CASO VASCONCELLOS
Cruzes, 10/02/2006
‘Semana passada perdi um grande amigo: o delegado Mauro Marcelo. Ele está vivo e forte, ainda bem. Aprendi a admirá-lo pela sua sagacidade, inteligência, caráter e honestidade. Não é para menos que é um dos raros formados no FBI, a polícia federal dos EUA. Não é para menos que a Casa Branca aludiu ao dr. Mauro, quando precisavam descobrir o sacripanta (do interior de São Paulo) que mandava mensagens via net referindo que ia matar o então presidente Bill Clinton. Não é para menos que Mauro Marcelo foi o primeiro diretor da Agência Brasileira de Inteligência sob o governo Lula. Mauro Marcelo, conhecido como MM, abriu pela primeira vez a Abin para a imprensa, em 9 de setembro de 2005. Nada fácil: afinal o prédio da Abin é o mesmo do antigo Serviço Nacional de Informações, o SNI, à época em que a inteligência brasileira era uma contradição em termos (frase do Groucho Marx), dada a perseguir comunistas para que fossem fichados e até mortos.
Semana passada Marcelo Rubens Paiva, velho amigo, noticiou no Estadão como eu fora convidado por Mauro Marcelo para ajudar a encontrar o corpo do engenheiro Vasconcellos, da Odebrecht. A TV Record repicou a notícia. Tirei uma cruz de caravaca das costas: pude tornar público o que achei que deveria ser tornado público. A família do engenheiro assim não entendeu: seus parentes deixaram vários ataques contra a minha pessoa em minha caixa postal do celular. Com Marcelo Paiva não foi diferente. Ficamos passados. O senador Eduardo Suplicy nos telefonou. Para explicar que a família achava que a TV Record dera destaque ao caso, no sábado, no Jornal da Record, porque meu livro a ser lançado, que conta essa história entre outras, seria ‘lançado pela editora do Bispo Edir Macedo’. Foi uma conversa kafkaniana eu explicar para o senador que a editora do livro, chamada Editora do Bispo, é na verdade de propriedade do escritor Xico Sá e da artista plástica Pinky Wainer, filha de Danuza Leão. Nada tem ver com o bispo Macedo. Basta entrar em www.editoradobispo.com.br e você verá que as propostas são no mínimo diferentes…
Há um problema em você ficar amigo de uma fonte que admira: quando a fonte te conta algo de interesse público, e você é jornalista, deve-se tornar o assunto público. Não deve haver nesse sentido o off the records. O assunto foi tornado público: ok dirão, missão cumprida. Mas perdi um amigo, uma fonte, e ainda tomamos agressões verbais da família. Tudo bem: o que vale é que tirei uma cruz de minhas costas. Melhor dizendo: tirei uma e botei outras no lugar…
Segue a coluna do Marcelo Rubens Paiva publicada no Estadão de sábado passado.
O resgate do engenheiro Vasconcellos
Integrantes dos grupos Brigadas Mujahedin e Exército Ansar Al-Sunna seqüestram o engenheiro brasileiro João José de Vasconcellos Jr., da construtora Odebrecht em 19 de janeiro de 2005 no norte do Iraque. Atacaram o comboio que o levava até o aeroporto. Morreram dois seguranças. Testemunhas afirmaram que o engenheiro fora arrancado ferido do carro. Três dias depois, a TV Al-Jazira exibe um vídeo com documentos de Vasconcellos. O fato do próprio engenheiro, casado há 25 anos com a psicóloga Tereza Vasconcellos, com quem teve três filhos (Rodrigo, de 26 anos, Tatiana, de 24, e Gustavo, de 17), não aparecer no vídeo causou suspeitas.
Há um ano a família de Juiz de Fora está sem notícias. Pediu um encontro com Lula nos primeiros dias do desaparecimento através do senador Eduardo Suplicy (PT-SP) e Hélio Costa, ministro das Comunicações. Não foi recebida. Reclama que em outros países o envolvimento de chefes políticos com o seqüestro de compatriotas é maior.
