Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carlos Alberto Di Franco

‘Os jornais perdem leitores em todo o mundo. Multiplicam-se as tentativas de interpretação do fenômeno. Seminários, encontros e relatórios, no exterior e aqui, procuram, incessantemente, bodes expiatórios. Televisão e internet são, de longe, os principais vilões. Será? É evidente que a juventude de hoje lê muito menos. Mas não é só a juventude que foge dos jornais. A chamada elite, classe A e B, também tem aumentado a fileira dos desencantados. Será inviável conquistar toda essa gente para o fascinante mundo da cultura impressa? Creio que não. O que falta, estou certo, é realismo e qualidade.

Os jornais, equivocadamente, pensam que são meio de comunicação de massa. E não são. Daí derivam erros fatais: a inútil imitação da televisão, a incapacidade para dialogar com a geração dos blogs e dos videogames e o alinhamento acrítico com os modismos politicamente corretos. Esqueceram que os diários de sucesso são aqueles que sabem que o seu público, independentemente da faixa etária, é constituído por uma elite numerosa, mas cada vez mais órfã de produtos de qualidade. Num momento de ênfase no didatismo e na prestação de serviços – estratégias úteis e necessárias -, defendo a urgente necessidade de complicar as pautas. O leitor que precisamos conquistar não quer o que pode conseguir na TV ou na internet. Ele quer qualidade informativa: o texto elegante, a matéria aprofundada, a análise que o ajude, efetivamente, a tomar decisões.

Autor do mais famoso livro sobre a história do New York Times, Gay Talese vê importantes problemas que castigam a imprensa de qualidade. ‘Não fazemos matéria direito, porque a reportagem se tornou muito tática, confiando em e-mail, telefones, gravações. Não é cara a cara. Quando eu era repórter, nunca usava o telefone. Queria ver o rosto das pessoas.’

‘Não se anda na rua, não se pega o metrô ou um ônibus, um avião, não se vê, cara a cara, a pessoa com quem se está conversando’, conclui Talese. E o leitor, não duvidemos, capta tudo isso.

Um amigo gozador costuma dizer-me que a expressão ‘jornalismo de qualidade’ é, hoje em dia, contraditória em si mesma. Outro dia, quis exemplificar-me essa sua opinião. ‘Veja’, dizia, ‘boa parte do noticiário de política não tem informação. Está dominado pela fofoca e pelo espetáculo. Não tem o menor interesse para os leitores.’ O uso de grampos como material jornalístico, por exemplo, virou ferramenta de trabalho. A velha e boa reportagem foi sendo substituída por dossiê. De uns tempos para cá, o leitor passou a receber dossiês que, muitas vezes, não se sustentam em pé. Curiosamente, quem os publica não se sente obrigado a dar nenhuma satisfação ao leitor. Entramos na era do jornalismo sem jornalistas, nos tempos da reportagem sem repórteres. Ficamos, todos, fechados no ambiente rarefeito das redações. Enquanto esperamos o próximo dossiê, tratamos de reproduzir declarações entre aspas, de repercutir frases vazias de políticos experientes na arte de manipular a imprensa. O jornalismo está virando show busines s. Espartilhados pelo mundo do espetáculo, repórteres estão sendo empurrados para o incômodo papel de peça descartável na linha de montagem da ciranda do entretenimento. É óbvio, caro leitor, que esse tipo de jornalismo não é capaz de atrair um público qualificado.

