Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Antonio Gonçalves Filho

‘O lançamento simultâneo de dois livros sobre o poder ideológico da televisão não pode ser simples coincidência. Enquanto Videologias (Boitempo Editorial, 256 págs., R$ 32), do crítico Eugênio Bucci e da psicanalista Maria Rita Kehl, ocupa-se dos efeitos do fetichismo midiático sobre o público, TV Digital Interativa (Projeto I2TV, 211 págs., R$ 15), dos catarinenses Valdecir Becker e Carlos Montez, toca no calcanhar-de-aquiles do oligopólio das redes: a exclusão digital ligada à exclusão social. Se a televisão aberta controla o imaginário do público, alimentando-o com violência, a digital anuncia um mundo interativo que pode alterar esse panorama. Pelo menos é o que se espera dela.

Freud e Marx acabam se encontrando, de alguma maneira, nos dois livros.

Videologias analisa o modo de produção do imaginário segundo o modelo capitalista, concedendo especial atenção à questão do fetiche. TV Digital Interativa conclui, por meio de entrevistas com vários especialistas, que a televisão interativa, ligada à internet, pode provocar uma revolução não só comportamental como política. Um de seus autores, o jornalista Valdecir Becker, diz que o governo brasileiro acordou finalmente para a questão básica: sem informação de qualidade, a vida das pessoas não evolui. E o que se vê na televisão aberta atualmente não tem nada a ver com qualidade.

Os exemplos de interatividade na televisão – do tipo ‘você decide’ ou o bate-papo da loira Syang com seus fãs – não passam de instrumentos rudimentares quando comparados ao potencial da televisão interativa.

Encarado inicialmente como uma simples evolução tecnológica – como a internet há dez anos -, o sistema digital promete ser o padrão planetário do futuro. E, quando isso acontecer, não será apenas um problema de (alta) definição de imagem, mas de conteúdo. ‘Quando o Domingão do Faustão estiver competindo com a internet, isso vai exigir uma readaptação dos programadores, consolidando uma nova linguagem’, profetiza Becker.

Até lá, os espectadores serão brindados com melodramas baratos, reality shows, telenovelas vagabundas, testes de fidelidade, apresentadores analfabetos, programas policiais de delação, ratinhos e todo esse zoológico de violência em que se transformou a televisão comercial no Brasil. É esse o material de pesquisa de Videologias, um livro que pega pesado contra a instituição ‘videológica’ do fetiche.

Dividido em cinco partes, mais um apêndice sobre os direitos do telespectador, o livro de Eugênio Bucci, presidente da Radiobrás, e Maria Rita Kehl (leia entrevistas abaixo) analisa desde a formação de uma rede nacional de vigilância (em programas que incentivam a delação, como Linha Direta, da Globo) até a falsa solidariedade das campanhas televisivas. Passa pela manipulação política na cobertura das campanhas por eleições diretas, em 1984, pelo voyeurismo perverso da platéia do Big Brother e não recua diante de casos mais graves, como a transmissão da morte ao vivo de desesperados, ou a eugenia televisiva de No Limite.

A respeito dele, a psicanalista Maria Rita Kehl descreve o programa como um ‘laboratório nietzschiano em que se cultivou a prova da vitória dos fracos sobre os fortes, em que se reafirmou o pacto cínico que rege o mundo neoliberal’. Ao final, cada edição do programa provava, segundo a co-autora de Videologias, ‘que não se deve esperar grandeza e generosidade de ninguém’. Estaremos condenados à baixeza? A resposta pode ser sim, alerta a psicanalista. O sucesso dos piores programas, conclui ela, ‘está no fato de encenarem, em público, algo parecido com a realização de nossos desejos inconfessáveis’. Em outras palavras, legitima o lado perverso do espectador, que se sente livre ao liberar fantasias recalcadas.

O perigo é maior quando se considera a oligopolização da indústria do entretenimento, analisada por Eugênio Bucci logo no primeiro capítulo.

Dominada por sete grandes empresas em todo o mundo, essa indústria movimenta mais de US$ 500 bilhões por ano só nos Estados Unidos. No Brasil, existem mais ou menos 40 milhões de lares com TV. Sendo a comunicação impressa bem menos expressiva, segundo Bucci, pode-se concluir que não só o Brasil, como o mundo, ‘se conhece e se reconhece pela televisão, e praticamente só pela televisão’. A TV monologa nas casas brasileiras, observa o crítico. Ao espectador, resta o papel de criança tutelada: ‘Ele é o último a ser consultado’, conclui.’

