‘Ser correspondente internacional em um país como a Argentina implica, antes de tudo – até mesmo antes de entender algo tão complexo como o funcionamento do imbroglio político nativo ou das persistentes turbulências da economia – em se resignar à realidade de que não se pode depender das assessorias de imprensa dos organismos do governo ou das empresas instaladas neste país (estrangeiras ou nativas) para conseguir dados necessários a nossos trabalhos.
Não adianta. Estamos sozinhos. Isto é um deserto mais árido que o Sahara. E quando aparece um oásis, a água costuma ser salobra. Não importa ser brasileiro, espanhol, americano ou vietnamita. Todos enfrentamos os mesmos problemas. Não há tratamento VIP dependendo do passaporte. Por sorte, as relações pessoais com os colegas argentinos costumam ser muito boas. Entre os jornalistas argentinos – especialmente os menores de 50 anos – existe uma espécie de fascinação pelo Brasil. Além disso, nossos trabalhos não concorrem um contra o outro e constantemente intercambiamos informações de forma solidária.
Do lado empresarial, existe interesse em falar com os correspondentes brasileiros, já que para o setor econômico argentino não há nada mais importante que o mercado brasileiro.
Mas enquanto falar com os empresários não é problema, é um drama conseguir dados e estatísticas com suas assessorias de imprensa. As informações costumam ser desatualizadas, insuficientes, demasiadamente genéricas. Além disso, existe um colossal temor em fornecer mesmo os dados mais simples, por pânico de que sejam ‘estratégicos’, o que muitas vezes inclui-se o faturamento da empresa no ano retrasado (sic).
Quando o caso não é esconder as informações, a estratégia das assessorias na Argentina é a de mentir sobre eles, alterando-os levemente ou significativamente…o que me recorda a frase de Winston Churchill, pronunciada durante a Segunda Guerra Mundial: ‘Em tempos de guerra, a verdade é tão preciosa que ela precisa sempre estar protegida por um pelotão de mentiras’.
Nem falemos se precisamos da foto de um produto. Poucos anos atrás, uma correspondente brasileira, que escrevia para uma publicação especializada em economia, pediu à assessoria de uma empresa brasileira instalada na Argentina uma foto de sua linha de bebidas. A assessoria enviou a foto (uma), exigindo que após a reprodução ela fosse devolvida, já que era a única que tinham.
Ah, também é preciso explicar algo: eu disse que falar com os empresários é fácil. Sim, se os encontrarmos
em algum evento ou tivermos o celular deles. Se precisarmos passar pelas assessorias de ‘comunicação’, o elemento que menos conseguiremos será exatamente a tal da ‘comunicação’. Quando nos dizem: ‘ah, precisa falar com o assessor dele’, o melhor é buscar desesperadamente em qual jantar estará hoje à noite para fazer o contato pessoal com o magnata ali. O assessor – sabe-se lá por que – é, para os jornalistas (e permitam, desta vez, uma comparação com a Primeira Guerra Mundial) um obstáculo maior que as trincheiras que os franceses tinham em Verdun, em 1915.
No governo, o front de guerra é similar. A batalha pode ser muito pior ou menos pior, dependendo de qual é o presidente de plantão e de suas relações com o Brasil. Na gestão de Carlos Menem (1989-1999), as relações com o governo brasileiro tiveram algumas de suas piores crises. No entanto, conversar com os representantes argentinos não era difícil. Os motivos, no entanto, eram peculiares: os funcionários da administração de ‘El Turco’ – como era conhecido Menem – falavam com a imprensa para poder puxar o tapete de seu inimigo dentro do próprio ministério ou de ministérios ‘rivais’. O clima de eterna conspiração interna nos favorecia.
No governo de Fernando De la Rúa (1999-2001) o confronto com a imprensa brasileira foi insólito. O chanceler Adalberto Rodríguez Giavarini nunca quis nos dar uma entrevista enquanto esteve no posto. A secretária de Indústria e Comércio, Débora Giorgi, literalmente fugia – conseguia correr bastante rápido com seus saltos altos – quando nos via. O governo de Eduardo Duhalde (2002-2003), conhecido como ‘El Cabezón’, estava tão imerso em impedir que o país afundasse mais ainda que conseguiu organizar-se para ter uma política em relação à imprensa estrangeira. O atual governo, de ‘El Pingüino’ Néstor Kirchner, ignora a imprensa nativa e estrangeira. Não lhes interessamos. Depois da campanha eleitoral, não querem falar conosco. Os assessores não são profissionais de comunicação (em geral). No ministério da Economia já houve pelo menos uma cena de pugilato entre assessores e jornalistas. Troca de insultos, todos já cansaram de contar.
Vejamos um causo próprio da incapacidade da anterior assessoria que havia no ministério: anos atrás (não muitos) liguei para saber qual havia sido o PIB do ano anterior. Este foi o diálogo que começou às 10 horas da manhã.
– O senhor pode ligar na quarta- feira da semana que vem?
– Cooomo? Hoje é terça-feira e precisam de oito dias para saber o PIB do ano passado???
