Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Carla Rodrigues

‘Corriam os anos 90 e o Rio de Janeiro já estava enfiado nessa crise que combina insegurança com desgoverno. Numa mesa de almoço com jornalistas, o coordenador do movimento Viva Rio, Rubem César Fernandes, discutia estratégias para mobilizar o carioca. Foi quando um interlocutor sugeriu:

– Chama o Olivetto.

– Quem é esse Olivetto?, perguntou Rubem, que até então desconhecia o enfant gaté da publicidade brasileira e acionista majoritário da agência W/Brasil, Washington Olivetto.

Mais do que um episódio exemplar do ar blasé com que os cariocas tratam os paulistas notáveis, a história tem seu valor porque dificilmente se repetirá. Antes mesmo de se tornar protagonista de ‘Na toca dos leões’ – livro no qual o jornalista Fernando Morais conta como Olivetto e seus dois sócios, Gabriel Zellmeister e Javier Llussá, mudaram a cara da propaganda no Brasil -, o publicitário já havia extrapolado as fronteiras paulistanas e os limites do afetado mundo da propaganda para virar celebridade nacional.

Ao longo das 496 páginas do livro, que chega às livrarias nesta sexta-feira, 1o de abril, com tiragem inicial de 50 mil exemplares, três vezes Morais chama Olivetto de o ‘João Gilberto da publicidade’. A julgar pela imensa contribuição de João à música brasileira, a comparação deveria funcionar como um baita elogio: ninguém duvida de que João é genial, excêntrico e inigualável. Mas mesmo os que reconhecem seu talento também atribuem ao homem-mito qualidades como chato, difícil e egocêntrico. Para o bem ou para o mal, a comparação entre Olivetto e João é perfeita.

É impossível chegar ao final do livro sem tirar o chapéu para o publicitário que arrebatou o seu primeiro Leão no Festival de Cannes aos 19 anos – e mais centenas de prêmios como esse ao longo da vida. Por trás da criatividade, movimenta-se o grande empresário de um negócio chamado publicidade – que, no mundo inteiro, se apóia sobre o tripé lucro, vaidade e poder. Com o bem-sucedido Olivetto não poderia ser diferente, mas ao trio de pré-requisitos ele acrescenta ainda criatividade, charme e talento. Um império como a W/Brasil não se constrói sem muito trabalho e dedicação. Foi essa a história que motivou Morais para o livro, que inicialmente pretendia ser apenas um relato de ‘um dia na vida da agência mais premiada do Brasil.’

Amigos há 30 anos, Morais e Olivetto começaram a discutir o projeto no início de 2001, portanto muitos meses antes do fatídico 11 de dezembro, data em que começou o cativeiro de 53 dias ao qual Olivetto foi submetido depois de seqüestrado numa rua do bairro paulistano de Higienópolis. A idéia original de Morais era fazer uma grande reportagem sobre a W/Brasil. Proposta aprovada, o jornalista voltou a freqüentar o escritório da agência no fim do expediente, hábito que, nos idos tempos de repórter do ‘Jornal da Tarde’, servira para aproximá-lo de Olivetto. ‘Descobri que os três sócios tinham histórias pessoais muito legais’, diz Morais. Num trabalho de apuração impecável, o jornalista levantou passagens saborosas sobre Olivetto e seus dois sócios quase-invisíveis, Gabriel e Javier. Mas o que diferencia o esforço de Morais no livro são as informações inéditas sobre o seqüestro do publicitário.

O ‘mico’ do Olivetto

A palavra seqüestro não figura, até hoje, no vocabulário de Olivetto, que só se refere ao fato como ‘o mico’. Marca indelével na vida de um bon vivant que não ligava para segurança pessoal nem para ostentação – seu guarda-roupa sempre fez mais o estilo bizarro do que o luxuoso -, o seqüestro quase ganhou um livro inteiro, quase desapareceu completamente da biografia do publicitário, e terminou como o fecho da história de Morais. No dia em que foi levado do seu Ômega por um bando de homens armados e vestidos com coletes da Polícia Federal, Olivetto deveria conceder mais uma das 100 horas de entrevista que gravou com o jornalista. Foi parar num cubículo sem janelas, de onde só saiu por competência do delegado Wagner Giudice e por sorte, muita sorte.

