Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Augusto Nunes

‘Antes de eleger-se presidente, Lula vivia criticando a Rede Globo, um dos alvos preferenciais de seus espasmos de ferocidade retórica. Se até os repórteres acabavam atingidos por estilhaços, natural que sobrasse para o dono da empresa. Num discurso em Aracaju, afirmou: ‘O Roberto Marinho não faz outra coisa a não ser mentir para o povo’. Vitorioso na última disputa pelo Planalto, concedeu a primeira entrevista exclusiva ao ‘Jornal Nacional’ e a segunda ao ‘Fantástico’. Nos meses seguintes, consolidou relações muito amistosas com os sucessores do homem que acusara de mentiroso. Hoje, confere à Globo tratamento especialíssimo. Uma mudança dessas exige coragem.

Costumava fustigar com adjetivos grosseiros, alguns infamantes, o presidente José Sarney. Agora vê no atual senador um homem de bem, amigo leal, companheiro dos mais confiáveis. Também qualificou de ‘ladrão’ e ‘trombadinha’ o ex-governador Orestes Quércia, outro bom parceiro neste segundo semestre de 2004. São dois entre tantos exemplos de guinadas corajosas.

Lula considerava ultrajante estabelecer limites de idade para a concessão de aposentadorias. ‘O governo propõe esse crime porque sabe que pobre morre de fome antes de chegar à velhice’, repetia o falante sindicalista transformado em chefe político. Em 2003, incluiu o limite de idade no seu projeto de reforma da Previdência (e, corajosamente, adicionou outro velho demônio: a taxação dos servidores públicos inativos).

O antigo Lula enquadrava na categoria de ‘assaltantes’ rigorosamente todos os banqueiros. O novo Lula acaba de conferir o cargo de ministro de Estado ao presidente do Banco Central só para evitar investigações sobre Henrique Meirelles quando poderoso executivo do BankBoston. Chefes corajosos não abandonam aliados à própria sorte. Todos merecem o guarda-chuva protetor, sejam banqueiros ou não. (No governo atual, aliás, os lucros das grandes instituições financeiras têm superado recordes sucessivos. Lula já não diz que ‘é a exploração do suor do povo que enche de dinheiro o rabo dos bancos’.)

‘O Fernando Henrique só pensa em avião e em viajar para o exterior’, repetia a cada decolagem do antecessor. Em matéria de milhagem, os números informam que FH vem sendo amplamente ultrapassado por Lula. Que também teve a coragem de comprar um Airbus tinindo de moderno para substituir o Sucatão velho de guerra.

Depois de ter exercido o mandato de deputado federal, preferiu afastar-se do Congresso por calcular que ali havia pelo menos 300 ‘picaretas’. Certamente não estava pensando em parlamentares com o perfil de uma Heloísa Helena, expulsa há meses do PT por negar-se à vassalagem. É mais provável que a contabilidade de Lula se apoiasse no convívio com certas figuras hoje no comando do PTB ou do PMDB. Essa turma entra sem bater no gabinete presidencial.

Presidente eleito, prometeu pessoalmente à viúva de Toninho do PT que o caso do prefeito de Campinas, assassinado em circunstâncias mal esclarecidas, seria prontamente reaberto. Em recente viagem à cidade, não encontrou tempo para receber a amiga dos velhos tempos. Achou mais corajoso arquivar a promessa e esquecer o crime. Talvez não queira estimular manobras covardes dos que insistem em apurar a história tenebrosa de Celso Daniel, prefeito de Santo André também assassinado.

Sobram exemplos de mudanças que, contempladas com o olhar positivo recomendado pelo ministro Luiz Gushiken, são sintomas de coragem. Assim, chamar de ‘covardes’ os adversários da idéia de instituir o Conselho Nacional de Jornalismo foi apenas formular outra declaração atrevida. O homem já mostrou ter coragem para muito mais. Vem esbanjando audácia, colecionando ousadias.

E nem chegamos à metade do primeiro mandato. Haja paciência.’



