os partidos, que votaram quase em uníssono em Severino.
O PPS abriu o jogo tendo em vista os aplausos de Roberto Freire. No que se refere ao PL, apesar dos esforços do vice-presidente José Alencar, quantos votos deu ao vencedor, entre os 300 obtidos? E o PCdoB, terá enquadrado seus rebeldes, sabendo não poder puni-los? Vale o mesmo raciocínio para os demais partidos.
A conclusão é de que a reforma do ministério deverá ser adiada por alguns dias, até que o governo recomponha a sua base parlamentar. Terá que recomeçar com paciência e, se possível, sem arrogância. Saber com quantos deputados e quantos senadores o Planalto pode contar. Selecionar seus líderes. E, tão ou mais importante, não declarar guerra aos que ficaram com Severino. Só depois de assentada a poeira serão criadas melhores condições para Lula recompor sua equipe. Optar pelo ministério da raiva e da revanche equivalerá a jogar gasolina no fogo.
Malandragem
Nada mais ridículo do que especuladores explicarem a baixa da Bolsa de Valores como resultado da eleição de Severino. Primeiro porque as bolsas são termômetros apenas para os que pretendem enriquecer sem trabalhar. Depois porque o deputado sempre foi conservador. Apoiou a política econômica do governo passado e apóia a atual.
Sua presença será penhor de estabilidade para o modelo de Palocci. É mais um espetáculo de malandragem, encenado pelos especuladores que não perdem oportunidade de faturarem mais algum. Farão a bolsa cair e subir em seguida no dia em que a Cicarelli e o Ronaldinho discutirem em público…’
Manuel Alceu Affonso Ferreira
‘Mídia e segredos’, copyright Último Segundo (www.ultimosegundo.com.br), 21/02/05
‘A possível emissão de cheques sem fundos é algo ligado à privacidade do cidadão Severino Cavalcanti. Também dizem respeito à intimidade do sr. Luiz Inácio Lula da Silva, a cadela que possua, o massagista que utilize, os eventuais amigos de reputação polêmica e os convidados que decida hospedar.
Leia abaixo o texto
Tudo isso pertence à esfera particular desses dois brasileiros. Portanto, segundo a Constituição, em tese resguardado pela inviolabilidade que proíbe a exposição pública de fatos particulares. Ocorre, todavia, que a Lei Maior também garante a plena liberdade da informação jornalística. Daí, exatamente disso, nasce o chamado ‘conflito permanente’ entre direitos contrários: a proteção da individualidade e a tutela, aos órgãos de comunicação, da prerrogativa de noticiar.
Ambos esses direitos, embora antagônicos nas suas imanências, na hierarquia jurídica ocupam posições equivalentes. São eles, os dois direitos, abrigados na Constituição, sem que a nenhum deles o constituinte tenha conferido dominância. Faz-se pois necessário solucionar o impasse, fazendo com que, nos casos que se apresentem, um deles predomine. Noutras palavras, e nas situações diuturnamente enfrentadas pelos jornais, qual deles merecerá prevalecer: a inviolabilidade da vida privada ou o direito à informação?
Buscando a superação dessa contenda os juristas fixaram critérios. Entre eles, como mais relevantes, o interesse público subjacente à informação prestada e a notoriedade daqueles que tenham as suas intimidades afrontadas. Entretanto, cada um desses parâmetros – o interesse público e a notoriedade – reclama ponderações conceituais para que se apure, com segurança, qual deverá ser, na espécie examinada, o direito dominante.
Desde logo tenha-se em conta que o conceito de interesse público não se confunde com o da estéril curiosidade popular. Difícil será imaginar como possa atender ao interesse público esmiuçar a vestimenta, ou a não-vestimenta, com que durma o Governador do Estado; ou reportar as trampolinagens adulterinas que uma Senadora perpetre com parceiro que da influência da amante não extraia vantagens; ou a pedestaria de um festejado cirurgião plástico. Divulgações jornalísticas desse tipo não ostentam interesse público algum, valendo apenas para saciar a bisbilhotice dos intrigantes, ou o comadrio das tagarelas, mas incapazes de legitimar o menosprezo à privacidade.
Repita-se: aquilo que autoriza os veículos a se intrometerem na vida privada de alguém, ocupante ou não de cargo estatal, é o interesse público, jamais o mexerico fútil. E mais: entre o fato privado objeto da revelação, e a função de quem teve a sua vida exposta, deve existir nexo de pertinência. Não serve à causa coletiva saber da descendência extramatrimonial do presidente de um grande banco. Mas, aos milhares de correntistas dessa instituição financeira, legitimamente deve preocupar a sua cocainomania.
Em suma, para que se torne lícita a violação da privacidade, é requisito indispensável a existência de fundamentado vínculo entre a atividade exercida pelo ‘violado’ e a possível repercussão das ocorrências investigadas. Dessa forma, quando a agressão à vida privada for útil ao bem de todos, ou de coletividades determinadas, terá a mídia exercitado, sem abusos, o direito-dever que as democracias lhe outorgam.