Quando o seqüestro começou, Morais interrompeu o levantamento sobre a W/Brasil para acompanhar cada passo da tragédia do amigo. Quando o seqüestro acabou, Morais foi um dos primeiros a chegar no apartamento de Olivetto carregando uma garrafa de champanhe e um gravador. Foi também o único jornalista a ficar sozinho com ele, registrando o depoimento de um homem que falou sem parar 48 horas seguidas. Não que Morais tenha gravado tudo, mas a ansiedade do publicitário era tamanha que ele ficou dois dias sem dormir depois de libertado. ‘A dose de adrenalina era muito alta’, lembra.

Pelas contas de Morais, são inéditas 40% das informações que recheiam as quase 100 páginas finais do livro: as porradas que Olivetto tomou, a tentativa de agredir os seqüestradores despejando sobre eles um balde cheio de merda, as incontáveis manifestações de solidariedade, os passos da desastrada empresa Control Risk, a recusa do jornalista William Waack em veicular a notícia de que o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, havia telefonado para Patrícia, a mulher de Olivetto, manifestando preocupação e apresentando todo o empenho oficial de que o caso fosse resolvido o mais rápido possível, a crise provocada pela reportagem de capa da ‘Época’ sobre seqüestros em São Paulo, que resultou na ruptura do contrato entre a W/Brasil e a revista, e principalmente os obstáculos enfrentados pela polícia paulista na solução do caso. No relato de Morais, a sorte de Olivetto contou com a importante contribuição do delegado Giudice, um dos beneficiados por um treinamento no exterior financiado pelo empresário Abílio Diniz. Desde que foi seqüestrado, em 1989, o dono do grupo Pão de Açúcar passou a financiar para a polícia paulista cursos no exterior.

Contar tudo isso, no entanto, exigiu uma longa negociação. Primeiro, a euforia da liberdade levou Olivetto a propor a Morais dois livros: o do projeto inicial, sobre a W/Brasil, e um instant-book exclusivamente sobre o ‘mico’. Intensamente pesquisado por Morais e negociado com a editora Companhia das Letras, o livro não saiu a pedido de Olivetto. Depois do descanso e da acareação judicial com seus algozes – que até então o publicitário não tinha visto frente a frente -, Olivetto desistiu de explorar o seqüestro como mais uma das suas jogadas de marketing. Pediu, e Morais concordou. O livro já estava vendido e a editora foi reembolsada: Morais devolveu o adiantamento recebido e Olivetto ajudou na negociação que culminou na ida do jornalista para a editora Planeta.

O jornalista seguiu com o seu trabalho sobre a W/Brasil e concluiu que era impossível falar do seu personagem sem falar do ‘mico’. A amizade entre os dois ajudou no acordo: Morais usaria as informações levantadas, desde que nada ferisse Olivetto. O resultado combinou o esforço de Morais de não fazer um livro ‘chapa-branca’ e surpreendeu o próprio Olivetto, que descobriu no livro detalhes do ‘mico’ que nem ele sabia. O publicitário desconhecia, por exemplo, que o controle prévio dos seqüestradores sobre a sua vida havia sido tão detalhado que o registro da sua rotina no cativeiro era minucioso a ponto de incluir anotações a cada vez que ele urinava, chorava ou defecava.

Ignorava, ainda, que o publicitário Nizan Guanaes era o alvo alternativo dos bandidos se alguma coisa acontecesse com ele, e principalmente não sabia de um detalhe fundamental na elucidação do seqüestro: quando policiais de Serra Negra prenderam parte dos integrantes da quadrilha, encontraram um bilhete de Olivetto dirigido a sua mulher, Patrícia, no qual ele mencionava o tratamento para engravidar que ela estava fazendo. Foi a chave para que o delegado Giudice telefonasse a Patrícia e confirmasse a informação: sim, ela estava tomando hormônios porque os dois pretendiam ter filhos.