Tal público, informado e exigente, resiste à mesmice de pautas politicamente corretas. Recentemente, num seminário de imprensa, fui questionado a respeito da qualidade da cobertura da eleição do novo papa. Ela foi, quantitativamente, magnífica. Do ponto de vista da qualidade, no entanto, ficou bastante aquém do que poderíamos ter feito. Ficaram alguns jornais, infelizmente, reféns de raivosas declarações de reduzidos e conhecidos desafetos do então cardeal Ratzinger. Criou-se, assim, contra toda a evidência e verdade, uma falsa imagem do novo papa. Bento XVI seria um eclesiástico duro, quase intratável. Quem o conhece, e a mídia italiana foi correta e profissional na informação que deu aos seus leitores, sabe que se trata de um homem cordial, aberto e de grande capacidade de diálogo. Não obstante, como prefeito da Congregação da Defesa da Fé, cumpriu o seu dever: defender o núcleo fundamental da doutrina católica. Sem essa defesa, por óbvio, a Igreja perderia sua identidade. Aqui, no entanto, sucumbimos ao po liticamente correto, prisioneiros de clichês que, há muito, deveriam ter sido banidos das redações: ‘conservador’, ‘progressista’, etc. Daí o descompasso entre essas interpretações e a força eloqüente dos números e dos fatos. O papado deu um banho de vigor e vitalidade.

Como lembrou o jornalista Ali Kamel, em recente artigo publicado no jornal O Globo, ‘o mundo deu foco absoluto ao que João Paulo II fez e ao que Bento XVI fará: gente de virtualmente todas as denominações cristãs deu opiniões sobre os caminhos que a Igreja Católica deve adotar. Se a Igreja estivesse de fato fora do tempo, anacrônica e ultrapassada, poucos se dariam a esse trabalho’. É necessário cobrir os fatos com uma perspectiva mais profunda. Convém fugir das armadilhas do politicamente correto e do contrabando opinativo semeado pelos arautos de ideologias anacrônicas . É preciso, sobretudo, enfrentar a batalha da isenção. Caso contrário, perderemos o apoio dos leitores mais qualificados.

Só uma séria retomada na qualidade informativa garantirá a fidelidade dos antigos leitores e a conquista de novos. Precisamos mostrar, com fatos e com obras, que os jornais continuam sendo úteis, importantes, um guia insubstituível para a navegação na vida real.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética da Comunicação e representante da Faculdade de Comunicação da Universidade de Navarra no Brasil, é diretor da Di Franco – Consultoria em Estratégia de Mídia Ltda. E-mail: difranco@ceu.org.br’



IMPRENSA & CONCENTRAÇÃO
Observatório Brasileiro de Mídia

‘Dados da Associação de Jornais confirmam concentração da mídia Brasileira’, copyright Observatório Brasileiro de Mídia (http://www.observatoriodemidia.org.br), 6/05/05

‘Dados publicados no site da Associação Nacional de Jornais – ANJ – sobre a comercialização de jornais diários impressos nos anos de 2001, 2002 e 2003* indicam alto grau de concentração na mídia impressa brasileira. Dentre mais de 500 veículos de comunicação impressos de circulação diária em todo país, os dez maiores jornais em circulação estão localizados na região Sul e Sudeste. Apenas seis grupos empresariais concentram a propriedade de mais da metade da circulação diária de notícias impressas no país. Sozinhos, estes veículos respondem por cerca de 55,46% de toda produção diária dos jornais impressos.

Título

Editora

Circulação

Folha de S. Paulo

Empresa Folha da Manhã SA

314.908

O Globo

Infoglobo Comunicações Ltda.

253.410

O Estado de S. Paulo

S/A O Estado de S. Paulo

242.755

Extra

Infoglobo Comunicações Ltda.

228.728

O Dia

Editora O Dia SA

196.846

Correio do Povo

Editora Jornalista Caldas Júnior

181.560

Zero Hora

Zero Hora Editora Jornalística

176.696

Diário Gaúcho

Zero Hora Editora Jornalística

119.221

Gazeta Mercantil

Editora JB SA

103.095

Diário de S. Paulo

Infoglobo Comunicações Ltda.