Janio de Freitas

‘O bando de covardes’, copyright Folha de S. Paulo, 19/08/08

‘Outra vez aí? Você não viu o presidente do seu país dizer que os jornalistas são ‘um bando de covardes’? Você gasta dinheiro para ler esse bando e depois diz que o seu dinheiro é curto porque o Lula é que não tem palavra, até hoje não fez nada para cumprir a promessa de dobrar o poder de compra dos salários, que até diminui mês a mês.

Para não deixar a sabedoria presidencial sem um reparo -no jornalismo fica sempre bem um pequeno reparo junto com o aplauso, e vice-versa-, parece-me que o presidente poderia precisar melhor o alcance do adjetivo tão bem escolhido. Nem todos merecem ser atingidos pelo denuncismo de Lula. Covardes, bem entendido, são só essa maioria que não tem a coragem de se pôr a serviço do governo.

Ah, que energia, quantas horas valiosas, que elucubrações e que desnudamento o bando de covardes exige de Lula, de Dirceu, Gushiken, Palocci, do Meirelles de tão virtuosas transações.

Ou, perdulário comprador de jornal, não fosse pelo bando de covardes, por que você acha que Lula daria a Henrique Meirelles o título e os privilégios judiciais de ministro, por acaso, menos de 24 horas antes de desfechada pelo governo uma coleta, em âmbito nacional, de documentação sobre movimentadores ilegais de dólares? Alguns covardes sugerem que Lula não agiu só pela glória de ser o primeiro na história a elevar um banco à condição de ministério, já que à frente da entidade estará um ministro e não mais um presidente. Banco com status de ministério, aliás, convenhamos que fica muito bem no governo Lula.

À primeira vista, parece que o bando de covardes exige do governo apenas projetos de ‘controle da atividade de jornalismo’, da lei da mordaça contra procuradores e promotores, da proibição de informações jornalísticas por funcionários, e outros fascistismos assim notórios. Quem dera. O bando de covardes obriga o pessoal da Presidência a esmiuçar tudo. Com descobertas alarmantes.

Caso, por exemplo, você talvez nem saiba, de um tal art. 100 que o Congresso introduziu na Lei de Diretrizes Orçamentárias, normalizando o acesso parlamentar, hoje restrito, ao Siafi, que reúne os dados da administração financeira do governo. Acesso indispensável à fiscalização do Congresso sobre as contas e ações do governo, como exige o art. 71 da Constituição. Mas o bando de covardes gosta muito de descobrir, pelo exame das contas, realidades sombrias que o governo esconde. Logo, com a mesma ligeireza da medida provisória transformada em socorro urgente para Meirelles, Lula derrubou, pelo veto, o art. 100 da transparência que, por mais de 20 anos, o PT cobrava.

Como se vê por essas medidas, e por outras não relembradas, todas típicas de governo amedrontado, seria possível discutir quem, de fato, compõe um bando de covardes. Não vale a pena, porém. Todos sabem que mesmo os jornalistas incorretos jamais poderiam trair os leitores como, só para fazer uma comparação, é a traição de certos políticos à boa-fé dos eleitores, e até à própria biografia.’



João Mellão Neto

‘Aonde eles querem chegar?’, copyright O Estado de S. Paulo, 20/08/08

‘No cabeçalho do mais importante e influente jornal do mundo, The New York Times, há uma frase aparentemente simples – ‘All the news that’s fit to print’ -, que, em tradução livre, significa: ‘Todas as notícias que merecem ser publicadas.’ Parece despretensiosa. Não é. Milênios de História humana foram necessários para que ela pudesse ser insculpida. Representa a liberdade de expressão no seu sentido maior. Enquanto estiver lá, significa que aquele jornal publica tudo o que for relevante, sem censuras, pressões ou influências, de quem quer que seja, por mais poderoso que for.

Liberdade de expressão é um conceito relativamente recente na História Universal. Ela aparece, pela primeira vez, na Constituição dos Estados Unidos da América – promulgada em 1787-88, com sete artigos e dez emendas. A primeira delas reza que ‘o Congresso não legislará (…) cerceando a liberdade da palavra, ou de imprensa (…)’. Em nome dela, nunca o poder público, no território dos EUA, pôde jamais imiscuir-se no que é publicado.