– É, sabe cumequié… a pessoa encarregada não está aqui no momento…
– Eu preciso destes dados para hoje.
– Hummm… bem… o senhor pode ligar amanhã?
– Hoje quer dizer hoje. Não é amanhã em nenhuma parte deste planeta.
– Hummm… talvez, se ligar depois das 16 horas.
– Eu preciso disso antes das 13 horas.
– Hummm… pode ligar às 12 horas?
– Eu ligo às 11 horas.
Às 11h, liguei.
– Já conseguiram saber o PIB do ano passado?
– Olha moço… ainda não veio a pessoa que pode liberar essa informação…
– Coooomo? Olha, eu tenho o PIB do ano passado em meu arquivo, só que eu estou na rua e ainda não terminei meu curso de poderes telepáticos…
– Ah, mas nós não podemos fazer nada…
– Você quer que eu ligue para uma consultoria e pergunte lá o PIB e que diga que o ministério da Economia não sabe o PIB do próprio país???
– Ah, espere, vou passar o senhor para outra pessoa…
(Após 10 minutos escutando Pour Elise, de Beethoven, no sistema de espera telefônica do ministério. Tarárá-rá-rá-rá-rá-tarárárátarararááááá….)
Para a outra pessoa, repeti tudo.
– Humm….e para que o senhor vai usar essa informação?
– Para uma matéria jornalística!
– Vejamos o que podemos fazer… ligue daqui a 15 minutos.
Quinze minutos depois, liguei.
– Quem fala? Preciso falar com o senhor X, que me prometeu o valor do PIB do ano passado…
– Ah, o senhor X saiu para o almoço…
Na Chancelaria, pela primeira vez em meia década, o tratamento é correto. Mas, isso da vice-chancelaria para baixo. Para cima, é impossível. Falar com Rafael Bielsa, o chanceler argentino – cujo maior interesse jornalístico, teoricamente, seria falar com a imprensa brasileira – é algo que em um ano de governo Kirchner ainda não aconteceu.
Os sites de internet do governo argentino? Por favor, não quero engasgar de tanta gargalhada. A agenda do presidente não está no site da presidência. Anos atrás, no site do ministério da Defesa, a foto do ministro era a do sujeito que havia renunciado seis meses antes…e assim por diante. Os sites, mesmo de pequenos e pobres Estados da federação brasileira, são um luxo perto do que existe aqui. As assessorias de grande parte das empresas argentinas e do governo nativo são pré-históricas? Não. É pior. Talvez o termo jurássico seria condescendente, já que significaria equiparar a comunicação do governo e das empresas neste país aos dinossauros. O panorama é mesmo devoniano, ou seja, da época em que apareceram as primeiras plantas pequenas sobre a Terra. Estas observações consistem em uma posição contrária à Argentina? Não! Este país é fascinante.
Conversar sobre política e história com os argentinos é um deleite. Além disso, Buenos Aires é uma cidade com intensa atividade cultural. Comer, na Argentina, pode ser um prazer para as papilas gustativas. Mas, encontrar um assessor de comunicação pela frente neste país (com raríssimas exceções) é quase uma certeza de amargar o dia. (Ariel Palácios é correspondente em Buenos Aires do jornal O Estado de S.Paulo, da Rádio Eldorado e da Globonews)’
COPA AMÉRICA NA MÍDIA
‘Imprensa argentina menospreza o Brasil e acha que título está ganho’, copyright O Estado de S. Paulo, 23/07/04
‘Apesar de ser o maior rival na América do Sul, o Brasil parece não colocar medo nos argentinos na final da Copa América. A constatação vale, ao menos, quando se fala da imprensa local. O triunfo verde-amarelo sobre os uruguaios por 5 a 3 nos pênaltis e a conseqüente classificação à decisão foi manchete em jornais da Argentina. Mas, claro, com menosprezo e algumas chacotas. O enfoque dos jornais são parecidos: o de que o Brasil não assusta. ‘É o adversário que todos queriam’, entende o Clarín, salientando que o Brasil não colocou medo no Uruguai.
O sempre sarcástico Olé foi mais comedido. Apesar da manchete – ‘não temos medo’ – e dos comentários sobre a sorte brasileira frente os uruguaios, ressaltou que a seleção de Carlos Alberto Parreira é perigosa e pediu cuidado com Adriano, artilheiro da Copa América com 6 gols.
Já o técnico argentino, Marcelo Bielsa, não entrou no clima. Apesar de manter sua convicção de atacar com seis jogadores, será precavido com o poder de fogo brasileiro. ‘Seria um grande erro não pensar em uma alternativa’, assinalou. ‘Não vou ignorar que o Brasil joga com dois atacantes e um terceiro homem de ataque como Alex. Ainda tenho que analisar a melhor maneira de resistir a isso.’
O presidente da Associação de Futebol Argentino, Julio Grondona, não gostou também de os brasileiros atribuírem o favoritismo à Argentina, alegando que o Brasil não está com a força máxima. ‘As seleções estão iguais. Também temos desfalques: Riquelme, Verón e Aimar.’’