81.143

Fonte: Instituto Verificador de Circulação, ANJ Database

A concentração dos veículos de comunicação também é geográfica. Apenas três estados, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul são sede dos jornais impressos de maior circulação do país. São Paulo, que já concentra as matrizes das redes de televisão Record, Bandeirantes, SBT, Rede TV e divide com o Rio de Janeiro o comando da Tv Globo é o estado responsável pela publicação de quatro jornais de maior tiragem: Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Gazeta Mercantil e Diário de São Paulo. O Rio de Janeiro é a base operacional de O Globo, Extra e O Dia. O Rio Grande do Sul concentra as publicações de Zero Hora, Diário Gaúcho e Correio do Povo.

Um outro aspecto em torno destes veículos diz respeito a propriedade cruzada de outros veículos de mídia. O grupo RBS que controla a Zero Hora Editora Jornalística que é responsável pela edição dos jornais ‘Zero Hora’ e ‘Diário Gaúcho’, também transmite a programação da Rede Globo em toda a região Sul cobrindo 99,7% dos domicílios com TV do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. O império gaúcho tem seis jornais diários (quatro no RS e dois em SC), no sistema de radiodifusão tem 6 rádios e duas redes com mais de vinte emissoras de rádio afiliadas nos dois estados. O grupo multimídico tem ainda editora, provedor de internet, empresa de eventos e site de notícias.

Maior conglomerado midiático do país, o sistema Globo de Comunicações além dos três jornais administrados pela infoglobo Comunicações Ltda que responde pelas operações de ‘O Globo’, ‘Extra’ e ‘Diário de São Paulo. È proprietário da Editora Globo que responde por uma infinidade de revistas de circulação nacional, entre elas a revista semanal Época. A Rede Globo tem 113 emissoras entre geradoras e afiliadas e cobre 99,84% do território nacional. No sistema de radiodifusão, a Globo tem redes AM e FM que cobrem todo o território nacional por meio de suas afiliadas. O conglomerado tem uma agência de notícias, provedor de internet, detém 70% do mercado de TV a cabo por meio de sua subsidiária NET. A Globo também explora o mercado de serviços via satélite.

A empresa Folha da Manhã S/A, responsável pela Folha de São Paulo é dona do UOL, maior provedor de Internet da América Latina. O grupo Estado, além do diário, O Estado de São Paulo, tem no seu portfólio midiático o Jornal da Tarde, a Rádio Eldorado e a Agência Estado. A Editora jornalística Caldas Júnior que publica o jornal gaúcho Correio do Povo, faz parte do mesmo grupo de mídia proprietários da Rádio Guaíba e da TV2 Guaíba

A Editora JB S/A, uma das empresas do grupo Companhia Brasileira de Mídia – CBM, além da Gazeta Mercantil imprimi o Jornal do Brasil. Recentemente estabeleceu uma parceria operacional com o grupo O Dia, através do Consórcio Mídia Impressa. A companhia Brasileira de Mídia é proprietária da Forbes Brasil e do site de notícias econômicas Internews.’



CHICO LOPES vs. VEJA
Débora Pinho

‘Justiça nega indenização para ex-presidente do Bacen’, copyright Consultor Jurídico (www.conjur.com.br), 4/05/05

‘O ex-presidente do Banco Central, Francisco Lopes, sofreu outra derrota na Justiça. Desta vez, a juíza Maria Luiza O. Niederauer, do Rio de Janeiro, negou indenização por danos morais em ação movida contra a revista Veja. Recentemente, o ex-presidente do Bacen foi condenado pela Justiça Federal a 10 anos de prisão por ter favorecido os bancos Marka e FonteCindam na mudança da política cambial ocorrida em janeiro de 1999. Ainda cabe recurso na Justiça nos dois casos.

O assunto que levou Lopes à Justiça foi justamente uma reportagem sobre o escândalo Marka e FonteCindam. Ele não gostou da capa de Veja, de 23 de maio de 2001, com o título ‘A história secreta de um golpe bilionário’. As chamadas de capa para a reportagem do jornalista Policarpo Jr. — ‘Como Chico Lopes vendia informação do Banco Central’, ‘Como Salvatore Cacciola grampeou o esquema e, com as fitas na mão, forçou o BC a socorrê-lo’ e ‘Como o escândalo foi abafado’ — foram consideradas ofensivas por ele, mas não pela Justiça fluminense.