O Chatô da propaganda

Não apenas por ser escrito pelo mesmo autor, ‘Na toca dos leões’ lembra ‘Chatô, o rei do Brasil’, biografia do empresário Assis Chateaubriand e quarto livro de Morais. Seja pelas características dos dois personagens, seja pela proximidade de ramo de atuação, os dois livros se parecem, guardadas as devidas proporções entre os seus personagens. Assim como Chateaubriand exerceu enorme influência na construção da indústria das comunicações no Brasil, Olivetto tem no currículo uma inquestionável contribuição à propaganda. Não apenas pelos prêmios que conquistou, mas por ser protagonista da história de consolidação de um modelo de publicidade no país. Ainda a unir os dois o gosto nacionalista por ícones de brasilidade, como MPB e futebol. ‘Uma importante diferença entre os dois é que Olivetto é uma pessoa do bem, o que Chateaubriand nem sempre foi’, diz o jornalista.

Mais uma vez, a amizade entre os dois aparece no livro como se fosse um personagem. Morais narra histórias sobre a criação da W/Brasil que incluem a constatação de que, seis meses depois de fundada, a agência tinha na sua carteira de clientes sete empresas que haviam sido atendidas por Olivetto na sua antiga casa, a DPZ. Essa é só uma das histórias com as quais, segundo Morais, o publicitário sentiu-se incomodado. ‘Eu não deixei de contar nada’, garante. É claro que o fato de ter seu biografado vivo – ao contrário do que aconteceu com Chatô ou Olga, outro de seus sucessos – tem esse tipo de desvantagem. ‘Estou acostumado a tirar o personagem da cova e colocar para andar’, brinca.

Antes de virar tema de livro, o golden boy da publicidade brasileira já tratava de alimentar muitas das lendas sobre si mesmo.’Na toca dos leões’ contribui para cultivar o folclore sobre o homem que conquistou seu primeiro emprego por acaso, depois de entrar numa agência de publicidade explicando que queria trabalhar ali por que o pneu do carro tinha furado. Ou que ganhou uma conta importante calçando um extravagante tênis cor-de-rosa. Eram tempos em que a propaganda tinha mais glamour do que competição, e o magnetismo pessoal, desde que garantisse altos lucros, era ingrediente fundamental na conquista das contas.

De lá para cá, além de mais profissionalização, a propaganda buscou também escapar do estigma de alienada, exclusivamente ligada ao que há de pior no capitalismo. O livro de Morais mostra Olivetto como um publicitário que, embalado por vezes pelo excesso de vaidade, tratou de criar para si uma ótima imagem, mas também ajudou a consolidar melhor reputação para a atividade. O homem que acabou de adotar o Rio de Janeiro como segunda casa e passou a dividir seu tempo entre as duas cidades tornou-se o tipo de carioca que abraçaria a causa até hoje defendida pelo Viva Rio.’



Leticia Helena

‘Seqüestrador de Olivetto elaborou manual do crime’, copyright O Globo, 3/04/05

‘Mais do que elaborar um seqüestro cinematográfico, o chileno Mauricio Norambuena – que manteve o publicitário Washington Olivetto em cativeiro por 53 dias – produziu um manual virtual do crime, apreendido pela polícia no laptop do chefe da quadrilha. Os relatórios com o passo-a-passo da vigilância ao publicitário nos dias que antecederam sua captura, as planilhas dos gastos da quadrilha e até um diário do crime são revelados, pela primeira vez, no livro ‘Na toca dos leões’, do jornalista Fernando Morais. Ao contar a história da agência de publicidade de Olivetto, a W/Brasil, Morais reconstitui o seqüestro, ocorrido em 11 de dezembro de 2001, com base nas informações contidas nos oito notebooks da quadrilha.

Em circulares, Norambuena determinava desde o comportamento dos encarregados de registrar a rotina de Olivetto – tratado como Objetivo, Átila, Franklin ou Novedad – até táticas para o caso de alguém ser preso. As informações mais importantes eram criptografadas. Nos dias que antecedem o seqüestro, o fluxo de dados diminui. Segundo o livro, a própria polícia desconfiava que a quadrilha tivesse um sistema para apagar as informações.

Nos computadores, a polícia encontrou outras informações preciosas. A quadrilha preparou um plano B, ou H2, para o caso de não conseguir levar Olivetto. A vítima seria outro publicitário, Nizan Guanaes, chamado, pelo grupo, de Nestor ou Orion. Por meses, os seqüestradores esmiuçaram sua rotina e a de sua família.

