‘Bufalo Bill está almoçando na mesa atrás de mim. É americano, comunica-se por gestos e frases em inglês, usa um enorme chapelão, uma jaqueta franjada de camurça e tem bigodes louros . Não tenho a menor idéia do que ele faz aqui, mas ele certamente tem, já que está usando uma credencial do Mercado do Filme.
Na mesa ao lado uma equipe de TV de Singapura faz planos para cobrir a estréia de Guerra nas Estrelas III. Conversam em inglês, porque os câmeras são japoneses. A apresentadora do programa , mulher belíssima, conta que nasceu em Singapura de uma mãe holandesa, que por sua vez era do Sri Lanka, e um pai meio chinês meio francês.
Na lista de filmes das diversas mostras há co-produções franco-húngaras, anglo-colombianas e um filme com um diretor japonês rodado no Marrocos. Meu companheiro de navette nasceu em Londres, mas sua mãe é italiana e o pai, argentino. Tem uma empresa de ‘concierge de cinema’. Pergunto a ele o que isso poderia ser, e ele -simpaticíssimo, aliás – explica que toma conta ‘de tudo aquilo que os grandes produtores não têm mais tempo de fazer’ – escolhe e reserva hotéis, iates, restaurantes, limusines, maquiadores, massagistas, chefs e professores de ioga para estrelas itinerantes. A empresa, baseada em Londres, não tem mãos a medir. Certa vez, ele conta, teve que achar um médium para assessorar um astro em crise existencial. Não foi, ele diz, o pedido mais estranho que ele já recebeu.
Passando às pressas pela Croisette – como sempre – leio de relance a manchete de uma revista francesa: ‘Cannes, um festival contra a globalização?’. Me parece uma das coisas mais surreais num evento em que o surreal é a regra. Como assim, cara pálida? Ou talvez ‘globalização’ aqui seja sinônimo de pasteurização pelo domínio de uma cultura dominante. Mas não é o que vejo nas telas, nas ruas, nos encontros – vejo uma outra globalização, mais humana, mais justa, mais equilibrada, onde nacionalidades e culturas trocam valores sob a poder universal da imagem em movimento.
Ninguém dorme. Parada na porta do Majestic à espera de um amigo, ouço apenas conversas, em duas ou três línguas diferentes, sobre como todos estão exaustos, não dormem há dois dias, ‘quero dormir cinco minutos que seja!’. Meu amigo chega meia hora atrasado. Normal. Cannes tem um tempo próprio. Aqui é um bom lugar para exercitar a entrega ao acaso.
A mídia persegue carne trêmula. Fotógrafos disparam na direção de qualquer ser em traje de noite, na esperança de que seja uma estrela cuja foto ele pode vender a bom preço. Manchetes nativas falam de decotes, e até o seríssimo Cahiers du Cinema está distribuindo camisetas como brindes de sua edição de Cannes. A solenidade austera de 90% dos filmes em exibição aqui parece um ET. Com quem eles estão falando?
Mas na sessão de gala de Guerra nas Estrelas, o público do Lumière – lotado até o teto – aplaude tudo, Darth Vader, o nome de Goerge Lucas, a cortina que abre, o logotipo da Fox. Fome de cinema. Fome da transcendência mágica do cinema.’
TOM WOLFE NO BRASIL
‘A fogueira da realidade’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 17/05/2005
‘É preciso pouco esforço para rotular Tom Wolfe como ‘conservador’. Afinal, nas entrevistas que precederam sua chegada no Rio, para a Bienal do Livro, um dos inventores do new journalism fez questão de alardear que votou em Bush e que o belicoso presidente dos EUA é ‘necessário’ neste momento político. Como todo ‘do contra’ profissional, escorregou na maionese e acabou defendendo o indefensável para se mostrar ‘independente’.
Se as posições políticas de Wolfe não fazem a menor diferença sob nenhum aspecto, a vertente estética de seu conservadorismo deve ser ouvida com atenção. E não é pouca a sua ousadia ao defender em pleno 2005 as posições firmes que formulou há 40 anos em defesa da realidade imediata – e não da imaginação – como a principal matéria-prima da literatura que vale a pena.
Na brilhante conferência que fez quinta-feira passada na Bienal, Wolfe não economizou palavras: se hoje faltam leitores e a literatura está em crise é porque ninguém se reconhece na ficção contemporânea. Ao rezar pela cartilha da modernidade, a literatura teria se fechado no experimentalismo ou no culto à imaginação – e perdido, e muito, sua importância na sociedade.
Trata-se de uma provocação das boas – ou seja, daquelas que acabam arranhando as certezas do cidadão. Provocação ainda mais acirrada por ‘Saturday’, livro mais recente de Ian McEwan, talvez o grande nome da ficção contemporânea e, de uma forma totalmente distinta de Wolfe, também adepto do realismo.
