Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Beatriz Coelho Silva

‘O jornalista Paulo Francis foi um dos mais importantes de sua geração. De 1957, quando começou a escrever profissionalmente, até morrer, em 1997, comentou nossa cultura e nossa política de forma implacável e carinhosa, lida com prazer mesmo por quem lhe reprovava o estilo e as idéias. O editor-executivo do Estado, Daniel Piza, o conheceu de perto e se diz influenciado por ele, mas acredita que a nova geração que escreve e lê jornais não se lembra do mestre. Por isso, atendeu prontamente ao convite da editora Relume Dumará para escrever Paulo Francis – Brasil na Cabeça, 43.º título da coleção Perfis do Rio, em parceria com a Prefeitura, que terá noite de autógrafos hoje à noite, no Jóquei Clube, na abertura da Primavera de Livros.

‘Não quis contar sua vida, pois ele tinha dois livros autobiográficos, O Afeto que se Encerra e Trinta Anos esta Noite. Como eu havia organizado seu último título Waaal – O Dicionário da Corte, em 1996, pouco antes de ele morrer, achei que seria interessante voltar ao assunto, para apresentá-lo às novas gerações. Esses jovens não o leram. Só se lembram vagamente daquele senhor que falava esquisito na televisão, a partir dos anos 80’, conta Piza, que tem uma coluna cultural aos domingos no Estado. ‘Mesmo tendo vivido muitos anos no exterior, criticando o que aqui ocorria e previsto o caos em que vivemos hoje, ele pensava no País o tempo todo. Por isso o livro tem o subtítulo Brasil na Cabeça, ao mesmo tempo lembrando uma pancada e a idéia fixa.’

Paulo Francis era carioca, aristocrata e viveu intensamente os anos dourados no Rio de Janeiro. Só se interessou pelo Brasil em volta já maduro, e, desde então, escreveu para mudar a situação, fosse pelas revoluções de esquerda, fosse pela receita liberal, batendo nas duas e apanhando de ambas. Foi crítico feroz de teatro; depois, comentarista político, fundou o Pasquim com Millôr Fernandes, Ivan Lessa (seus grandes amigos) e outros e, no fim, escrevia sobre tudo duas vezes por semana e falava diariamente na Rede Globo, um momento de leveza na sisudez do noticiário noturno. ‘Esse é o Paulo Francis que admiro, o intelectual com grandes sacadas culturais, não o cronista leviano, que dava opiniões sem se inteirar dos assuntos’, confessa Piza. ‘Quis mostrar todas as suas faces, mesmo aquela da qual discordava, embora fôssemos amigos.’

O perfil que resulta no livro é o de um homem que misturou paixão e razão, nem sempre na dose ou hora certas, mas que se expôs sem medo. Que se arrependeu, algumas vezes, de ser ferino, mas não desistiu do estilo nem nos momentos em que foi mais criticado. O carinho e a admiração explícitos no livro não impedem que Piza mostre Paulo Francis em todos os seus ângulos, para compor um personagem que hoje faz falta à imprensa brasileira. ‘Ele vem de um jornalismo opiniático, mas juntava empatia, cultura e crítica ácida a um só tempo’, lembra Piza. ‘Atualmente temos cronistas que têm uma ou outra qualidade dele, mas nenhum que as reúna na mesma proporção. E o jornalismo impresso se ressente disso, pois só com esse estilo autoral, mas com capacidade de olhar em volta, será possível fazer frente à televisão e à internet.’’



Hugo Sukman

‘Um brilho forjado nas frustrações’, copyright O Globo, 18/09/04

Paulo Francis – Brasil na cabeça, de Daniel Piza. Relume Dumará/Rioarte, 120 pgs. R$ 26

Ao confessar que deve ‘o impulso para me tornar jornalista’ a Paulo Francis, e que por isso fará ‘aqui um esforço óbvio de distanciamento’, Daniel Piza dá apenas uma pálida idéia do que realiza nas cem páginas seguintes de ‘Paulo Francis – Brasil na cabeça’, que integra a coleção Perfis do Rio. Como um inimigo talvez jamais tivesse a coragem (e o amoroso interesse), o autor remonta a vida de Francis a partir das frustrações, dos ressentimentos e dos defeitos do personagem.