E, apesar da dedicação total à preparação do seqüestro de Olivetto, Norambuena encontrava tempo para acompanhar atentamente o noticiário. Numa das anotações, comenta o seqüestro de Princesa, que, segundo o livro, seria Patricia Abravanel, filha de Silvio Santos. ‘Nós assistimos ao recente caso da ‘Princesa’ e da análise desse fato se depreende que nos defrontaremos com um adversário que realizará grandes esforços para nos capturar. Esse episódio é um alerta para nós e exigirá medidas ainda mais rigorosas para evitar a atividade inimiga (da polícia) contra nós’.’

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‘Códigos para falar ao telefone e até para pedir ajuda’, copyright O Globo, 3/04/05

‘Tratado como Jefatura (chefia, em espanhol), Maurício Hernández Norambuena era um dos chefes da Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR), uma organização chilena de extrema-esquerda que surgira nos anos 80 com o intuito de derrubar o ditador Augusto Pinochet. Condenado duas vezes à prisão perpétua, Norambuena escapou de um presídio de segurança máxima em Santiago e, no início de 2001, chegou ao Brasil.

A luta armada o tornara especialista em táticas de guerrilha. No livro, essa experiência fica evidente nas instruções de Norambuena. Ele explica, por exemplo, como falar ao celular, usando códigos – ‘hotel’, seria um encontro emergencial entre 20h30m e 8h30m e ‘oficina’, um ponto de rompimento, entre outros – evitando dialetos e, principalmente, mantendo conversas curtas mas ‘sem uso excessivo de monossílabos’.

Os códigos incluíam frases para situações de risco. ‘Estou com vírus’ era a senha para um integrante avisar ao bando que estava sendo seguido. ‘Estão me levando para o hospital’, seria usada em casos de prisão e, se um deles fosse parado numa blitz deveria dizer ‘meu computador queimou’.

Com tanta organização, o seqüestro ocorreu sem problemas, como lembra ‘Na toca dos leões’. Às 20h30m de 11 de dezembro de 2001, Olivetto saiu da W/Brasil e embarcou no Ômega cinza-azulado dirigido pelo motorista Antonio. A poucos metros da agência, o carro foi parado numa blitz, com homens armados usando coletes da Polícia Federal. O motorista levou uma coronhada. O publicitário tentou reagir com pontapés, mas foi dominado, encapuzado e jogado na traseira de uma caminhonete Peugeot branca.

Regulamento para ser seguido no cativeiro

Ao chegar ao cativeiro – um cubículo de um metro de largura por 2,3m de comprimento e 2,4m de altura – Olivetto deparou-se com um regulamento. Num texto impresso em computador, de pouco mais de cem palavras, os seqüestradores determinavam que ele deveria ‘manter-se em completo silêncio permanentemente’ e que também deveria ‘fazer exercícios diários para manter sua saúde física e mental’, entre outras normas.

Nos 53 dias de cárcere, os seqüestradores mantiveram um diário, registrando até as músicas que Olivetto ouvia. Para encontrar todas essas informações, porém, a polícia teve trabalho. No livro, Fernando Morais conta a dificuldade para descobrir a senha dos bandidos. Após tentar dezenas de combinações envolvendo nomes e datas, um policial resolveu tentar o nome do time mais popular do Chile, o Colo Colo. Acertou em cheio.

Norambuena e cinco comparsas, entre eles duas mulheres, foram condenados a 30 anos de prisão em regime fechado.’



Cassiano Elek Machado

‘Biógrafo de Chatô entra ‘Na Toca dos Leões’’, copyright Folha de S. Paulo, 1/04/05

‘Pode parecer mentira, e é no dia dela que estamos, mas o estouro de um pneu há 34 anos mudou a história da publicidade no país.

Na manhã de um 1º de abril como este, um hippie de cabelos desgrenhados e macacão jeans sem camisa guiava um Karmann Ghia vermelho quando notou que o carro estava coxo de uma de suas quatro patas. Como não sabia trocar o artefato furado, entrou em uma pequena agência de propaganda ali em frente para pedir socorro. Na hora, mudou de idéia e pediu um estágio.