‘Saturday’ é, no fundo, uma longa meditação sobre as relações da literatura com o presente. A trama flagra 24 horas na vida de um neurocirurgião que, insone, assiste no meio da madrugada um avião em chamas cruzar o céu de Londres. Aterrorizado pelo 11 de setembro e pela ameaça de um ataque terrorista contra a Inglaterra, ele inicia seu sábado de forma rotineira, ainda que a cidade esteja paralisada pela maior manifestação contra a guerra no Iraque.
Ao sair de casa para jogar tênis, provoca um pequeno acidente de trânsito que o deixa em maus lençóis com três sujeitos mal-encarados. Livra-se do perigo e segue sua rotina, preparando um jantar para receber em casa a filha e o sogro, que vivem na França e são poetas. Visita a mãe em um asilo, assiste a um ensaio da banda de blues do filho. Sua vida segue, normal, mas a ameaça concreta do trânsito e a metafísica, do tempo, ainda lhe preparam duas surpresas antes do fim de um sábado interminável.
Com sua impressionante habilidade narrativa, McEwan constrói um personagem em permanente conflito com o mundo que é, de certa forma, uma metáfora para a literatura. Será possível viver/escrever sem se deixar atravessar pelos horrores da História? Será que um médico, dividido entre a sala de cirurgia e a vidinha da classe média alta, é apenas um espectador do mundo que se incendeia? As convulsões da História poupam de alguma forma o homem comum?
McEwan vive como drama estas questões e faz com que elas se reflitam na forma. Como nenhum outro de seus livros, ‘Saturday’ é resultado de uma extensa pesquisa e de horas passadas em um centro cirúrgico. Descrições minuciosas das operações ocupam, propositalmente, boa parte das páginas em que seu personagem divaga, fascinado, por seu conhecimento. A trama é localizada num dia preciso de fevereiro de 2003 e cada movimento do personagem pela cidade é descrito com a enumeração das ruas e esquinas.
McEwan é a prova mais eloqüente de que sintonizar a literatura com seu tempo não significa, de forma alguma, ‘diminuí-la’ ou simplificá-la como jornalismo puro e simples. Mostra, na prática, que a provocação de Wolfe é mais do que um anacronismo e deixa um travo amargo: o Brasil está na literatura brasileira? Cartas para a redação.’
LÍNGUA PORTUGUESA
‘Maria das Neves, vulgo…’, copyright O Globo, 22/05/2005
‘NESTE ESPAÇO, JÁ TRATEI (MAIS DE uma vez) da famosa frase da cerveja ‘que desce redondo’. Já vimos e revimos que, em ‘A cerveja que desce redondo’, o termo ‘redondo’ é usado no lugar de ‘redondamente’, ou seja, funciona como advérbio e, por isso, não sofre variação. Nesse caso, ocorre a adverbialização do adjetivo, ou seja, o emprego de ‘redondo’, que normalmente é adjetivo (‘pé redondo’, ‘mesa redonda’), com valor de advérbio. Esse fato é mais do que comum em nossa língua (e em outras), como se vê nestes exemplos: ‘As moças me olharam torto’, ‘Nossas atletas perderam feio’, ‘A bola foi direto para o gol’, ‘Suje-se gordo!’ (título de um antológico conto de Machado de Assis) etc. Em ‘Suje-se gordo!’, por exemplo, ‘gordo’ entra no lugar de ‘gordamente’.
Há algum tempo, um radialista informou que determinado bandido ‘pode ter tido algum envolvimento com Andrea Gomes Kalid, vulga Lili Carabina, morta em novembro do ano passado’. Vulga? É assim mesmo? Se Maria das Neves fosse mais conhecida pelo apelido, dir-se-ia ‘Maria das Neves, vulga…’? Pelo que se vê nos registros, não é assim, não. Usa-se ‘vulgo’, seja para homens, seja para mulheres.
‘Vulgo’ vem do latim. Como substantivo, pode significar ‘o povo’, ‘a plebe’, ‘o comum dos homens’, ‘a pluralidade das pessoas’. Com essa acepção, o ‘Houaiss’ dá este exemplo: ‘A música que mais agrada ao vulgo nem sempre é a melhor’. Como advérbio, ‘vulgo’ pode significar ‘na língua vulgar’, ‘vulgarmente’. Com esse sentido, o ‘Houaiss’ dá este exemplo: ‘O Salmo salar, vulgo salmão’. O ‘Aurélio’ dá este: ‘Aparício Torelli, vulgo Aporelli ou Barão de Itararé’. Parece claro que Andrea Gomes Kalid era chamada vulgarmente de ‘Lili Carabina’, isto é, era Andrea Gomes Kalid, vulgo (e não ‘vulga’) Lili Carabina.