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‘Maria Rita Kehl’, copyright O Estado de S. Paulo, 4/07/04

‘A psicanalista Maria Rita Kehl, co-autora de Videologias, fala de violência, política e controle em entrevista ao Estado sobre o livro.

Estado – Em Videologias, a senhora cita o seqüestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro, há quatro anos, como um espetáculo que poderia ter sido evitado. A TV funcionou como veículo de um desfecho violento?

Maria Rita Kehl – Seria leviano falar que a culpa é da TV, mas é estranho a presença de uma emissora que, em vez de coibir o ato extremo, teve o efeito de transformá-lo em espetáculo. Hoje em dia, o ‘olho’ da TV facilita não uma interdição, mas uma espetacularização do que está acontecendo. Como todos somos violentos, se não há uma interdição cultural, também ficamos predispostos a uma resposta violenta. Vemos isso diariamente no trânsito.

Estado – Ao se referir às campanhas políticas via TV, a senhora diz que a linguagem publicitária se apossou de tal maneira dela que, independentemente das propostas do político, o eleitor só vota naquele cuja campanha o faz gozar. No caso do Lula, qual foi o fetiche de sua campanha?

Maria Rita – No caso dele, se vendeu uma esperança messiânica, do salvador da Pátria, como o Collor, em 1989. Não por acaso, o publicitário Duda Mendonça estava à frente da campanha de Lula.

Estado – Seu ataque aos reality shows no livro lembra que o espaço da política foi substituído pela visibilidade instantânea na sociedade de espetáculo. Por que as pessoas preferem a vira-latice à cidadania?

Maria Rita – É preciso diferenciar o que as pessoas querem daquilo que elas desejam. O desejo inconsciente aponta para tudo o que está recalcado – o mórbido, o pornográfico, o escatológico. O desejo sustenta-se da interdição do gozo. Estou com Freud. Todos desejam ver. O problema é que a predominância desse tipo de espetáculo rouba o espaço de alternativas para o inconsciente.

Estado – A televisão praticamente eliminou a distância entre público e privado. A senhora identifica algo de esquizofrênico numa sociedade que não faz distinção entre tais espaços?

Maria Rita – Não. Essa distinção não é necessária. É uma contingência da modernidade. Ela foi criada por uma sociedade emergente e não acho que alguém vá enlouquecer por isso. Nas cidades medievais existia uma promiscuidade absoluta. Os reality shows são um sintoma da desvalorização da vida pública e da supervalorização do privado, onde você é ‘feliz’ e a vida se ‘realiza’.

Estado – A TV acena com uma falsa promessa de democracia eletrônica em programas interativos. A senhora é favorável a algum tipo de controle da TV?

Maria Rita – Não. A censura implica um poder central que decide o que é bom para ele. A campanha contra a baixaria na TV, por exemplo, é bem intencionada, mas considero seu alcance mais propagandístico do que real. Um programa considerado de baixo nível pode perder um grande anunciante, mas sempre haverá um pequeno disposto a bancá-lo. Existe um único modo de controlar: a renovação das concessões. Hoje se renova sem o menor critério.’

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‘Eugênio Bucci’, copyright O Estado de S. Paulo, 4/07/04

‘O jornalista Eugênio Bucci, co-autor de Videologias e presidente da Radiobrás, fala sobre ética e espetáculo em sua entrevista ao Estado.

Estado – O livro Videologias cita o suicídio do secretário da Fazenda da Pensilvânia, Budd Dwyer, diante das câmeras, em 1987. Outros suicídios foram exibidos pela TV. Houve um relaxamento nos limites do jornalismo? O mundo ficou mais sádico?

Eugênio Bucci – É uma questão cultural. A televisão pode ser vista como catalisadora, suporte ou sujeito. As mortes no Iraque que circulam pela internet já são mostradas por algumas emissoras. As barreiras, os constrangimentos, foram derrubados. A TV se permite usar tintas e cenas cada vez mais intensas, como o suicídio do policial no Morumbi, em 2003. Existem códigos de ética, mas o que se observa é um fenômeno que se dá além deles.

Eles não contêm mais os movimentos que estão acontecendo. Um código apenas tipifica e normatiza situações que podem acontecer no dia-a-dia. É preciso refletir por que a sociedade precisa desse tipo de cena.