Pouco depois, o cabeludo Washington Olivetto arrebanhava um Leão em Cannes, o prêmio mais caçado da publicidade mundial, estatuetas leoninas que ele passaria a colecionar com regularidade.

A história não é rigorosamente nova, mas só agora ganha status de história. Depois de aclamados livros como ‘Chatô’, ‘Olga’ e ‘Corações Sujos’, foi a toca de leões ‘canninos’ de Olivetto & companhia que um dos principais biógrafos do país, Fernando Morais, decidiu escarafunchar.

O resultado chega hoje às livrarias e atende por ‘Na Toca dos Leões – A História da W/Brasil, uma das Agências de Propaganda Mais Premiadas do Mundo’.

No volume, que a editora Planeta lança em pouco discreta tiragem de 70 mil exemplares, o jornalista e escritor mineiro conta a trajetória da agência criada há 19 anos por Olivetto e pelas duas outras pernas bem mais discretas do tripé W/Brasil, Gabriel Zellmeister e Javier Llussá Ciuret.

Morais conta ainda como foi o turbulento seqüestro de Olivetto, na virada de 2001 para 2002.

Conta não do jeito que já se contou que ele contaria. O autor chegou a combinar com o publicitário e a fechar com a editora Companhia das Letras, em acordo de US$ 100 mil, um livro só sobre o ‘mico’ (termo usado por Olivetto para se referir ao seu seqüestro, ou ‘retiro involuntário’), que correria paralelo ao projeto de um livro sobre a W/Brasil. Quando Morais já tocava o projeto, tendo até viajado duas vezes ao Chile dos seqüestradores, Olivetto pediu que o projeto fosse abortado.

O escritor acatou, mas acabou convencendo o publicitário que seu outro livro, o que perfilava a agência, obrigatoriamente deveria incluir o episódio. ‘Seria propaganda enganosa falar da W/ Brasil sem mencionar o seqüestro’, diz Morais, brandindo na mão esquerda um de seus sempre presentes charutos.

Sob os olhares atentos de um Assis ‘Chatô’ Chateaubriand com chapéu de cangaceiro, display de papelão que fica diante dele em seu escritório, Morais assevera que essa foi a única concessão que fez aos seus perfilados.

‘Quando tivemos a idéia do livro em um almoço, com Washington e Gábi [Zellmeister], eu disse que a única condição que exigia era a de que fosse um livro-livro, não uma obra de sala de espera, com letronas grandes, muita ilustração e papel cuchê.’

Não é então um livro ‘de encomenda’? ‘Não’, afirma Morais, que sustenta que os sócios da W só viram o livro em sua versão final e que pediram apenas modificações de alguns dados errados.

Olivetto, aliás, foi o primeiro a reclamar do livro. ‘Ele disse que exibi um pouco demais as tripas da agência, as trocas de insultos, as coisas que ele fez e não faria mais’, diz Morais.

De fato não estão no volume só os Leões e os outros cerca de mil prêmios que a W/Brasil amealhou e guarda em uma espécie de aquário, a ‘lixeira de prêmios’, em sua sede em São Paulo.

‘Na Toca dos Leões’ mostra, por exemplo, os rugidos trocados entre os Ws e os donos de três letras históricas da publicidade brasileira: D, P e Z. Antes de fundarem a W (inicialmente W/GGK, em parceria com a suíça GGK), Olivetto, Zellmeister e Ciuret trabalhavam na DPZ. Quando saíram (levando contas polpudas) para a nova agência, Washington e Dualibi, sobretudo, trocaram patadas não amigáveis.

Não é essa a tônica, porém, da toca descrita por Morais.

É um livro de histórias; curiosas, como a de quando convenceram Bill Gates a fazer uma propaganda (uma das muitas personalidades alistadas por WO); ‘secretas’, como a única e até aqui desconhecida campanha eleitoral feita pela W (a do próprio Fernando Morais para deputado em 1986); saborosas, como o perfil de Ciuret, que chegou moleque da Espanha, com família fugida da Guerra Civil, e trabalhou como pedreiro.

‘Eles têm histórias fascinantes, são pessoas fascinantes, mas quando se descasca o bronze de suas estátuas eles são normais. O mesmo vale para as agências de propaganda. Não são só o glamour que se imagina. Não são como as agências das novelas das oito’, diverte-se Morais.’

