‘O presidente George W. Bush será reeleito em outubro nos Estados Unidos? Se depender do cineasta Michael Moore, Bush filho não ficará na Casa Branca agora. E nem retornará a ela nunca mais.
Para isso, o diretor conta com uma poderosa arma: seu novo filme, Fahrenheit 11/9, que chega aos cinemas brasileiros nessa sexta-feira, 30 de julho. O documentário mais bem sucedido da história do cinema vem conquistando prêmios e batendo recordes de públicos por onde passa.
O longa joga o espectador em um emaranhado de informações tão surreais que dificilmente alguém conseguirá ignorar uma sensação de ‘como isso é possível e ninguém percebeu?’
No filme, Moore questiona o processo eleitoral um tanto quanto duvidoso que levou Bush ao poder e faz um panorama da sua gestão após os atentados de 11 de setembro, revelando dados e conexões no mínimo perturbadores. Ou não é de se estranhar o fato de apenas aviões que levavam integrantes da família real saudita e parentes de Osama Bin Laden terem tido autorização para deixar o país nos dias imediatamente posteriores aos atentados? Ou não é curioso que a família Bush tenha estreitas ligações comerciais com países árabes? Ou não é surpreendente ver o chefe de Estado da mais forte potência mundial sentado, sem reação, em uma escola primária, por longos sete minutos, após ser informado de uma das maiores tragédias contemporâneas?
Mas não é só isso.
Moore aponta também como manter uma nação sob controle sob o estigma do medo e critica as incoerências e exageros do Patriot Act, que suprime diversos direitos civis básicos com vistas a conter eventual atitude terrorista, editado logo após os atentados.
Como uma lei dessas foi aprovada na chamada ‘Terra da Liberdade’? Parece mentira, mas, a julgar pelos congressitas entrevistas pelo diretor, ninguém leu o que estava sendo votado. Desconcertante, então, Moore sai de trás das câmeras e vai ele próprio ler o ato em frente ao Congresso e pedir que os congressistas enviem seus próprios filhos para a guerra travada no Iraque.
A partir daí, Moore assume um discurso pacifista e apresenta imagens da guerra que ninguém exibiu. Corpos, dor e sofrimento. E também depoimentos de jovens soldados norte-americanos e das famílias que aguardam seu retorno.
E talvez aqui seja o ponto que Moore de alguma forma vacila enquanto cineasta em nome da militância. Há um apelo sentimental que não combina com o todo geral da película. A sensação é que na tentativa de seduzir o espectador pelo discurso anti-guerra o diretor acaba perdendo o foco. Acaba deixando o caldo esfriar. Desde que o mundo é mundo, todas as guerras são igualmente injustas e produzem carnificinas lamentáveis. Ao seguir esse caminho, Moore perde a chance de fazer seu melhor filme.
Poderia ter ido buscar analistas sobre a história da política externa norte-americana. Poderia ter ouvido algumas avaliações sobre a conjuntura mundial. Poderia ter dado um panorama mais amplo dos atores políticos que conduzem o Império norte-americano rumo à guerra. Poderia, mas, não fez.
Mas, nada disso importa. Com Fahrenheit 11/9, Moore reafirma-se com um dos mais corajosos e inteligentes cineastas de sua geração, abusando do sarcasmo para expor feridas e ocupando um espaço deixado por um jornalismo que há muito deixou de ser investigativo.
E prova definitivamente que o público quer mais do que tiroteios, catástrofes, naves espaciais, pastelões e histórias de amor melosas. A julgar pelo sucesso do filme, o espectador anda buscando a verdade e nada mais.’
Ricardo Calil
‘Michael Moore mente por nós’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 30/07/04
‘Para os muitos espectadores que consideram Michael Moore um herói dos tempos modernos, ‘Fahrenheit 11 de Setembro’ não será uma decepção. O novo filme do cineasta, que estréia hoje no Brasil, traz de volta as principais marcas de seu estilo: a denúncia política e social no conteúdo, a desconstrução pop no formato e o humor sarcástico a embalar o pacote.
Aos poucos que vêem Moore como um impostor de talento (entre os quais este crítico se inclui), aí vai uma boa notícia: ‘Fahrenheit 11 de Setembro’ continua a saga de simplificações, maniqueísmos e manipulações do cineasta, mas em doses bem menores do que em ‘Tiros em Columbine’ e seus filmes anteriores.