Estado – Ao mesmo tempo que você defende a existência de um jornalismo popular na televisão, contra o que chama de ‘complexo de madame’, observa que programas como o Linha Direta fazem a apologia da delação, de uma interatividade acusatória, imoral. Não prevalece aí um fascismo de massa?

Bucci – A TV no Brasil ainda está monologando. Não dispõe da instituição do ‘ombudsman’ para refletir sobre sua produção. De fato, a TV pode fazer parte da criação de ambientes de mentalidade fascista. As pessoas vêem novela como quem vê a si mesmo, e programas sensacionalistas como quem vê a janela do vizinho, mas não creio que a censura resolva. A instituição da censura apenas aprofunda o potencial de programas como Linha Direta.

Estado – Como você analisa o desempenho do telejornalismo brasileiro na cobertura das últimas campanhas políticas?

Bucci – Melhorou muito em relação às campanhas de dez anos atrás. Essa cobertura mais qualificada coincide com o aprimoramento das instituições democráticas, mas falta ainda uma cobrança popular, algo que parece utópico num quadro de exclusão social. Formamos uma sociedade que se informa pela televisão. Se ela é sensacionalista…

Estado – A mídia impressa é mais confiável que a mídia eletrônica?

Bucci – A mídia impressa guarda melhor sua memória. A televisão precisa urgentemente de um banco público de imagens, ao qual qualquer um possa ter acesso. A democracia só pode funcionar com as idéias circulando livremente.

A sociedade gasta com bibliotecas públicas, mas não com a memória televisiva.

Estado – Grandes redes hoje ocupam um ‘topos’ e impõem um padrão ideológico.

Essa ‘videologia’ não é mais perigosa que a dos partidos?

Bucci – A TV é, efetivamente, um ‘lugar’. Dentro desse lugar, ela ocupa uma centralidade. Quando se cobra coerência política de uma emissora, não se chega a um lugar satisfatório. O espetáculo não pode ser compreendido segundo paradigmas políticos. O padrão ideológico é sempre o do mercado.

Isso vale tanto para o cinema como para um videogame.’



POLÍTICA & IMAGENS
Luis Fernando Verissimo

‘Duas imagens’, copyright O Globo, 1/07/04

‘O Millôr desafiou: diga ‘uma imagem vale mil palavras’ sem usar palavras. Certo, como sempre, o nosso sábio maior. Mas nas ultimas semanas vi duas imagens que significavam tanto que me deixaram sem palavras. Uma foi aquela foto de senadores comemorando a derrota da proposta de salário-mínimo do governo, logo após a votação. Numa ponta da foto aparece o Antônio Carlos Magalhães, eufórico. Na outra ponta, também eufórica, a Heloisa Helena. E entre eles, outros festejadores, com predominância de senadores do PFL.

Se eu não consegui organizar um pensamento para enquadrar a foto, imagino alguém, no futuro, procurando palavras para interpretá-la e, com ela, a estranha forma que tomou a política brasileira naquele ano de 2004, quando rebelados contra a incoerência do PT aderiram à incoerência do PFL votando por um mínimo maior do que o proposto. A imagem não terá detalhes – como o de que a Câmara depois restaurou o mínimo que o governo queria – nem explicações sobre as sutis motivações de cada um na gama de eufóricos que ia de ACM a Heloisa Helena. Só dirá, sem palavras, isto: que houve um torneio de incoerências e algumas pessoas precisaram escolher entre uma incoerência amargurante e uma incoerência hipócrita e se aliaram à hipócrita, porque os dias eram assim. E que foi tudo (também não dirá a foto) por 15 reais.

Outra imagem que me deixou sem palavras foi uma que vi na TV, de dois homossexuais se casando num estado no Sul dos Estados Unidos. Não me lembro que estado era nem se foi uma cerimônia oficial – duvido que o casamento homossexual já esteja legalizado em algum estado sulista americano -, mas o espantoso da imagem era que um dos homens era branco e o outro negro. Há não muitos anos o casamento inter-racial era proibido por lei nos estados sulistas. Até o namoro inter-racial era arriscado: negro com branca podia dar linchamento, branco com negra era impensável, ou era clandestino. Para descrever o que teve que mudar na cabeça de uma comunidade inteira para tornar possível, ou pelo menos não causar apoplexia coletiva, a união de pessoas de raças diferentes e do mesmo sexo, não há palavras possíveis. Só o sentimento que, afinal de contas, algumas coisas mudam para melhor, e a hipocrisia não é uma fatalidade genética humana.’