Segundo Piza, o jornalista teria ‘um estilo nascido dos escombros políticos’. Refere-se ao Francis do ‘Pasquim’, do pós-68: ‘O humor e a coloquialidade do texto, repleto de gírias, palavrões e citações nem sempre identificadas, lhe deram quase um novo estilo – o qual, apesar das mudanças ideológicas, persistiria até fevereiro de 1997’.

O exuberante polemista, que se tornaria ícone na televisão ao mandar comentários de Nova York a partir dos anos 80 e o jornalista mais discutido do Brasil em sua coluna de jornal – ao morrer, em 1997, sua coluna ‘Diário da corte’, que estreara na ‘Folha de S.Paulo’, era publicada pelo GLOBO e pelo ‘O Estado de S. Paulo’ – seria fruto sobretudo da desilusão política de 1964.

Expurgo interior das ilusões juvenis

Para comprovar sua teoria, Piza obsessivamente busca exemplos. A busca pode ocorrer em depoimentos algo nostálgicos do próprio Francis: ‘Entre 1955 e 64 houve um surto de intelectualismo no país que agora está agônico (…) Tínhamos, na época, uma visão do nosso potencial e um entusiasmo que contagiou de candangos a intelectuais’ (dizia no fim dos anos 60) ou ‘Ser jovem, de classe média, no mínimo, não de todo burro, não aleijado, no Brasil entre 1955 e 64 era, na mais conservadora hipótese, estar num subúrbio próximo de Canaã’ (no fim dos 70).

Mas a busca também pode estar na lenta descrição que faz do expurgo interior das ilusões juvenis a que Francis se submete durante mais de uma década, a dolorosa transformação do mundano intelectual carioca em cético articulista exilado em Nova York. ‘E seu engajamento emocional na ilusão de que o Brasil do início dos anos 60 fosse forjar uma nação grandiosa e única, bastando para isso certa organização partidária e intelectual, foi tal que a cacetada do regime militar atingiu não apenas sua existência profissional, mas também sua estabilidade psíquica. Essa auto-análise dolorosa duraria anos, até o expurgo ficcional-memorialístico do final da década de 70’.

O ‘surto memorialístico’, materializado nos dois romances autobiográficos, ‘Cabeça de papel’ e ‘Cabeça de negro’, revela outra das frustrações que ajudariam a forjar o grande jornalista. ‘Francis botou fé nos seus dois romances’, diz Piza. ‘Ser escritor, um Flaubert ou Tolstói, era seu sonho desde os 14 anos. Mas a ficção que exorbitou a partir dos 47 anos tinha outra feição. Tinha, como reconheceu, mais a ver com as idéias’.

Se os ainda que interessantes romances publicados de Francis são de fato mais especulativos que propriamente romanescos e servem para descrever a desilusão política e existencial do autor, revelam uma vocação frustrada de romancista. Suas tentativas posteriores – um thriller à Rubem Fonseca (seco e direto, sem debate de idéias) e uma ‘docu-ficção’ escrita em inglês sobre os dias seguintes ao suicídio de Getúlio – esbarraram em restrições de editores no Brasil e nos Estados Unidos.

Francis foi, na trajetória traçada por Piza, acumulando frustrações intelectuais: com a geração dos anos 60, a da contracultura, monopolizando (e diluindo) a rebeldia, quando a geração dele, a que se viu adulta na virada dos anos 40 para os 50, foi quem de fato abriu as portas da percepção com sexo e drogas livres; com o fato de ser canastrão como ator e incapaz de se tornar um diretor de teatro profissional; com a esquerda (brasileira ou não), incapaz de um projeto coerente de poder; com o Rio estimulante de sua juventude sendo lentamente embrutecido.