Contribui muito para isso o fato de Moore ter definido bem o seu alvo. Se em ‘Tiros em Columbine’ o cineasta atirava para todos os lados (com o perdão do trocadilho), aqui ele mira com precisão no governo Bush. Não poderia haver um alvo maior, mais óbvio e mais importante hoje. Assim ficou fácil acertar. Ainda mais com o próprio Bush fornecendo a munição.
Moore soube entender e apresentar o presidente americano como um grande personagem cômico, apesar de mostrar todas as tragédias que ele causa. É como se o protagonista do documentário fosse Ronald Golias no papel do homem mais poderoso do mundo. Em algumas seqüências, parece que ele entrará na Casa Branca gritando: ‘Ô Cride! Fala pra mãe!’
Sabiamente, Moore deixa Bush e seus comparsas brilharem em cena e se contenta com o papel de coadjuvante. Ele compreendeu que sua presença na tela seria menos necessária agora que se tornou uma onipresença na mídia. Mas, ainda que apareça menos, a figura de Moore é o maior trunfo e o maior problema do filme, como de toda a sua obra.
Mais importante do que discernir as acusações verdadeiras das manipulações grosseiras em ‘Fahrenheit 11 de Setembro’ (jornais e revistas vêm se dedicando exaustivamente ao assunto), é tentar entender por que Moore se tornou um fenômeno pop ainda maior que seus filmes, por que ele é amado ou odiado com tamanha intensidade.
A meu ver, o segredo do sucesso de Moore está na fantasia do Americano Médio que ele veste com tanto gosto e competência, formada por seu boné de beisebol, sua obesidade gritante e seu patriotismo de gibi. Ao adotar essa imagem, Moore se reveste do poder de apontar os podres da América sem ser acusado de anti-americanismo.
A cena fundamental de ‘Fahrenheit 11 de Setembro’ é uma conversa entre Moore e uma mulher que odeia Bush por ter perdido o filho na Guerra do Iraque. ‘Nosso tipo de família é a espinha dorsal dos Estados Unidos’, diz a mulher. ‘É um grande país, não é?’, responde Moore. Nessa cena, ele se credencia como alguém que pode denunciar o demente que os americanos colocaram na Casa Branca e ao mesmo tempo afirmar a grandeza dos Estados Unidos, sem aparentemente cair em contradição.
Para os americanos, o cineasta pode falar mal do governo porque ‘é um dos nós’. Eles jamais aceitariam um estrangeiro fazendo o mesmo. No resto do mundo, seu anti-bushismo chama a atenção porque ele ‘é um deles’. Se um não-americano falasse as mesmas coisas, não haveria o mesmo impacto.
Para comprovar essa tese, basta fazer um pequeno exercício de imaginação: se ‘Fahrenheit 11 de Setembro’ tivesse sido dirigido por um cineasta de outro país (um brasileiro ou um francês, por exemplo) ou mesmo por um americano menos ‘médio’ (talvez um jornalista respeitado ou um documentarista sério), você acredita que esse mesmo filme ganharia a Palma de Ouro em Cannes ou se tornaria o documentário de maior bilheteria da história dos Estados Unidos?
Embora seja um exercício hipotético (o filme só se tornou o que é porque foi dirigido por Moore), parece óbvio que a resposta seria ‘não’. Se tirarmos a presença de Moore de seus filmes, sobra muito pouco: fatos distorcidos apresentados como certezas inabaláveis; acusações que a maioria das pessoas já conhece, apresentadas de maneira mal intencionada, mas sempre divertida.
Em ‘Fahrenheit 11 de Setembro’, Moore pelo menos teve a dignidade de assumir seu trabalho como um panfleto, um pasquim cinematográfico. Ele mesmo já declarou que seu objetivo é tirar George W. Bush da Casa Branca, o que não deixa de ser uma tentativa nobre. Se aceitarmos a produção como um filme de guerrilha, fica mais fácil encarar a verdade como uma vítima do combate.
