Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Anna Azevedo

‘‘Entreatos’, de João Moreira Salles, é assumidamente inspirado em ‘Primary’, filme que lançou a escola documental americana do cinema direto. Em ‘Primary’, a dupla Robert Drew e Richard Leacock segue a última semana da disputa entre os senadores John Fitzgerald Kennedy e Hubert Humphray pela vaga de candidato democrata à Casa Branca, em 1960.

Com ‘Primary’, Drew e Leacock põem em prática este novo jeito de fazer documentário. Para esta turma (Albert Maysles e D.A. Pennebaker completam o grupo), o documentário à moda inglesa (cujo grande nome era John Grierson), com narração em off e em terceira pessoa, trilha sonora e cenas de estúdio, estava com sua fórmula esgotada. Era preciso recuperar a vitalidade da imagem, abolir as entrevistas, jamais pedir para que alguma cena fosse repetida. Em outras palavras: falar menos e observar mais. Sobretudo os detalhes.

Em mais uma de suas imperdíveis aulas-palestra, na última terça-feira, no Ateliê de Antropologia e Imagem da Uerj, Salles expressou a influência do cinema direto no seu modo de filmar. ‘Entreatos’ bebe na fonte de ‘Primary’ e acompanha os últimos 30 dias da campanha de Lula à Presidência da República, em 2002, seguindo à risca as regras do cinema direto: nada de entrevistas e muita observação.

A utopia teórica dos primeiros fiéis do cinema direto queria a câmera como um objeto praticamente invisível, que não interferisse na realidade. Mesmo mantendo-se discretos, sem interrogações, Salles e equipe precisaram de uma série de renegociações para estarem presentes em momentos cruciais para o filme, à medida em que a campanha avançava.

José Dirceu, contou Salles na Uerj, era o mais desconfiado com a presença da câmera (isto fica claro no filme). E naquele que seria o clímax do documentário – Lula recebendo a notícia que fora eleito – não houve argumento que convencesse o PT a deixar a equipe permanecer nas proximidades.

Salles recordou que, para sua sorte, a filha de Aluisio Mercadante fazia parte do seleto grupo que dividiria com Lula aquele instante histórico. A moça fora sua aluna, e a ela o cineasta confiou a sua câmera: ‘Ela não tinha intimidade com filmadoras. Quando a TV anunciou o resultado da boca de urna, a câmera passeava, sem firmeza, mostrava tudo, menos o que precisávamos, que era a reação de Lula. Mas no exato momento em que o locutor anuncia Lula Presidente, eis que o próprio surge diante da lente’.

Estar no calor dos acontecimentos, prestar atenção no que acontece nos intervalos entre um grande ato e outro, revela muito – ensina o cinema direto. Salles estava atento a esses meios-tons: ‘Não à toa, o meu filme recebeu o nome de ‘Entreatos’, revelou.

ANNA AZEVEDO é jornalista e cineasta. Cursa o Ateliê de Antropologia e Imagem da Uerj’



Clóvis Rossi

‘Autocrítica’, copyright Folha de S. Paulo, 14/11/04

‘A propósito do artigo ‘Toscos’, publicado quarta-feira neste espaço, o leitor Carlos Tonet, que se apresenta como ‘jornalista e tosco’ e é de Blumenau (SC), escreve para concordar, mas também para cobrar:

‘Essa tosquice toda (do pessoal do PT) é, em parte, culpa nossa, os jornalistas que durante anos levantamos a bola dessa turma toda em ‘Rodas Vivas’, ‘Passandos a Limpo’ e Folhas da vida’.

Bom, por penoso que seja, sou obrigado a assumir minha parte no latifúndio da condescendência excessiva com o PT em geral e com Luiz Inácio Lula da Silva em particular. Explico: minha leniência foi razão direta da intolerância de amplos setores da mídia e dos mundos político e empresarial em relação ao PT e a Lula.

O partido, na prática, estava proibido de chegar à Presidência. Podia disputar eleições, ganhar prefeituras e governos estaduais, mas não alcançar o Planalto. Desse veto nasceram duas frases emblemáticas: ‘800 mil empresários vão fugir do país’, do então presidente da Fiesp, Mário Amato, na campanha de 1989; e ‘é Serra ou o caos’, de George Soros, na campanha de 2002.

Quem acredita na democracia não podia aceitar esse tipo de veto, daí a defesa do direito do PT não apenas de disputar mas de ganhar as eleições presidenciais, fossem quais fossem suas propostas.