Segundo Lopes, a revista publicou informações sem qualquer prova. Ele não pediu uma quantia específica na ação por danos morais, mas indicou como parâmetro o valor de capa da revista multiplicado pela tiragem, além da receita publicitária da edição em que saiu a reportagem, o que supera R$ 1 milhão. O ex-presidente do Bacen pediu também que a revista desse espaço idêntico para retratação.

Veja foi representada pelo escritório Lourival J. Santos Advogados. A revista alegou que a reportagem publicada é de interesse público. O procurador da República, Arthur Gueiros, testemunhou em favor da revista da Editora Abril. Gueiros foi um dos responsáveis pela denúncia no caso.

A revista argumentou que somente narrou os acontecimentos envolvendo o escândalo. Também apontou diversas reportagens publicadas sobre o mesmo assunto na imprensa.

A juíza acatou os argumentos da defesa da revista. Ela entendeu que Veja apenas cumpriu o dever jornalístico de prestar informações ao público. Maria Luiza condenou Lopes ao pagamento das custas, das despesas processuais e dos honorários advocatícios fixados em R$ 26.000.

O advogado Manoel Messias Peixinho, que representa Lopes, disse à revista Consultor Jurídico que vai recorrer. ‘Entendemos que a sentença não levou em consideração todos os fatos narrados na ação, como a suposta conta no exterior citada pela revista. Francisco Lopes foi absolvido no processo criminal que investigou essa suposta conta’, afirmou Peixinho.’



CENSURA MILITAR
Ricardo Calil

‘Censura sabia o que fazia’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 1/05/05

‘Em 1969, os negativos e todas cópias em circulação no Brasil do filme ‘El Justicero’, de Nelson Pereira dos Santos, foram apreendidos e destruídos pela Polícia Federal em uma operação secreta. Na época, o cineasta não encontrou ninguém que lhe explicasse de quem partiu a ordem, nem descobriu o que a motivou, já que o filme havia sido liberado pela censura dois anos antes. ‘El Justicero’ sobreviveu apenas porque o cineasta David Neves havia levado uma cópia em 16 mm para Pesaro, na Itália. Mas, durante 35 anos, a apreensão do filme permaneceu como um mistério no cinema brasileiro.

No ano passado, Nelson Pereira foi entrevistado pela pesquisadora Leonor Souza Pinto para um projeto sobre a censura ao cinema no regime militar. Durante a conversa, ela lhe apresentou um documento confidencial encontrado no arquivo do Serviço de Censura que finalmente elucidava o que havia acontecido a ‘El Justicero’. Em carta ao diretor da Polícia Federal, o chefe da Censura explicava: ‘(Em setembro de 1967) o então chefe do SCDP (Serviço de Censura de Diversões Públicas) determinou a liberação do filme (…) fixando a impropriedade para menores de 18 anos e cortes de algumas palavras de baixo calão e de propaganda anti-revolucionária. (…) Todavia, como medida extrema e em atenção ao documento originário do Ministério do Exército, na presente data (outubro de 1969), foi encaminhado um radiograma circular às Delegacias, Sub-delegacias e Postos da Polícia Federal determinando a apreensão do referido filme em todo o Território Nacional e sua remessa para Brasília, a fim de que seja reexaminado de acordo com os novos princípios e diretrizes impostas para os espetáculos de diversão pública.’

Segundo Leonor, o documento mostra que a apreensão foi realizada a pedido do Exército, possivelmente incomodado com a sátira ao regime militar em ‘El Justicero’. ‘Eu fiquei assombrado com a descoberta da carta. Finalmente entendi o que havia acontecido ao filme’, diz Nelson Pereira dos Santos. ‘O projeto da Leonor presta o grande serviço de informar ou rever aspectos básicos da relação do Estado com o cinema no Brasil.’