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‘Paulo Coelho é próximo ‘mago’ de biógrafo’, copyright Folha de S. Paulo, 1/04/05

‘Ele já perfilou o ‘mago’ da imprensa, Chatô, o ‘mago’ da publicidade, Olivetto, e tem sempre em mente um projeto de biografia do ‘mago’ da política, Antonio Carlos Magalhães, mas é o mais ‘mago’ de todos o próximo alvo de Fernando Morais.

O escritor fechou no começo deste ano com a editora Planeta e inicia ainda em abril uma biografia do ‘mago’ das letras, Paulo Coelho.

Não deve ser, porém, o próximo Morais nas livrarias. Antes, a Companhia das Letras publicará uma biografia que ele faz de um ‘mago’ da aeronáutica: Casemiro Montenegro, criador do Instituto Tecnológico de Aeronáutica e da Embraer.

Morais também tem em marcha, entre outros livros, um sobre brasileiros que se exilaram em Cuba durante a ditadura militar. Dentre as histórias curiosas que colecionou está a de um curta sobre um cemitério de Havana filmado pelo hoje ministro José Dirceu.’

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‘Obra revela segredos de seqüestro’, copyright Folha de S. Paulo, 1/04/05

‘Fernando Morais esteve entre os últimos a falar com Washington Olivetto antes do seqüestro deste, em dezembro de 2001, numa noite de terça-feira em que os dois se encontrariam para uma entrevista para o livro da W/Brasil, e foi um dos primeiros que esteve com o publicitário, no dia em que ele foi libertado.

O intervalo de 53 dias na conversa de ambos foi interrompido por uma pergunta insólita de Olivetto, ainda no burburinho da sua saída do cativeiro. ‘Você tem um gravador aí?’, dizia um sujeito quase dez quilos mais magro. Morais, que até hoje se define como ‘um repórter’, tinha o aparelho.

Ali iniciou a colheita de detalhes desconhecidos ou pouco conhecidos sobre um dos seqüestros mais famosos do país, alguns dados expostos em ‘Na Toca dos Leões’.

Segundo Morais, o próprio seqüestrado declarou, ao ler a versão final do livro no início do ano, que ‘não sabia de 80%’ do que estava escrito ali sobre o seqüestro. A obra descreve, por exemplo, a vigília minuciosa que os seqüestradores faziam de cada movimento dele dentro de sua ‘toca’ (o título, diz Morais, também alude a isso), incluindo as horas precisas ‘de xixi ou de choro’.

Olivetto também não sabia, detalhe mantido só no interior da polícia, que os criminosos o vigiavam detalhadamente já quase um ano antes do seqüestro e que também acompanhavam os passos de Nizan Guanaes, o ‘plano B’ deles. Outra ‘descoberta’ que o publicitário teve com o livro é que 21 de suas ‘memórias do cárcere’, escritos que fez no cativeiro no Brooklin, haviam sido recuperados, vários reproduzidos no livro.

Coisas que só o próprio Olivetto e seus algozes sabiam também vêm agora a público, como um episódio em que ele jogou um balde de fezes nos seqüestradores, que o espancaram por isso.

Neste momento, e em todas as mais de mil horas em que ficou encarcerado, o publicitário não viu nem ouviu os criminosos.

‘Durante todo o seqüestro ele não trocou nenhuma sílaba com eles. Quando encarou os seis que foram capturados, durante a acareação, acho que a ficha caiu’, conta Morais. Para ele, foi aí que Olivetto teria desistido de apoiar um livro só sobre o ‘mico’.

‘Dá um dó danado. Fiquei com uma cordilheira de informações sem usar’, diz o autor do livro, que usa dois dos 18 capítulos do livro para o tema. (CEM)

Na Toca dos Leões

Autor: Fernando Morais

Editora: Planeta

Quanto: R$ 44,90 (496 págs.)’