Num país em que parte do público raciona binariamente, defender o direito básico do PT era igual a defender o PT ou a ser petista, já que, para essa mentalidade, quem critica os tucanos é petista e quem critica os petistas é tucano.

Pobreza intelectual de não admitir que uns e outros merecem igualmente críticas e, portanto, elas não precisam estar motivadas por posições partidário-ideológicas.

Agora, o PT levantou o veto a um custo alto: deixou de ser o PT. Estiolou-se. Tornou-se tosco. Mas não precisa mais de condescendência.’



Cora Rónai

‘Carta aberta para Duda – Alguns conselhos para o Grão Marqueteiro’, copyright O Globo, 28/10/04

‘Prezado Duda,

Sou grande admiradora do seu trabalho, assim como são todas as pessoas que viram uma simples troca de óculos transformar o Maluf numa figura respeitável. Para os ignorantes das sutilezas do marketing político, entre os quais me incluo, o que você faz por seus clientes é puro sortilégio, coisa de demiurgo. Que o encantamento do Maluf esteja enfim se quebrando não é, claro, culpa sua. No segundo turno ele trocou seus óculos encantados pela bengala branca que ganhou de presente da Marta e taí, deu no que deu.

Admiro também o seu desprendimento. Qualquer homem menos dedicado a seus empregadores teria tirado um tempinho, ao longo desses anos todos, para dar uma guaribada na própria imagem. Todo mundo sabe que em casa de ferreiro o espeto é de pau, mas também não precisava ser pau de galinheiro, caro Duda! Se você conseguir sair dessa, dê um tempo, esqueça a política, cuide um pouco de si mesmo. E não estou falando só da imagem, não, mas do aspecto físico também, que, como dizem as peruas na intimidade do salão de beleza, está ‘um lixo’. Fora de Brasília e dos sofisticados círculos das rinhas de galo, o seu filme está pra lá de queimado, acredite.

Apesar disso, entendo o seu drama. Não duvido, em momento algum, da sinceridade com que você diz amar os galos, nem da profundidade desse sentimento. O amor pode, no entanto, se manifestar de maneiras perversas, e nem todas são universalmente compreendidas. Veja os espanhóis, por exemplo. Eles acreditam, piamente, que amam os touros, assim como os pedófilos acreditam, do fundo do coração, que amam as crianças. Talvez até a governadora Rosinha Garotinho acredite que ama o povo, quem sabe?

O problema é que há um fosso intransponível entre os que comungam dessas crenças e os que, de forma talvez menos criativa, insistem em associar o amor à ternura, ao respeito ao próximo e aos bons tratos, sentimentos que vocês acham ridículos. É por causa desta maioria de pobres de espírito, incapazes de perceber o que há de sublime na dor (alheia), que certas formas de amor pouco convencionais acabaram fora da lei.

Entendo como isso deve ser chocante (e inesperado!) para você, entendo também como tudo deve-lhe parecer injusto, depois de todos os serviços que você prestou ao país sem fins lucrativos. Mas a verdade é que, para as pessoas comuns, que não compartilham dos seus gostos refinados e não sabem distinguir um Romanée Conti de um Brunello de Montalcino, uma rinha de galos é uma atrocidade. Elas não conseguem entender a sua frase memorável: ‘Para os galos, é preferível morrer na luta do que acabar na panela’. Alegam que os galos não foram consultados, como se isso fosse possível ou relevante; e ficam horrorizadas quando sabem que o público da rinha vibra com cada corte, delira com cada perfuração, vai ao êxtase com cada olho vazado.

Melhorar sua imagem junto a esse bando de frouxos não vai ser fácil, caro Duda, nada fácil. É provável que você nem esteja interessado no que gente tão pouco distinta pensa ou deixa de pensar a seu respeito, mas não se esqueça que, a cada dois anos, esses zés manés — que sequer têm acesso direto a ministros — transformam-se em votantes. E o diabo é que já começa a se espalhar, entre os amantes de bichos, a idéia idiota de que não se deve comprar produtos ou votar em candidatos que contratem os serviços de quem goza com o sofrimento de animais.

Algumas criaturas politicamente corretas têm confrontado esses eleitores e lhes perguntado se é assim que se faz, se é pelo marqueteiro (que palavrão, Duda) que escolhem seus candidatos. Tolinhos! Você, melhor que ninguém, sabe que, nos últimos tempos, é justamente assim que se tem escolhido, ou não se poderia sustentar a nobre linhagem dos seus tantos e tão ricos galos de briga.