A notoriedade do personagem é outro dos critérios empregados para enfrentar esse conflito de direitos fundamentais. Existem os notórios permanentes, aqueles que titulam, no Estado ou nos corpos sociais, especial proeminência, como se passa com os políticos, os líderes sindicais e as autoridades eclesiásticas. Entretanto, também existem os notórios que cultivam a fama visando ao proveito profissional, ou então, como é lastimavelmente comum, tão-só para obsequiar as suas próprias vaidades e pavonadas.
Nesta última categoria entram os artistas populares, os ‘socialites’ incansáveis, as modelos da moda e os ‘big brothers’ das televisões. Com as pessoas desse segmento ocorre, em maior proporção, o desvendamento voluntário da privacidade, o suplicante convite para que a mídia as escarafunche, relatando os seus hábitos, novos namorados, luxuosos e precários casamentos, iates e jatinhos.
Existirão, ainda, aqueles outros, antes anônimos, que fortuitamente, e não por desejo próprio, são transmudados em ‘notórios’: o descobridor de uma vacina, o motorista que devolve a pasta esquecida no táxi, a vítima de um seqüestro e o premiado na loteria. Todos eles alçam a notoriedade e, naquilo que aluda à razão da súbita celebridade, poderão ver a privacidade franqueada.
É antiga a disputa entre o direito a ser deixado só e a liberdade informativa. Levadas aos jornais, as privanças das mais variadas figuras, do nosso D. Pedro I ao ex-Presidente Clinton, da Rainha Vitória a Getúlio Vargas, geraram controvérsias até hoje latentes. Nesse tema, como aliás nas demais questões que afligem o Direito, a única e correta resposta virá da aplicação, ao caso concreto, da lógica jurídica da razoabilidade. Utilizados, é verdade, mecanismos de aferição como aqueles acima tratados, mas sempre diante da hipótese cotejada, sem rígidas fórmulas preestabelecidas.
* Especializado em Lei de Imprensa, o advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira foi Secretário de Justiça do Estado na gestão Fleury e juiz do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP)’
Catia Seabra
‘Severino beneficia família em filantropia’, copyright Folha de S. Paulo, 18/02/05
‘Em João Alfredo (PE), sua cidade natal, o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP), faz filantropia em família.
Com o nome do pai do deputado, a Associação Beneficente João Vicente Ferreira é presidida, segundo registro 244 do cartório do município, pela nora de Severino, Olga Maria Aguiar Millet Cavalcanti Ferreira.
Segundo dados da prefeitura, a sede da entidade funciona numa casa alugada por João Cavalcanti Filho, primo de ‘Zito’, como o deputado é conhecido.
Destinado à promoção de curso de corte e costura, outro prédio é usado pela instituição: o da Agroindustrial e Comercial Cavalcanti, de propriedade do deputado. Ontem, a ‘filial’ da associação abrigava apenas o boneco de Severino, que está sendo preparado para a recepção do deputado daqui a duas semanas.
Segundo dados do Sistema de Administração Financeira (Siafi), a associação foi contemplada, em 2003, com R$ 99.963,60 saídos dos cofres da União para a estruturação de núcleos agrícolas produtivos. O dinheiro foi liberado pela Subsecretaria de Orçamento e Administração.
Oficialmente, a associação foi registrada em 2001. Mas, segundo Fúvio Cavalcanti, filho de um primo do deputado, foi inaugurada em agosto de 2003.
A festa comemorou ainda a inauguração de mais uma ‘conquista’: a Associação Rádio Comunitária Voz do Povo. A rádio, a única da cidade, é administrada por Fúvio e funciona em uma propriedade registrada em nome de Severino desde 1954.
A exemplo das duas propriedades citadas ontem pela Folha, essa casa também não consta da declaração de renda apresentada por Severino na eleição de 2002. De acordo com o registro em cartório, a casa está sob penhora desde 1985. Mais dois terrenos e um sítio de 1,5 hectare não foram declarados, segundo documentos obtidos pela Folha.
A outorga para funcionamento da rádio é de julho de 2002. Segundo Fúvio, o tio costuma telefonar pedindo que depoimentos dele sejam levados ao ar.
Outra ‘conquista’ foi a cooperativa de moveleiros da região, na vizinha cidade de Bom Jardim.
Segundo dados da Junta Comercial, a cooperativa tem, em sua direção, um afilhado do deputado, Switbertes Wagner Batista. Em 2000, foi beneficiada com R$ 64.140 para a ‘promoção do cooperativismo nacional’. Em 2002, foram R$ 86.930 para estímulo à produção agrícola. O dinheiro saiu do Ministério da Agricultura.
‘Cidade feliz’
A quatro quilômetros de sua entrada, uma placa anuncia: ‘João Alfredo, a cidade feliz’. Em outra, um curioso detalhe: ‘cidade dos moveleiros e das Toyotas’. A cidade, de 27.023 habitantes, é conhecida pelo alongamento em série de jipes Toyota, que são ampliados para comportar mais carga e passageiros. Segundo França, o título de centro ‘moveleiro’ nasceu da iniciativa de Severino, que instalou a primeira fábrica de móveis lá. A empresa faliu por volta de 1994.
Colaborou FÁBIO GUIBU, da Agência Folha, em Recife’