Ainda que dolorosas, as frustrações moldaram o Francis da maturidade. Como no samba-canção, ‘de fracasso em fracasso’ ele se tornou ‘um jornalista dos mais importantes da história brasileira’, como o qualifica Piza sem esconder os defeitos do seu personagem: ‘O maior defeito de Francis, enfim, era o exagero. Suas críticas caíam com freqüência no ataque pessoal. Mesmo que o leitor achasse engraçado, dar apelidos para os políticos não era equivalente a dar argumentos contra eles. E isso muitas vezes se convertia numa leviandade’.

Uma dessas leviandades – dizer, por exemplo, que todos os diretores da Petrobras eram corruptos com contas na Suíça, quando queria apenas chamá-los de incompetentes – resultou num imenso processo contra o jornalista em Nova York. Piza, como muitos de seus amigos, atribui tal processo como principal causa do problema cardíaco que levou Francis à morte aos 67 anos. O perfil de Piza, contudo, não se concentra propriamente nesse tipo de fato biográfico, e sim no processo que transformou o jovem intelectual trotskista e esperançoso da juventude no jornalista liberal e cético da maturidade.

Pouca paciência para checar as informações

Identificado totalmente com o personagem, de quem foi amigo, Piza até incorpora um dos defeitos que aponta em Francis, a ‘pouca paciência para checar informações’. Ao dizer, entre outros pequenos lapsos, que o cronista Antônio Maria escreveu no ‘Pasquim’ (fundado quatro anos após sua morte) e freqüentou o Antonio’s (restaurante aberto três anos depois), Piza enriqueceu o repertório dos ‘yamamotos’, sinônimo de erro bobo criado por Francis depois que anunciou a presença do almirante Yamamoto num evento em Nova York nos anos 70: o comandante do ataque japonês a Pearl Harbor morrera em 1943. Erros engraçados para desanuviar de tanta densidade intelectual.’



JORNAL NACIONAL…
Bia Abramo

‘Livro reescreve a história dos 35 anos do ‘JN’’, copyright Folha de S. Paulo, 18/09/04

‘De cara , é preciso problematizar um livro que se propõe a ‘fazer história’ e invoca, já no seu prefácio, uma fantasmagoria como ‘a pura verdade’.

Está lá, no prefácio de João Roberto Marinho, vice-presidente das Organizações Globo ao ‘Jornal Nacional: A Notícia Faz História’: ‘Quando o leitor virar a última página, esperamos que ele tenha a mesma certeza diária que tem ao terminar de assistir ao ‘Jornal Nacional’: a de que o que acabou de ler, goste-se ou não, é a pura verdade’.

É partindo dessa dupla premissa de que ambos, história e jornalismo, lidam com uma matéria-prima tão intangível quanto a verdade que o livro pretende reconstituir em detalhes exaustivos os 35 anos do telejornal e do Brasil que o assistia. A ambição, portanto, é mesmo aquela que o peso da palavra ‘verdade’ confere: a de estabelecer a versão irrefutável e definitiva, esclarecer os mal entendidos, responder às críticas. Trocando em miúdos, trata-se de mostrar como o ‘Jornal Nacional’ (goste-se ou não) transformou-se num dos principais veículos de informação do Brasil. Mas também quer dizer que a Globo anda empenhada em reescrever sua história, com tudo o que isso significa.

Da primeira tarefa, ‘Jornal Nacional: A Notícia Faz História’ até que se sai bem. Os responsáveis pela empreitada, o projeto Memória Globo, esbanjam cifras superlativas na elaboração do livro: a pesquisa consumiu cinco anos, foram assistidas mais de 2.000 fitas e realizadas 200 entrevistas etc. etc. A minúcia com que são lembrados os fatos, personagens, circunstâncias que deram forma e volume ao telejornalismo brasileiro constituem, de fato, material valioso para a pesquisa em televisão.

Se a pesquisa foi determinada pelo detalhe, tanto a edição quanto a redação final obedeceram à ambição de dar conta dos mais diversos aspectos envolvidos na confecção de um telejornal. Dos equipamentos ao ambiente político, da formação das equipes à criatividade em contornar problemas técnicos, a preocupação foi de tudo registrar e tudo narrar de forma organizada e coerente. Nesse sentido, o proverbial padrão de qualidade, que, vira e mexe anda deixando de dar o ar de sua graça na programação, aqui imprime sua marca. Quase nada nem ninguém foi deixado de lado.

Seria, em suma, um livro institucional ao mesmo tempo como tantos, mas também como poucos. O apuro, rigor e investimento despendidos em sua elaboração o singularizam como um esforço diferenciado, mas o tom chapa-branca e o risco da parcialidade estão na base de qualquer história de empresa ou instituição que é feita por encomenda. Só que a Globo não é uma empresa qualquer e o ‘Jornal Nacional’ é, menos ainda, um telejornal qualquer.

O movimento de reescrever a história sob a égide da pureza da verdade só pode produzir um simulacro de história. Nesse sentido, o rigor da pesquisa torna-se tímido diante do desejo de interpretação. E a interpretação que emana de ‘Jornal Nacional: A Notícia Faz História’ sugere que o telejornal da Globo a) não esteve do lado do regime durante ‘os anos de chumbo’ (como eles mesmos caracterizam o período pós-68); b) que sempre praticou um jornalismo isento e imparcial, mesmo quando seus interesses estavam em jogo; e c) que, nos anos 90, não se dobrou ao sensacionalismo e barateou a notícia diante da concorrência mais popularesca. Ou seja, de que seu passado é impoluto. Puro?

Os mecanismos revisionistas aos quais o livro recorre são vários. Um fumo de autocrítica, por exemplo, perpassa todo o trecho sobre a campanha das Diretas. A Rede Globo entende que, fora a maledicência de uns e outros, nunca nomeados, o fato de o ‘Jornal Nacional’ não ter coberto a campanha das Diretas deveu-se a um ‘desencontro e a uma mistificação’: ‘O desencontro entre o desejo da população e a postura que a TV Globo adotou no período inicial dos comícios. E a mistificação, produzida por alguns, ao transformar a mentira numa verdade estabelecida. (…) O desencontro se deu quando a Globo, condicionada pelas circunstâncias históricas da época e por um jogo de pressões políticas muito forte, decidiu manter a cobertura, ao menos inicialmente, num tom não-emocional, eqüidistante, comedido’. As injunções históricas, portanto, justificam qualquer coisa, inclusive aquilo que está, no livro, bem explícito: as orientações para baixar o tom da campanha, a despolitização da notícia sobre o comício da Sé (dizia o texto de Ernesto Paglia: ‘Não foi apenas uma manifestação política’).

Já no episódio da edição do debate de 1989 entre os candidatos à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor, a tática é de desorientação pura e simples. Os depoimentos dos principais envolvidos se contradizem francamente e não, como o texto que os antecede sugere, são versões ‘talvez sem coincidência entre elas’. A não-coincidência, caridosamente, é imputada à distância temporal, mas como, então, confiar em quaisquer outras informações do livro, algumas delas sobre acontecimentos ainda mais distantes no tempo?

No entanto, emerge uma história mais ou menos oficial desse disse-que-disse: a de que os responsáveis pelo desacerto seriam o então diretor de telejornais Alberico Sousa Cruz e o editor de Política Ronald de Carvalho, que, à revelia da família Marinho e da direção da Central Globo de Jornalismo, teriam reeditado o debate. Mas o que, então, explica que Alberico e Ronald tenham subido na hierarquia da empresa menos de quatro meses mais tarde?

Se a tarefa de reescrever a história tem lá seus percalços, o que dirá a de contar a verdade, sobretudo quando se supõe que ela exista em estado de pureza para além dos fatos?

Jornal Nacional: A Notícia Faz História, Autoria: Memória Globo, Editora: Jorge Zahar, Quanto: R$ 29,50 (408 páginas)’