Mas o cerne da questão não é este. É que, para os que gostam de bichos, empresas ou candidatos que se relacionam com quem promove a tortura ilegal de animais indefesos não são dignos de confiança.

Sinceramente? Quer saber? Estão feias as coisas para o seu lado. Horríveis, mesmo. Mas, talentoso como é, você pode dar a volta por cima. Quem sabe não convence as pessoas de que, ao contrário do que imaginam, você a-d-o-r-a animais? Faça alguma coisa por eles, pode ser um primeiro passo! Digo mais: tendo contato com bichos em circunstâncias normais, você pode até vir a descobrir algo novo, como aquele afeto que surgiu entre Humphrey Bogart e Claude Rains no fim de ‘Casablanca’ — o começo de uma bela amizade.

Estude o caso da Suipa, por exemplo, a sociedade protetora que não pode acolher os seus galos por falta de condições adequadas. Lá, um grupo de voluntários trabalha, exaustivamente, para garantir um mínimo de bem-estar a quadrúpedes que o mundo desprezou. Ora, quem cuida de quadrúpedes com amor bem pode cuidar dos seus bípedes. Procure a Suipa, Duda, com o coração — e a carteira — abertos.

Os 6.500 cães, 850 gatos e sei lá quantos outros bichos abrigados pela sociedade sobrevivem de doações feitas por particulares. Os problemas são gravíssimos, e as dívidas, enormes — mas, ainda assim, correspondentes a apenas um terço dos R$ 1,7 milhão que circulavam em apostas no seu Clube Privê.

Imagine, Duda Mendonça, que oportunidade extraordinária! Pelo módico preço de uma dúzia de galos de briga, pelo equivalente a oito caixas de vinho, você tira a Suipa do vermelho, salva a vida de uns 7.500 animais e dá aquela melhorada na imagem. Só tem um porém: é tudo rigorosamente dentro da lei.

Para adiantar a sua vida, aqui vão os dados da conta da Suipa:

Banco Itaú, Agência 0584, CC 45500-0, CNPJ 00.108.055/0001-10.

Não há de quê.

PS: Por favor, ajudem a Suipa! A situação é desesperadora. Qualquer depósito, por pequeno que seja, será de grande valia.’



Ricardo Calil

‘A comédia da vida política’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 14/11/04

‘Poucos documentários brasileiros recentes despertaram tanto interesse antes do lançamento quanto ‘Entreatos – Lula a 30 Dias do Poder’, de João Moreira Salles, que estréia no próximo dia 26. A curiosidade se justifica plenamente pelo conteúdo do filme: os bastidores da campanha que levou o ex-líder operário à presidência do Brasil em 2002. Ela também pode ser explicada pelo sigilo da produção: o material original foi guardado em cofres ao longo das gravações e não teve qualquer tipo de divulgação até a finalização do filme neste ano.


A equipe de produção acompanhou Lula entre 25 de setembro de 2002, dias antes do primeiro turno, e 27 de outubro daquele ano, quando ele foi eleito presidente no segundo turno. Ao final desse período, havia 240 horas de gravações em vídeo digital. Diretor de ‘Nelson Freire’ e ‘Notícias de uma Guerra Particular’, Salles decidiu priorizar em seu novo documentário as cenas privadas do cotidiano de Lula, aquelas não cobertas pela grande imprensa. Daí o nome ‘Entreatos’, já que são enfocados os intervalos particulares entre os momentos públicos da campanha.


O filme registra reuniões reservadas, encontros familiares, bastidores das gravações dos programas eleitorais, bate-papos informais no avião de campanha e assim por diante. Lula conta piadas, fala palavrões, faz reflexões políticas e históricas, interage com famosos e anônimos. Do filme, emerge um retrato fascinante de um político encarnando diversos personagens: bonachão, desbocado, gregário, conciliador, sentimental, vaidoso, inseguro. E, acima de tudo, surge um ator com perfeito domínio de cena. Desde o primeiro take, uma verdade fica evidente: a câmera adora Lula, e vice-versa.


‘Entreatos’ será lançado simultaneamente a ‘Peões’, documentário de Eduardo Coutinho também produzido pela VideoFilmes, que traz conversas com sindicalistas que foram contemporâneos de Lula no ABC. Os dois filmes dialogam entre si e se complementam. ‘Peões’ aborda o universo operário do ABC paulista. ‘Entreatos’ se concentra no filho pródigo desse mundo. Juntos, eles jogam luz sobre parte fundamental da cultura política brasileira das últimas décadas.