Convém lembrar algumas das palavras da família de ‘vulgo’: ‘vulgar’, ‘invulgar’, ‘divulgar’, ‘divulgação’, ‘vulgarizar’ etc. ‘Divulgar’, por exemplo, nada mais é do que ‘tornar público’. ‘Invulgar’ significa ‘o que não pertence ao vulgo’, ou seja, ‘incomum’, ‘raro’, ‘especial’. No português antigo, encontra-se a forma ‘devulgar’, que se vê neste trecho de ‘Os Lusíadas’, de Camões, citado pelo ‘Aurélio’: ‘Vereis um novo exemplo / De amor dos pátrios feitos valerosos / Em versos devulgados numerosos’. O ‘Houaiss’ também registra a variante, com a ressalva de que resulta de ‘alteração equivocada de grafia’.
O inadequado emprego de ‘vulga’ no lugar de ‘vulgo’ nos remete a outros casos de concordância. Um deles é o da palavra ‘todo’, que não sofre flexão quando participa do adjetivo composto ‘todo-poderoso’: ‘o todo-poderoso ministro da Fazenda’, ‘a todo-poderosa delegada da Receita’, ‘os todo-poderosos ministros’, ‘as todo-poderosas ministras’. Como se vê, no registro culto não se emprega ‘toda-poderosa’. A razão disso é muito simples: nos adjetivos compostos, o primeiro elemento nunca varia. A exceção fica por conta de ‘surdo-mudo’ (‘menino/s surdo/s-mudo/s’, ‘menina/s surda/s-muda/s’). Quando é substantivado, o composto ‘todo-poderoso’ segue o mesmo processo, o que significa que não há flexão de ‘todo’: ‘Participaram desse encontro os todo-poderosos (ou ‘as todo-poderosas’) do planeta’.
Outro caso que vale a pena citar é o de ‘pseudo’, elemento de composição que, na língua formal, não sofre flexão: ‘pseudocriação’, ‘pseudomembrana’, ‘pseudo-advogada’, ‘pseudomédica’. Convém lembrar que ‘pseudo’ só é seguido de hífen quando se associa a elemento que começa por ‘h’, ‘r’, ‘s’ e vogal.
Até domingo. Um forte abraço.’
Deonísio da Silva
‘Português: fácil ou difícil?’, copyright Jornal do Brasil, 23/05/2005
‘O cartunista Bob Thaves resumiu, com a costumeira síntese do ofício, uma questão essencial. Frank & Ernest travam o seguinte diálogo numa farmácia: ‘é um remédio milagroso: os frascos são fáceis de abrir’.
Ignoro se ele já fez alguma tira sobre as bulas, mas poderia ser semelhante ao da embalagem o critério da escolha do medicamento: o paciente pode entender o que diz a bula. Deixo a sugestão a esse time esplêndido de cartunistas que o camerlengo Ziraldo reuniu em nosso querido Caderno B. Graças a eles, começo o dia sempre pautado, fiel ao lema que o bibliófilo José Mindlin estampa em sua famosa biblioteca: não faço nada sem alegria!
Em recente exame da OAB perguntaram o que era camerlengo; poucos acertaram: afinal, naquelas provas há muitas esparrelas, da língua ao direito! Ou arrioscas, para os eruditos; e ‘pegadinhas’, para os simples. Mas, quem faz um bom curso, acerta no essencial e nos ornamentos.
As palavras que seguem freqüentam provas de português. Desconheço o propósito de quem as elabora, mas não é acertando exceções que se mede o conhecimento da norma.
‘Uma súcia (quadrilha) de estrangeiros, aliada à corja (de malfeitores) local, afanou (roubou) o armentio (rebanho) do pampa, já atacado por abigeatários (ladrões de gado)’. ‘A cáfila (de camelos) atravessou os quatros biocoros (regiões): o deserto, a pradaria, a savana e a floresta’. ‘A récua (rebanho) do fazendeiro era composta de alimárias (animais) gordas, algumas das quais foram atacadas por sanhuda (feroz) e faminta alcatéia (de lobos)’. ‘Vendo aproximar-se a piara (porcos) medonha, o mosco (antigo sacerdote), estrafegando (rasgando) as poderes (suas vestes), deblaterou (gritou): ‘Discirno (percebo), ocultas no meio da vezeira (manada de porcos) muitas alimárias (animais) anômicas (sem ordem) açuladas (atiçadas) pelo Coiso bleso (Demônio gago), não pelo pastor bondadoso (bondoso)’.
Palavras de uso raro e coletivos que poucos conhecem infestam a língua portuguesa e já serviram de grife a modos de falar e de escrever que, por falsamente refinados, enganaram os incautos.
Mas, em busca da simplicidade no estilo, não teremos caído no outro extremo, em excessiva simplificação, com o fim de, indulgentes com leitores despreparados, sermos cúmplices de ignorantes?
Este dilema é enfrentado todos os dias na imprensa, em escolas e em universidades, na publicidade, em documentos oficiais.
Precisamos, porém, contrariar o famoso provérbio alemão: por que simples, se pode ser complicado? Ou, no original: Warum denn einfach, wenn es auch kompliziert geht?’