Há uma razão para Lula não receber. Ele não quer ser o portador da má notícia. Lula, o Itamaraty, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, a construtora Odebrecht e a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) sabem que o engenheiro morreu e chegaram a negociar pelo corpo US$ 1 milhão. Oficialmente, o Itamaraty, num comunicado, afirma que nas iniciativas do governo foram tomadas cautela e discrição, que ele tem agido com ‘firmeza e determinação na busca de um desfecho para o caso’ e tomou providências: a ampliação da rede de contatos, o envio de diplomatas, a ampliação de gestões pelas representações do Brasil no Oriente Médio e nos países que enfrentaram situações similares, ‘contatos de alto nível’, como o telefonema do presidente Lula ao presidente da Síria, Bachar Assad, e apelos humanitários.
Um dos emissários convocados para negociar o corpo do brasileiro é um dos meus melhores amigos, o jornalista Cláudio Júlio Tognolli (Jovem Pan, Consultor Jurídico). Tognolli, amigo de Mauro Marcelo, ex-diretor da Abin, me contou o que aconteceu com o engenheiro e anunciou a viagem secreta ao Iraque, relatou um encontro na Abin e pediu para eu tornar pública a sua missão caso algo acontecesse.
Pedi para informarmos os Vasconcellos. E que se ele não pudesse, eu o faria. E revi minha mãe nos primeiros anos do desaparecimento do meu pai, também engenheiro, revi o seu quarto intacto, a cama de casal, o armário sempre organizado com ternos passados, ela sem notícias, desconfiada da morte, mas recebendo informações truncadas do governo brasileiro: que ele não estava no DOI/Codi, depois, que nunca fora preso, depois, que tinha fugido e resgatado por ‘companheiros terroristas’ numa ação espetacular, enquanto meu avô era achacado por oficiais do Exército, que prometiam soltar seu filho por uma quantia depositada. Fontes o viram em prisões no Xingu, Noronha. Só anos mais tarde, amigos jornalistas contaram o que tinha acontecido, segundo escutaram em Brasília: ele fora morto dois dias depois da prisão. Só 25 anos depois, em 1996, o governo brasileiro reconheceu a sua morte.
Tognolli escreveu um capítulo sobre o engenheiro Vasconcellos no livro que lança em março, Pactos Silenciosos: Patos Silenciosos (Editora do Bispo). Eis a narrativa de um encontro ocorrido na Abin, Brasília:
‘Do gabinete de Mauro Marcelo, passei para aquela sala contígua, com um espelho enorme, sobre o qual Mauro Marcelo pôs o alerta ‘sorria, você não está sendo filmado’. Sentaram-se dois agentes engravatados, bem informados, hieráticos como mordomos ingleses. Eis o que ouvi: ‘O engenheiro da Odebrecht morreu dois dias depois de seu carro ter sido atacado, naquela região do triângulo Sunita uns 200 quilômetros acima de Bagdá. Deve ter levado mais de 30 tiros e morreu de hemorragia.
Sabemos que quem negocia o corpo dele fala apenas com uma ONG chamada Iraq Institute For Peace.’ Perguntei o que era ‘negociar corpos’. ‘O Iraque virou um mercado de tapetes persas também para seres humanos. Às vezes eles enterraram corpos debaixo de Passats velhos, no jardim de uma casa. Quem vai procurar um corpo debaixo de um carro velho? O último preço que tivemos é que queriam pelo corpo do engenheiro US$ 30 mil. Mas aquele vídeo que passou na TV Al-Jazira, em que o jogador Ronaldinho pede a libertação do engenheiro, inflacionou o preço. Agora querem US$ 1 milhão pelo corpo.’ Perguntei o que poderia fazer. Ele: ‘Consta que você fala idiomas, tem experiência em coberturas internacionais e milita em direitos humanos.
Você deve ir primeiro à TV Al-Jazira tentar saber quem entregou a eles aquela fita com as imagens do ataque que vitimou o engenheiro. Depois você vai para Bagdá tentar falar com o pessoal do Irak Institute For Peace. Você tem de ter certeza biológica de que aquele é o corpo. Temos contatos na Arábia Saudita que podem te ajudar nisso.’ Caberia a mim ir até lá, verificar o biologismo comprobatório de que aquele era o corpo do engenheiro brasileiro. O resto a Abin faria. O governo iria pagar US$ 1 milhão pelo corpo desde que aquele fosse mesmo o corpo.’
A Abin não garantia seguro nem seguranças a Tognolli. Se ele morresse, não teria um atestado de que agira numa missão para o governo. Ele viajaria a Bagdá em 20 de maio de 2005. ‘Com a saída de Mauro Marcelo da Abin, nos primeiros meses da crise do mensalão, o caso murchou à irrelevância’, escreveu.’
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