O documentário de Salles funciona em três níveis distintos: como um documento histórico de um momento-chave da vida nacional; como uma comédia política, com casos e anedotas que devem entrar para o folclore eleitoral; e, em seu aspecto mais interessante, como um ensaio sobre a arte da representação no poder.


Documento histórico


Hoje é senso comum o fato de que Lula precisou abrandar sua imagem de radical para vencer a eleição, depois de três derrotas consecutivas. ‘Entreatos’ mostra como se deu esse processo na intimidade. Logo nos primeiros minutos do filme, o candidato é flagrado se revezando no namoro com empresários e trabalhadores.


No começo do dia, ele pede que o empresário José Cutrale grave um texto declarando seu apoio. Em seguida, vai visitar o sindicato dos metalúrgicos de Osasco. Ali declara: ‘Tudo que eu sou é fruto da consciência política da classe trabalhadora’. Mais tarde, dá uma entrevista por celular enquanto é barbeado garantindo que vai cumprir os acordos com o FMI.


Em outra parte do filme, ele aponta os responsáveis pela mudança: ‘Eu me convenci que o PT tinha que se abrir nessa eleição, o Dirceu me convenceu, o núcleo do PT me convenceu. A grande frase do Duda (Mendonça) foi: ‘Se vocês estão tão certos, por que não ganharam ainda?’.’


Lula reflete também sobre seu papel histórico: ‘É um dado triste. Mas no Brasil, hoje, a única figura de dimensão nacional sou eu. Por que eu cheguei aonde eu cheguei? Porque eu tenho atrás de mim um movimento’. Isso, segundo Lula, o diferencia de outros líderes mundiais. ‘O (polonês Lech) Walesa era um ‘pelegão’. Encontrei com ele em Roma em 1980. Ele saiu de lá com 60 milhões para a gráfica do Solidariedade. Eu saí com o dinheiro da passagem de volta. Ele era bajulado porque estava lutando contra o comunismo.’


O candidato faz objeções a antigos companheiros (‘O MST quer mudar a sociedade e chegar ao poder em 30 anos; mas eu vou morrer antes disso, quero chegar ao poder logo’). E elogia os novos aliados (‘Eu acredito na recuperação do ser humano. O Sarney está com uma atitude muito digna’).


Mostra desconfiança em relação a adversários históricos (‘Fico preocupado com a perda da liberdade, os militares atrás de mim dando palpite como para o Fernando Henrique…’). E faz uma previsão equivocada sobre seu futuro (‘O PT hoje não criaria nenhum problema com o governo. O partido não pode abandonar o governo porque ele não faz o que escreveu que tinha que fazer há dez anos’).


Comédia política


Além das reflexões sérias, ‘Entreatos’ traz várias declarações saborosas sobre assuntos que ganharam relevância depois das filmagens. Hábitos etílicos de Lula? Tem no filme. ‘No intervalo do trabalho, eu ia pro bar, tomava três, quatro pingas antes do almoço, comia em 15 minutos e ainda ia jogar bola. Voltava para a fábrica com o macacão todo melequento.’ Mais uma: ‘Aquele palácio (o Alvorada) é triste porque o Fernando Henrique não joga bola, não dança e não bebe um gole’.


Supostas tendências autoritárias? Também tem. Ao reclamar do assédio dos fotógrafos, ele diz: ‘Vou organizar o sindicato dos fotógrafos, vocês não têm ordem nenhuma’. E o gosto de Duda Mendonça por rinha de galo? Está lá. ‘Em marketing político eu sou uma merda. Mas em briga de galo e batuque eu sou bom’, diz o marqueteiro.


São declarações inofensivas, que só poderão ser usadas contra Lula pelos maldosos. Mas há outros momentos engraçados que são reveladores das muitas facetas da personalidade do presidente. O Lula vaidoso está bem representado no filme: ‘Sempre gostei de estar bem vestido. Sempre achei bonito ficar de terno e gravata. Em 30 anos de fábrica não me acostumei com o macacão. Para a gravata foram três dias’. O orgulhoso também aparece: ‘Conquistei a Marisa com o (automóvel) TL azul que comprei. Depois eu só progredi na vida’.


Por outro lado, um certo complexo de inferioridade, relacionado à polêmica pelo fato de não ter diploma universitário, também se insinua em algumas declarações: ‘Sou o mais votado na Academia Brasileira de Letras. O Machado de Assis não tinha diploma. O Aleijadinho não freqüentou escola’.