O caso de ‘El Justicero’ é apenas um exemplo da importância do trabalho realizado por Leonor, uma das mais profundas e extensivas já feitas sobre a censura ao cinema brasileiro. Professora da Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, e atriz em filmes como ‘Vida de Menina’ e ‘Olga’, Leonor se dedica ao tema há oito anos. O resultado de seu esforço chegará ao público este ano de duas maneiras. Dentro do projeto de Disponibilização do Acervo da Censura sobre o Cinema, com apoio do Programa Petrobras Cultural, Leonor irá digitalizar parte da documentação gerada pela censura entre 1964 e 1988, hoje depositada no Arquivo Nacional de Brasília, e reproduzir os arquivos em um site e em CD-ROMs que serão distribuídos a bibliotecas de todo país.

Ingenuidade acaba em 1967

Até agosto, deverá entrar no ar o site com o primeiro bloco do projeto, que terá processos da censura contra 166 filmes realizados naquele período por 26 cineastas, entre eles Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, João Batista de Andrade, Roberto Farias, Ruy Guerra, Rogério Sganzerla e Julio Bressane Além dos processos, o site contará com fichas do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e entrevistas que Leonor fez com os cineastas. Atualmente, uma página em construção já pode ser acessada. A pesquisadora aceita contribuições de material de imprensa sobre os filmes, como fotografias, reportagens, críticas e cartazes.

‘A digitalização foi a maneira que encontrei para preservar esse material e fazê-lo chegar ao público. O acervo é praticamente inacessível e encontra-se em uma sala sem climatização e sujeita a goteiras no Arquivo Nacional. Como diz o Antônio Cícero em um poema, guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la, e sim olhá-la, fitá-la’, afirma Leonor. ‘Esse é um momento de revisão histórica, como mostra a cobrança pelos documentos sobre a Guerrilha do Araguaia. Também está na hora de discutir o papel da censura, que é um tema muito comentado, mas pouquíssimo conhecido.’

Depois que o site entrar no ar de forma definitiva, Leonor irá lançar pela editora Garamond um livro sobre o tema, que terá como base a tese de doutorado ‘Memória da Ação da Censura sobre o Cinema Brasileiro – 1964/1988’, defendida por ela na Université de Toulouse Le Mirail, na França, em 2001. Na tese, Leonor analisou os processos de 77 filmes dos mesmos 26 realizadores e chegou a conclusões surpreendentes sobre o papel da censura no cinema nacional.

O resultado da pesquisa revela que a censura teve uma atuação qualificada e desmente o mito de que ela agia de forma ingênua. ‘A imprensa tende a tratar a censura de forma jocosa, como se os censores fossem idiotas’, afirma a pesquisadora. ‘Mas a pesquisa mostra que a censura teve um papel fundamental nos caminhos traçados pelo cinema brasileiro no passado e na rebordosa que a gente vê até hoje. Os censores agiram de forma consciente para fragilizar o cinema brasileiro. E foram muito bem-sucedidos.’

Segundo Leonor, a censura só atuou de maneira ingênua no período de 1964 a 1967, quando os censores eram funcionários públicos realocados, muitos deles sem preparo para a função. O processo de censura de ‘A Falecida’ (1966), de Leon Hirszman, é exemplar desse período. No documento, o censor atua como crítico diletante (‘Fernanda Montenegro tem sua pior representação’) e se recusa a dar o carimbo ‘BQ’ (Boa Qualidade) ao filme, impedindo sua venda para o exterior e causando sérios problemas financeiros a Hirszman.

Mas, a partir do endurecimento do regime militar, a situação muda completamente de figura, com a criação de cursos de formação para censores na Polícia Federal e a exigência de diploma universitário para a função. ‘O processo de análise de conteúdo dos filmes passa a ser absolutamente político. