Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bia Barbosa

‘Em artigo publicado na Folha de S. Paulo de 2 de setembro, o vice-presidente das Organizações Globo, o grupo midiático mais influente do país, afirma que o Brasil tem muitos problemas, mas que a televisão brasileira certamente não é um deles. A frase de João Roberto Marinho é metonímica da postura adotada recentemente pelos principais veículos de comunicação do país contra qualquer tipo de controle sobre o que é publicado em suas páginas ou transmitido em seus programas. Invertendo esta lógica e partindo do princípio de que a comunicação deve ser entendida como um bem público, de interesse da sociedade e essencial para a consolidação da democracia – e que portanto precisa ser regulada de alguma forma – será lançado nesta quarta-feira (22) o Observatório Brasileiro da Mídia.

A organização, que se propõe a fazer um monitoramento público dos veículos de comunicação brasileiros, denunciando manipulações políticas e erros de cobertura, será o comitê nacional do Media Watch Global, uma ONG (organização não governamental) idealizada em 2002, durante o II Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, para realizar um trabalho de permanente crítica da imprensa a partir da visão de jornalistas, intelectuais e da sociedade civil. Sediada na França, a entidade incentiva a formação de organizações nacionais com o mesmo objetivo.

‘Durante muito tempo a informação foi colocada como um quarto poder, que deveria defender os cidadãos dos abusos dos outros poderes. Mas a globalização econômica criou conglomerados midiáticos de tal porte que o objetivo de informar foi diluído entre outros interesses’, declarou na época o jornalista Ignacio Ramonet, diretor do Le Monde Diplomatique e presidente do Media Watch Global. ‘Daí que é preciso fortalecer um quinto poder, que seria representado pela sociedade civil e deveria contrabalançar os outros poderes. É nesse contexto que o Media Watch deve ser pensado’, explicou.

Naquela ocasião, em reunião da qual participaram representantes de veículos de nove países, nasceu o embrião do Observatório Brasileiro da Mídia. O projeto, no entanto, não conseguiu decolar. Faltaram recursos humanos e financeiros. O falecimento de Jair Borin, professor titular de jornalismo da Universidade de São Paulo, em abril de 2003, um dos fundadores da entidade, também foi um fator de paralisação das atividades. Agora, uma parceria do Media Watch Global com o Núcleo de Jornalismo Comparado da ECA/USP e o Instituto Observatório Social dará o pontapé para a consolidação do Observatório Brasileiro da Mídia.

‘A criação do Observatório ocorre no momento em que a discussão sobre a liberdade de imprensa volta à pauta e conseqüentemente, o debate sobre o papel da imprensa na formação da opinião da sociedade. Não podemos perder de vista que são os ‘donos’ da voz, das imagens e das letras – os empresários da comunicação -, os promotores do jornalismo que expõe, classifica e determina o lado que o leitor/espectador deve assumir. Neste contexto, é fundamental que haja um acompanhamento crítico da atuação destes meios’, acredita Maria José Coelho, coordenadora de Comunicação do Instituto Observatório Social, uma iniciativa da CUT Brasil em cooperação com o Cedec (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea), o Dieese (Departamento Intersindical de Estudos Sócio-Econômicos) e Unitrabalho (Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho) que analisa e pesquisa o comportamento de empresas em relação aos direitos fundamentais da cidadania. As demais entidades da sociedade civil que quiserem ingressar no Observatório Brasileiro de Mídia têm aproximadamente um mês para manifestarem seu interesse. Nos dias 23 e 24 de outubro a organização será juridicamente fundada.

‘Apesar disso, o Observatório já está operando, porque o momento é imperdível’, explica o advogado Joaquim Ernesto Palhares, vice-presidente do Media Watch Global e diretor da Agência Carta Maior. ‘Momentos políticos como o que estamos vivendo, com a aproximação das eleições, exigem a participação da população da cobertura da mídia. É nessas horas que um observatório como este tem mais possibilidade de arregimentar forças. Foi assim quando levamos o Media Watch para a Venezuela’, conta.

Em maio de 2002, pouco tempo após o golpe contra o presidente Hugo Chávez, foi criado o Observatório Global de los Medios. Durante a tentativa de golpe, os principais veículos de comunicação do país, tanto dos meios eletrônicos quanto impressos, adotaram um claro posicionamento favorável aos golpistas, cobrindo com destaque a rápida ascensão do líder empresarial Pedro Carmona. Analistas venezuelanos declararam que os grupos de comunicação participaram ativamente do movimento. Quando a revolta popular exigiu o retorno de Chávez ao poder, as principais televisões decidiram não mostrar imagens da mobilização, alegando que não queriam incentivar uma possível guerra civil.