Mais fácil, porém não menos condenável. No documentário, como no jornalismo, a verdade é uma ilusão. Mas uma ilusão que deve ser enfrentada, não evitada – como Moore faz o tempo todo. O mundo de Moore é feito de exclamações, não de interrogações; de interjeições, não de reticências. Os bons e os maus são tão fáceis de identificar quanto na ‘Paixão de Cristo’, de Mel Gibson.
Seus filmes nos confortam porque trazem um típico americano reforçando nossas idéias preconcebidas sobre os Estados Unidos em geral e sobre o governo Bush em particular. As pessoas saem do cinema com o sorriso triunfante dos justos. Depois de um filme de Moore, é inevitável pensar: ‘Eu já sabia!’
É claro que sabia. Porque Moore é o porta-voz ideal das nossas simplificações de botequim. Ele nos bajula para que pareçamos inteligentes e nos desobriga da tarefa de pensar. Seu boné nos protege. Sua obesidade nos aquece. Moore fala por nós. Exagera por nós. E também mente um pouquinho por nós.’
Luiz Carlos Merten
‘Quem tem medo de Michael Moore?’, copyright O Estado de S. Paulo, 30/07/04
‘Ao repórter do Estado, que o seguiu na Croisette, o calçadão de Cannes, quando ele foi levar sua solidariedade aos grevistas que ameaçavam paralisar o maior festival de cinema do mundo, Michael Moore disse que não se importava muito com as acusações de que é maniqueísta e manipulador. ‘Se as pessoas acham que manipulo, o que elas vão dizer de George W. Bush e dos que o cercam?’, perguntou, em tom de provocação. Michael Moore terminou ganhando a Palma de Ouro por seu documentário Fahrenheit – 11 de Setembro, que estréia hoje em 50 salas de todo o Brasil. Ele é mesmo maniqueísta e manipulador. É exibicionista, também, aparecendo demais em seus filmes, mas nada disso retira a importância de Fahrenheit. O filme já bateu dois recordes históricos – é o documentário mais visto de todos os tempos e o primeiro que ultrapassa a barreira de US$ 100 milhões de arrecadação nas bilheterias dos EUA.
Quem tem medo de Michael Moore? Quem precisa de Michael Moore? Você já ouviu essas (e outras) interrogações. Morgan Spurlock, diretor de outro documentário de sucesso – Super Size me, sobre (e contra) a rede de fast food McDonald’s -, entrevistado pelo Estado na segunda-feira, disse que todos precisamos de Moore. ‘Ele prova que o documentário é a última fronteira da expressão livre, neste mundo global dominado pelas grandes corporações.’ O mais polêmico diretor de documentários do mundo só precisa agora que o presidente Bush não seja eleito – Moore diz que não será uma reeleição, caso se concretize, porque a primeira vitória foi fraudada – para ser totalmente bem-sucedido na sua cruzada. Mas ele não deixará nunca de ser discutido. Moore é amado e detestado com intensidade. Ele sabe disso e até admite seu método. Ou você acha que é por simples acaso que a empresa produtora de Fahrenheit – 11 de Setembro se chama Dog Eat Dog? Cão Come Cão – e o cão de Moore é o do inferno, encarnado num presidente que pratica, como ninguém, a arte de tirar lucro da guerra.
O Estado ouviu muita gente no País para tentar entender (e decifrar) o fenômeno Michael Moore. Você encontra nessa e nas próximas páginas todo tipo de opinião e avaliação do trabalho do diretor. E o mais polêmico sobre ele é que pode manipular, mas não mente – tudo o que diz é documentado e as provas são expostas. Nada é mais eficaz, de qualquer maneira, do que mostrar o próprio Bush. Em Cannes, Moore disse que tratou de ser sério nesse filme, mais do que em todos os outros que fez, porque o papel principal do palhaço já estava ocupado – por um homem que ocorre ser o mais poderoso do mundo.