FOI! NÃO FOI!
Deonísio da Silva

‘Autora subverte classificações com Foi! Não Foi! Foi’, copyright O Estado de S. Paulo, 3/04/05

‘Não são poucos os autores classificados como infanto-juvenis que, em vez de fazer literatura, escrevem obras infanticidas, matando as crianças, senão de tédio, de avalanches de lições, semelhando catequistas. Lições escolares e religiosas são por certo necessárias, as primeiras para instruírem, as segundas para levarem as crianças às inevitáveis transcendências, mas a literatura não pode ser submetida a nenhum dos quesitos, sob pena de negar sua própria essência.

A fotógrafa Luzia Lacerda fez outra opção em seu livro de estréia, Foi! Não Foi! Foi, retomando o caráter eminentemente literário da prosa de ficção, ainda que examinada sob o mirante dito infanto-juvenil, por si só uma classificação controversa, vez que a divisão de leituras por faixas etárias não pode desconsiderar outras realidades. Quantas crianças e adolescentes são mais ajuizados que seus pais e professores? A autora escolheu um caminho seguro: elaborou as tramas com os costumeiros requisitos que levam leitores, adultos ou infanto-juvenis, ao prazer de uma boa prosa. Isto é, ela tem o que dizer, sabe como fazê-lo, cria personagens que falam, pensam, sentem e agem coerentemente com o plano traçado pela narração em tempos e espaços muito bem delineados.

A história se passa nos dias que correm, em São Paulo, a verdadeira capital do Brasil.

Brasília é apenas a capital administrativa, como todos sabem.

Outras cidades são muito mais importantes, qualquer que seja o critério de exame, principalmente para lançamento de nossa produção literária.

Júlia e Deusinho enfrentam várias peripécias no caminho que leva à convivência de pessoas de classes sociais bem diferentes. Ao completar 12 anos, a menina sonha com um ‘rio Tietê azul azul azul, com as margens repletas de árvores e flores’, lembrando antigos cenários registrados por escritores como Mário de Andrade, que testemunharam o tempo em que o rio ornamentava São Paulo. E não este que ora vivemos, quando é portador de tanta coisa ruim, tudo reunido sob o nome genérico de poluição.

O humor é condimento saboroso no texto de Luzia Lacerda, desde a abertura das tramas, quando em família é feita uma divertida paráfrase de Os Sapos, o célebre poema de Manuel Bandeira: ‘Em ronco que aterra,/ Berra o sapo-boi:/ – ´Meu pai foi à guerra!´/ – ´Não foi!´ – ´Foi!´ – ´Não foi!´’. Era imprescindível a alusão ao poeta, e o recurso de falar do poema logo no início do livro estabelece a referência do título.

Há muitos pontos altos, nenhum mais bonito do que o momento complicado e mágico em que nasce a amizade entre Júlia e Deusinho, quando o menino, depois de irritá-la com a obsessão de tantos olhares, conduz a menina a um mundo subterrâneo, absolutamente desconhecido para ela, de onde poderá ver outras realidades.

Ou, na proposta de Deusinho: ‘você conhece São Paulo andando na rua e eu vou mostrar a cidade vista de baixo’.

Outro momento encantado é quando a menina descobre, entre bueiros e bocas-de-lobo, a razão de seu amigo chamar-se Deusinho, mas explicitá-lo seria fraudar os leitores.

Passagem igualmente bem engendrada dá-se quando Júlia trata de um assunto ‘soslaio’: a neta quer fazer alguma coisa pela família do amigo! E, não podendo sozinha, busca ajuda em carta endereçada ao avô, na Fazenda Santa Rita, em Ribeirão Preto.

Podemos imaginar um mundo dirigido por crianças e adolescentes? ‘Se esta rua fosse minha,/ eu mandava ladrilhar,/ não para automóvel matar gente,/ mas para criança brincar’. As paráfrases funcionam como intertextos muito bem escolhidos, perfeitamente encaixados nas tramas, tudo com o fim de ornamentar a história, aperfeiçoando o encantamento propriamente literário, vez que um autor, ao escrever, sempre dialoga com os que lhe antecederam. ‘Se este mundo fosse meu,/ eu fazia tantas mudanças/ que ele seria um paraíso/ de bichos, plantas e crianças’.

Como os antigos navegantes, tomados da alegria de descobrir novas terras, bradavam terra à vista, anunciemos: literatura à vista! Fotógrafa de reconhecidos méritos, Luzia Lacerda é revelação literária!?’