A cobertura das eleições municipais

O Observatório Brasileiro da Mídia tem como sua primeira iniciativa a cobertura da imprensa sobre a eleição municipal de São Paulo. Nesta quarta-feira, durante o lançamento da organização, será divulgado o resultado de uma pesquisa sobre o conteúdo editorial de cinco jornais da capital paulista – Agora São Paulo, Diário de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde.

‘Este primeiro relatório demonstra uma tendência que, em primeira análise, peca pela parcialidade apresentada, claramente prejudicial a alguns candidatos. Esta preocupação deve ultrapassar os limites eleitorais para ampliar-se numa análise mais conceitual do papel da imprensa no cenário político brasileiro’, aponta Maria José. ‘Certamente nestes casos a maior prejudicada com a parcialidade da mídia sempre é a sociedade, justamente pela falta de acesso à informação de qualidade e, conseqüentemente, pela falta de condições de posicionar-se em relação a temas de seu interesse. Transparência, clareza, precisão, objetividade e imparcialidade são requisitos básicos de uma cobertura jornalística. Um instrumento que possibilite a crítica da imprensa deve colaborar para que estes princípios fundamentais do jornalismo devam ser respeitados’, diz.

A partir de agora, a organização divulgará semanalmente uma análise da cobertura das eleições feitas por estes veículos que já integraram a primeira pesquisa, que poderá ser expandida para outros veículos e para a TV, além de incluir outros municípios, se houver recursos disponíveis. Passadas as eleições, os membros do Observatório, baseados no momento político do país, decidirão os temas das futuras análises. Um dos temas já definidos será o acompanhamento da cobertura da mídia sobre o V Fórum Social Mundial, que acontece em Porto Alegre em janeiro do ano que vem.

A expectativa do Observatório Brasileiro da Mídia é a de que, a partir dos resultados das pesquisas, a imprensa faça uma análise de sua cobertura e responda à sociedade sobre sua postura jornalística. A organização faz questão de deixar claro que não é contra ou hostil aos meios de comunicação e às empresas. Mas, sim, um movimento voltado para aperfeiçoar a qualidade da informação na sociedade. ‘Ninguém quer que esses veículos deixem de ser lidos. Mas se trata de fazer jornalismo. Esperamos que eles não ignorem o reclamo da cidadania’, diz o vice-presidente do Media Watch Global.

Pluralidade

O projeto do Observatório Brasileiro de Mídia se coloca entre as várias iniciativas de observação crítica do papel da mídia, a exemplo do Doxa – laboratório de análise da comunicação da Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) – e de programas como o Observatório da Imprensa, da TV Cultura. A idéia é que, cada vez mais, a sociedade se conscientize de como é essencial ter uma visão questionadora sobre o que é publicado ou transmitido pelos veículos de comunicação.

‘A fiscalização da imprensa tem que ser diversa. Não tem que existir uma, duas ou três entidades fazendo isso. Tem que existir mil, tendo em vista a diversidade e a importância da mídia. Foi esta a decisão do Fórum Social Mundial’, afirma Joaquim Palhares.

Para saber mais sobre o Observatório Brasileiro da Mídia, visite a página www.mediawatchglobal.org.br.

Leia abaixo a Carta de Princípios do Media Watch Global:

‘Nós, participantes do II Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, no Brasil, em 2002, e os signatários deste documento, conclamamos cidadãos e entidades da sociedade civil de todo o mundo a associarem-se numa rede internacional capaz de dar poder aos cidadãos para fiscalizar a mídia e lutar por um jornalismo ético, em âmbito local, nacional e internacional. A informação completa e acurada é essencial para o funcionamento da democracia. Numa era de reestruturação global dos meios de comunicação em escala sem precedentes, com a propriedade da media concentrando-se em poucas mãos, o acompanhamento crítico da mídia torna-se um elemento central da democracia.

A rede de organizações que pretendemos criar será de natureza global, mas poderá variar de país para país, sendo constituída por organizações não-governamentais de cidadãos, acadêmicos, profissionais ou por associações de jornalistas. As entidades afiliadas examinarão o noticiário, apontando distorções da ética e da verdade, opondo-se à censura e não usando nenhum método capaz de contribuir para restringir a liberdade de informação. Essas entidades vão se solidarizar com jornalistas que trabalhem em empresas hostis ao jornalismo independente e que possam sofrer pressões para, antieticamente, distorcer ou censurar o noticiário em benefício dos donos das empresas ou dos seus anunciantes. Será dada atenção especial à cobertura de minorias raciais, étnicas e nacionais, e a grupos que tenham sido vítimas de discriminação, para garantir que a mídia dê espaço adequado aos que historicamente não têm tido voz.