Um ator no poder


Não é apenas o texto das declarações que importa em ‘Entreatos’. O contexto delas é tão ou mais revelador: o tom e o tempo em que as frases são ditas ou caladas, os gestos e movimentos dos personagens. A Salles, não interessa apenas a realidade que se registra, como também a realidade que se encena, o embate entre verdade e representação no coração do documentário. Nesse sentido, o título do filme é um achado feliz. Pois nos entreatos os atores voltam a ser eles mesmos por alguns momentos, mas não abandonam de todo seus personagens.


‘Entreatos’ é o registro da campanha e, ao mesmo tempo, o registro do filme sobre a campanha. A princípio, trata-se de um descendente do cinema direto americano, que propõe o mínimo de interferência possível da equipe de produção sobre a realidade retratada. Mas a toda hora o documentário extrapola as fronteiras dessa metodologia.


Isso se dá nas muitas vezes em que a equipe de produção aparece diante da câmera. (Opção, aliás, justificável: a negociação do acesso à intimidade de Lula é uma questão fundamental no filme, e portas que se abrem e se fecham são sua imagem-chave.) Mas ocorre principalmente quando os personagens ganham consciência da câmera, o que na verdade acontece na maior parte do tempo. Todos ali desempenham papéis, com maior ou menor desenvoltura.


Lula é o Laurence Olivier da turma, e seu talento para a representação não deve ser menosprezado como um dos fatores de seu sucesso político. O presidente tem timing tanto para a comédia quanto para o drama. Vai da irritação à risada em poucos segundos. Sabe adequar o tom do discurso para cada tipo de público, seja uma multidão em um comício, uma roda de amigos ou apenas uma câmera. Mais importante ainda, ele conseguiu se adaptar com perfeição a um novo personagem, o ‘Lulinha paz e amor’ da campanha. Mudou não apenas o visual, como também a inflexão da voz. Trocou o improviso pelo teleprompter sem perder o rebolado.


Perto de Lula, todos os outros personagens se tornam coadjuvantes. Há aqueles que parecem mais importantes do que são na trama, como dona Marisa e José Alencar. E também os que são mais importantes do que parecem, como Palocci e Gushiken. Há os fiéis escudeiros, como Gilberto Carvalho, assessor de Lula. E os bufões, como Eduardo Suplicy. E também existem aqueles que preferem atuar por trás da câmera. A Duda Mendonça, cabe a função de diretor, e ele a exerce com gosto, orientando Lula e outros petistas sobre a melhor maneira de atuar.


Já José Dirceu encara o papel de produtor, aquele que garante que nada saia errado. Isso fica claro no momento mais tenso do filme. Ao perceber a presença da equipe em uma reunião de preparação de um debate, Dirceu pergunta com rispidez: ‘Quem é esse pessoal?’ ‘Eles são de confiança’, responde Gilberto Carvalho. ‘Não existe confiança absoluta.’ ‘Mas a fita vai para um cofre.’ ‘Vai nessa…’ Salles achou que sua empreitada havia terminado ali. Por sorte, foi apenas um entreato nas filmagens.’



ELEIÇÕES 2004
Flávio Freire

‘‘Não estou falando e nem vou falar’’, copyright O Globo, 12/11/04

‘Em seu primeiro compromisso público com moradores de São Paulo após o segundo turno das eleições, a prefeita Marta Suplicy (PT) visitou rapidamente duas escolas e um posto de saúde na Zona Sul da cidade e deixou escapar um tom melancólico nas conversas. Tão logo chegou à escola Jardim República, a prefeita, derrotada por José Serra (PSDB), foi abordada pela dona de casa Donata Vieira da Silva.

— Marta, que pena que você perdeu — disse Donata.

A prefeita desabafou.

— A gente ficou (com pena) também. Mas a vida é assim — respondeu, enquanto brincava com crianças, cumprimentava funcionários e conhecia as instalações do prédio, inaugurado durante a campanha pelo vice-prefeito, Hélio Bicudo.

Antes de deixar uma unidade de saúde, a prefeita improvisou um discurso:

— Meu muito obrigado a todos vocês, já que tivemos nesta região uma votação muito expressiva. A alegria de estar com vocês é muito grande. Desejo a todos um bom final de ano, um bom Natal, porque provavelmente não virei mais nesta região como prefeita.

Perguntada por um repórter se falaria à imprensa, respondeu:

— Não estou falando com vocês e nem vou falar.’