O pensador inglês John Stuart Mill, pouco mais de meio século depois, em seu majestoso tratado On Liberty (Sobre a Liberdade), justificou o conceito: ‘Se toda a humanidade menos um fosse de uma opinião e apenas uma pessoa fosse de opinião contrária, mesmo assim a humanidade não estaria justificada em silenciar essa pessoa.’ E concluiu o raciocínio: ‘Não podemos nunca estar certos de que a opinião que estamos tentando sufocar seja uma opinião falsa e, mesmo que estivéssemos certos, sufocá-la seria ainda um mal.’

No capítulo Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, a Constituição brasileira, no inciso IV do artigo 5.º, declara, peremptoriamente, que ‘é livre a manifestação do pensamento’.

Por que a liberdade de expressão é tão reiteradamente defendida? Porque ela está sob constante ameaça. Para o Estado e os governantes, em geral, ela é um permanente estorvo. A todo instante são publicadas notícias e opiniões desfavoráveis e, como é da natureza de todos os governantes – de qualquer ideologia – se acreditarem certos, infalíveis e bem-intencionados, eles consideram as eventuais críticas e denúncias contra eles um sórdido e mesquinho complô de seus opositores. Se dependesse deles, a mídia só publicaria a versão oficial dos fatos.

Toda essa discussão vem a calhar porque o presidente Lula acaba de apresentar duas propostas de lei que, se aprovadas, representarão um grave golpe no sagrado direito de expressão. Uma delas é a que cria o Conselho Federal de Jornalismo. A outra trata de estabelecer a Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav).

As justificativas oficiais, como sempre, são cândidas. O famigerado conselho de jornalismo, por exemplo, seria apenas o atendimento a uma justa e antiga reivindicação da categoria. Seu objetivo seria promover os direitos e prerrogativas dos profissionais da área, jamais cerceá-los. Quanto à Ancinav, a idéia seria a de estabelecer uma política proativa de incentivo à pluralidade e à diversidade cultural.

Na prática, não é bem assim. No segundo caso, a ‘agência’ – controlando os recursos do setor – terá, na prática, poderes para dirigir e orientar que tipo de produtos, doravante, o nosso cinema e as estações de TV terão de criar. Já no primeiro caso, os resultados serão ainda piores. Segundo a proposta de lei, caberá ao Conselho Federal de Jornalismo a missão de ‘orientar, disciplinar e fiscalizar’ o exercício da profissão de jornalista, podendo até mesmo cassar o registro de profissionais que se comportem de maneira ‘pouco ética’. A quem cabe julgar o que é e o que não é ético? Ao conselho, é claro. E quem comporá o conselho? A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), uma instituição tão representativa da categoria que eu, com 20 anos de profissão, nunca antes dela ouvira falar. A direção da Fenaj, como era de esperar, é toda ela composta por – adivinhem quem? – militantes radicais do Partido dos Trabalhadores… Deu para entender o real objetivo da proposta?

Não há o que estranhar se levarmos em conta as origens do PT. Lá nos inícios dos anos 1980, os fundadores e primeiros membros do partido eram todos de extração marxista-leninista. Convivi com eles nos meus tempos de universidade. Era uma gente estranha, com um brilho fanático nos olhos, que não se misturava conosco – miseráveis burgueses – porque nos acreditavam uma classe em extinção. Como haviam lido meia dúzia de livros de esquerda, acreditavam ter o monopólio da sabedoria. O materialismo dialético explicava tudo, inclusive o porquê de nós outros sermos tão ‘alienados’. A História os levaria, inevitavelmente, ao poder. E, lá chegando, sua missão seria a de reconstruir a sociedade. O diálogo com eles era impossível. Afinal, se eles estavam certos, e tinham certeza disso, para que perder tempo em discussões?

Eu imaginava que, com a passagem dos anos, eles tivessem evoluído. Qual o quê! Muitos deles ainda continuam os mesmos: radicais, autoritários e profundamente descrentes dos ‘valores burgueses’ que alicerçam a democracia.

Foi esse tipo de gente que pôs na cabeça de Lula esse desatino de querer controlar, além do Estado, também a imprensa, a cultura e, ao final, toda a sociedade.

Dias atrás, li, perplexo, uma declaração de Lula de que foi ao Gabão para descobrir como é que um governante fica mais de 30 anos no poder… Deus nos acuda! João Mellão Neto é jornalista’