Além de examinar o conteúdo do noticiário, essas organizações também vão analisar as causas estruturais da cobertura inadequada, distorcida ou censurada pelo poder econômico ou por qualquer outra causa.’’

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‘Observatório Brasileiro de Mídia é lançado em São Paulo’, copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 22/09/04

‘Foi lançado na tarde desta quarta-feira (22), na Universidade de São Paulo, o Observatório Brasileiro de Mídia, uma parceria do Núcleo de Jornalismo Comparado da Escola de Comunicações e Artes da USP, do Observatório Social e do Media Watch Global. A iniciativa, que nasceu em 2002 com o objetivo de fazer um acompanhamento crítico das coberturas da imprensa, divulgou agora sua primeira pesquisa, acerca das eleições municipais em São Paulo (leia matérias ‘Observatório Brasileiro fará monitoramento da mídia’ e ‘Mídia amplia crítica à Prefeitura e atinge Marta por tabela’ ).

Estiveram presentes no evento jornalistas, professores, pesquisadores, empresários e estudantes de comunicação. Para Sérgio Miletto, um dos coordenadores da Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania (Cives), o monitoramento público da mídia é essencial para trazer o jornalismo de volta para a sua função cidadã. ‘Iniciativas como esta são importantes para construirmos uma sociedade mais justa, mais bem informada, para que o cidadão possa fazer sua escolha sem influência dos grandes grupos que controlam a mídia. Muitas vezes acontecem desastres por determinadas informações publicadas e fica por isso mesmo. Esta pesquisa é importante para que outros profissionais, como os antropólogos, façam uma análise dos valores que a mídia imprime na sociedade. Em nome da liberdade de imprensa, da liberdade de opinião, o impacto do que é publicado nunca é medido’, lembra Miletto.

A Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que participou do lançamento, também apóia o controle público da imprensa. ‘Isso não tem nada a ver com censura ou com controle dos jornais – que já são controlados por grandes empresas, pelo sistema capitalista. O que o Observatório faz é analisar o jornalismo para ajudar na conscientização da sociedade. Na medida em que isso acontecer, a própria sociedade vai poder se organizar para separar o joio do trigo’, acredita o jornalista Jesus Antunes, presidente do Conselho Fiscal da ABI.

A equipe de pesquisadores envolvida no projeto publicará mais uma análise da cobertura da grande imprensa sobre as eleições municipais de São Paulo no dia 1 de outubro. Para o segundo turno, pelo menos duas outras análises devem ser divulgadas até 31 de outubro. Outros temas que devem passar pelo monitoramento do Observatório até o final do ano são a cobertura que a imprensa brasileira faz das eleições norte-americanas e da guerra no Iraque. Em janeiro, será feito o acompanhamento sobre o V Fórum Social Mundial.

‘A compreensão dos jornais tem sido incessante nas pesquisas da ECA. O que está acontecendo hoje aqui é um desdobramento de alguns sonhos e a concretização de ideais pelos quais batalhamos durante muito tempo. A escola se insere como pioneira na área de pesquisa da comunicação no país e mantém este pioneirismo’, declarou o professor José Luiz Proença, coordenador do Núcleo de Jornalismo Comparado da ECA-USP.

A idéia é que a metodologia aplicada nos estudos do Observatório Brasileiro de Mídia seja disponibilizada para todas as 320 escolas de comunicação social do Brasil que tenham interesse. ‘Gostaríamos que todas fossem parceiras nossas, para que este monitoramento atingisse todos os jornais do país. Como um trabalho de responsabilidade social, queremos que todas as universidades tenham acesso a isso’, disse o coordenador da pesquisa divulgada nesta quarta, José Coelho Sobrinho, diretor do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP.

Para saber mais sobre o Observatório Brasileiro de Mídia, visite a página www.mediawatchglobal.org.br.’



Maurício Hashizume

‘Mídia amplia crítica à Prefeitura e atinge Marta ‘por tabela’’, copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 22/09/04

‘Só um ‘concorrente’ às eleições municipais de São Paulo recebe mais ataques, em termos de porcentagem de textos jornalísticas com conotação negativa publicadas com maior destaque, que a candidata à reeleição Marta Suplicy (PT): a ‘sombra’ dela mesma – a prefeita Marta Suplicy.

A constatação é da pesquisa realizada pelo Observatório Brasileiro da Mídia (leia matéria ‘Observatório Brasileiro fará monitoramento da mídia’) sobre as coberturas que os cinco principais diários paulistas – Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, Diário de S. Paulo, Agora, Jornal da Tarde – dedicaram durante uma semana inteira há menos de 15 dias do primeiro turno.

A novidade do levantamento é a adoção de mais um critério para a aferição qualitativa das matérias que circularam sobre as eleições. Além da tradicional classificação entre as categorias positiva, neutra e negativa, o trabalho traz uma escala de ‘morfômetro’. O recurso permite que seja atribuída uma nota de 2 a 10 a cada matéria, de acordo com sua localização na página e com os elementos gráficos (como foto e outros recursos gráficos, como trechos em destaque).

Assim como nas pesquisas que vem sendo realizadas pelo Laboratório de Pesquisas em Comunicação Política e Opinião Pública (Doxa) do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), além dos candidatos propriamente ditos, a análise do Observatório Brasileiro de Mídia incluiu uma categoria especial para as matérias que fazem referência – direta ou indiretamente – apenas à administração de Marta em São Paulo. De acordo com exemplo do jornalista Carlos Manoel Carolino, que coordenou a pesquisa, o critério utilizado foi o seguinte: a partir de uma reportagem sobre a dificuldade na reparação de buracos no asfalto do município, foi gerado automaticamente um registro para a Marta ‘prefeita’; como a matéria tende a retirar votos, mesmo que não houvesse citação, ela acabava sendo somada ao grupo dos textos negativos.

Na comparação da orientação do morfômetro com os registros por candidato (ou seja, na relação entre a porcentagem de matérias com determinadas características com o destaque dado pelos jornais), a ‘prefeita Marta’ obteve 80% de referências negativas. Em segundo lugar, aparece a ‘candidata Marta’ com 76% de matérias desfavoráveis. Na seqüência, vem Paulo Maluf (PP), com 57,5%, Luiza Erundina (PSB), com 22%, e José Serra, com apenas 15,6% de matérias depreciativas.

‘Nosso objetivo com a pesquisa não foi apontar qual jornal prejudica determinado candidato. Nós simplesmente colocamos ‘os pratos na mesa’. A interpretação dos dados fica por conta do analista que quiser ‘se servir’ deles’, explicou Carolino.

Em números absolutos de matérias negativas, a ‘candidata Marta’ é campeã. Foram 181 textos com essa conotação. Para se ter uma idéia, o segundo colocado neste quesito – Paulo Maluf – foi ‘lembrado’ apenas 68 vezes pelos jornais. Depois, vieram a ‘prefeita Marta’ (64 citações), Serra (46) e Erundina (23).

Picos por cada jornal

Quem alcançou o maior índice de ‘rejeição’ por parte de uma única publicação foi a ‘Marta candidata’, no Jornal da Tarde (JT). Simplesmente 68% das matérias sobre a aspirante à reeleição foram negativas. A ‘Marta Prefeita’ foi alvo de ataques em 65,2% dos textos publicados na Folha e no Agora, os dois matitutinos da família Frias, e em 64,4% do que circulou no Estadão.

Em termos de ‘bom cartaz’, no entanto, nenhum candidato chega próximo de Serra para o Estadão. De todas as matérias que foram publicadas sobre o ex-ministro tucano nas páginas da tradicional publicação paulista, 64% foram positivas. Serra só mereceu 20% de referências neutras e somente 16% de citações negativas no jornal dos Mesquita.

Veja mais detalhes sobre a pesquisa – inclusive os gráficos – na página do Media Watch Global.’



Fernando Gabeira

‘Todo poder ao Photoshop’, copyright Folha de S. Paulo, 25/09/04

‘Eram quase 9h da noite numa pousada de Mateiros, no Tocantins. O dia de viagem no Jalapão fora difícil por causa dos solavancos e da poeira da estrada. Mesmo assim, sentei para ler antes de dormir. ‘O Livreiro de Kabul’, da jornalista Asne Seierstad. É um relato do cotidiano de Kabul, centrado na família do livreiro Sultan Khan.

O cansaço me fez adormecer em torno da página 90, em que a autora reproduzia as principais leis dos talebans. Acordei com um jingle de propaganda eleitoral. A pousada estava ao lado da sede do PRTB. O jingle nos pedia voto para Gumercino.

Acordei um pouco contrariado. Tinha viajado tanto para fugir da campanha eleitoral e descobria que, no interior do país, ela era muito mais intensa. Gumercino talvez tivesse um D no nome. Mas o escrivão comeu. Cartórios no Brasil costumam engolir letras. Há alguns que cospem. Mas o de Gumercino engoliu.

Se estivéssemos sob controle dos talebans, o PRTB e Gumercino seriam presos. O artigo 2º do decreto anunciado na rádio sharia. Por alguns minutos, cheguei a desejar que a região de Mateiros fosse incluída no decreto de 1996. Recuei horrorizado porque descobri que também eu estaria preso. O artigo 8º proibia a tomada de fotos e eu passaria grande parte do meu tempo produzindo imagens do Tocantins. Até mesmo a mulher que vi lavando roupa no rio, ao entrar na cidade, estaria condenada pelo artigo 12º, que proíbe isso expressamente.

Comecei então a tolerar o jingle do Gumercino. Percebi que seus atores dominavam bem a música sertaneja. Percebi que sua qualidade não era inferior a dos das metrópoles. Lembrei-me dos inúmeros trios elétricos que encontrei pelo caminho. Quase todos com jingles agradáveis, se ouvidos uma só vez.

De modo geral, isso não é possível. No hotel Serra Geral, em Natividade, o dono do trio elétrico hospedou-se ao meu lado. Natividade ficava a dois quilômetros. Mesmo assim, ele chegava e saía com o som a toda altura. Olhei pela janela e vi que quase todos os partidos, do PP ao PT, apoiavam o candidato do trio elétrico. Por que tocar música em dois quilômetros desertos de estrada?

Cheguei à conclusão de que estava diante da fragilidade profissional atribuída aos brasileiros: traficante cheira, puta goza e dono de trio elétrico curte jingles eleitorais numa estrada deserta.

O que me impressionou, desde a saída de Palmas, não foram os jingles, mas as fotos dos candidatos. São todos jovens, sorridentes, com um saudável tom de pele. Percebi como alguns instrumentos são onipresentes no Brasil. Um deles é o Photoshop. Submeter sua foto a um tratamento no Photoshop é tão banal como fazer registro da candidatura no TRE.

Eu, que já tinha uma pergunta feita, em caso de vida depois da morte, vou acrescentar mais uma à minha curiosidade no além. Até essa viagem, tudo o que queria saber é para onde vão, após a morte, as canetas, as chaves e os óculos que a gente perde ao longo da passagem pela Terra.

Agora quero saber para onde vão as rugas, pés-de-galinha e manchas que os marqueteiros escondem na propaganda eleitoral.

Errei ao supor que as campanhas no interior não são intensas. Cidades pequenas vivem do fundo de municípios. A batalha eleitoral é também em torno da grande fonte de emprego, que é a prefeitura.

Única diferença: não há programa eleitoral gratuito.

Amigos que assistem ao programa disseram que pode ser dividido em duas partes nas grandes cidades. A primeira é Neverlândia: uns candidatos que você não acredita que existam na vida real. A segunda é a Umseteumlândia, aqueles que claramente estão querendo melhorar de vida.

Rompi com meu candidato a vereador antes da partida. Ele é da Neverlândia e nada no Flamengo. Pediu meu voto delicadamente. Lembrei-me que ele só nada de costas, assim mesmo com uma lentidão que assombra as crianças na beira da piscina. Disse-lhe que só votaria nele se adotasse o slogan: ‘Nadando de costas pelo Brasil’. Ele achou que era sacanagem. Tentei uma negociação: nadando de costas pelo município? Sem acordo.

No dia seguinte, na cachoeira da Formiga, vi um senhor de chapéu. Quando fazia sua foto, o visor mostrava, um pouco acima da cabeça, um cartaz que dizia Martins de novo. Martins é o prefeito que ganhou uma ambulância e foi preso com ela num bar, no dia mesmo em que a retirou.

Não ouvi nenhum jingle de Martins na noite anterior. Digo isso a seu favor. Como diria diante do espelho ao fazer a barba matinal: se valesse o artigo 3º do taleban, seria preso até que minha barba tivesse o comprimento de um punho fechado.

Com as fotos proibidas, barba inexistente e cabelo de estilo ocidental, seria enquadrado em vários artigos do código taleban. Só escaparia talvez do que proíbe tocar bateria.

Deveria agradecer ao nosso regime e pedir desculpas ao dono do trio elétrico pelos palavrões que gritei na escuridão da noite. Afinal, ninguém é perfeito: todo poder ao Photoshop.’