É só parcialmente verdadeira a afirmação de que nada do que ele diz (ou prova) em Fahrenheit – 11 de Setembro é novidade. Você podia saber do envolvimento do presidente com a família Bin Laden, das falhas de defesa que culminaram no trágico 11 de setembro e do interesse econômico por trás da Guerra do Iraque, mas nunca essas informações foram contextualizadas com tanta clareza. E existem as imagens que você, com certeza, nunca viu – as de Bush naquela escola da Flórida, ao ser informado do segundo ataque às torres gêmeas, possui extraordinário valor de documento. O cinismo do presidente falando para sua base – a elite econômica do mundo; ou pedindo atenção para uma jogada de golfe após um rápido discurso patriótico contra o terrorismo expõem o homem por trás da instituição com uma virulência como só o cinema pode fazer. A sociedade midiática – da imagem – é mentirosa, não se cansam de dizer os especialistas. É verdade, mas foi uma simples imagem na TV que derrubou o senador McCarthy, nos anos 1950. Os EUA vivem hoje outra era de medo. Moore acredita na força do cinema para desmontar a indústria da paranóia montada no país. Você não precisa concordar com o júri presidido por Quentin Tarantino, que disse que Fahrenheit ganhou a Palma de Ouro por sua excepcional qualidade como cinema. Foi uma palma política. Resta saber se será eficaz.’
Tonica Chagas
‘Opino, mas também mostro fatos irrefutáveis’’, copyright O Estado de S. Paulo, 30/07/04
‘Para divulgar Fahrenheit na imprensa internacional, Michael Moore deu apenas uma entrevista coletiva, em Nova York, da qual o Estado participou. A seguir, alguns trechos :
Que impacto você espera que seu filme consiga causar no restante do mundo?
Michael Moore – Acho que os espanhóis começaram dando o exemplo, pondo para fora o primeiro-ministro que não ouviu a vontade do povo. Sinceramente, espero que os outros líderes que se juntaram a Bush nesta guerra também sejam removidos pelos cidadãos de seus países e espero que esse filme ajude a fazer isso. Quero agradecer ao povo brasileiro por não fazer parte dessa coalizão.
Há alguma coisa que outros países possam fazer para mudar a política nos EUA?
Moore – Neste ponto, não há nada que possam fazer. Está nas nossas mãos. O que podem fazer, se acreditam em orações, é rezar. Ou então os austríacos poderiam prometer férias com esqui de graça aos americanos que provarem não ter votado em Bush… Os argentinos poderiam prometer bifes de graça…
O que você acha de descarregar seu filme na internet?
Moore – Não estão descarregando meu filme. Estão colocando na internet cópias de vídeos ruins, feitas ilegalmente. Quando o filme sair em DVD, vou ficar feliz que as pessoas compartilhem cópias. Sou contra as leis americanas de direitos autorais, pois acredito que as pessoas deveriam compartilhar obras de arte. Se alguém aluga um filme ou compra um livro e quer dividi-lo com um amigo ou vizinho, sou a favor.
Fahrenheit é apontado como peça de propaganda.
Moore – Se o New York Times apóia alguém para presidente dos EUA, isso significa que não é um jornal? É claro que o filme é um documentário, um trabalho jornalístico. Mas jornalismo da página de opiniões. É minha opinião, baseada em fatos. Minha opinião pode estar certa ou errada. Vamos discutir isso, vamos debater. Mas o que apresento no filme são fatos e são irrefutáveis.
O que acha da proposta de alguns congressistas para que a ONU acompanhe as próximas eleições americanas?
Moore – Definitivamente devemos ter observadores nas eleições com respeito a fraudes em alguns Estados. Conversei com um grupo de advogados para nos apresentarmos como voluntários e irmos à Flórida (Estado governado pelo irmão de Bush e que lhe deu a presidência, numa controvertida recontagem de votos) e outros lugares para ter certeza de que não vão tentar roubar outra eleição.
Para a revista Playboy, você disse que Israel deveria se encarregar de acabar com Osama Bin Laden. Isso foi uma piada?
Moore – Sim, foi uma piada. Mas o que quero dizer é: se você quer o serviço feito, por que não chamar os israelenses? Nós lhes damos US$ 4 bilhões por ano! Será que não podemos fazer um pedido em troca? Vão pegar esse Osama, rapazes!
Estado – O que você acha que vai acontecer no mundo se Bush for reeleito?
Moore – Não é permitido proferir essas palavras nesta sala! Você está sugerindo uma possibilidade tal como se o sol começasse a girar sem controle em torno da terra! Aaaaah! Não! Próxima pergunta.
Estado – O que você vai fazer depois das eleições?
Moore – Despencar. Preciso ter oito horas de sono.’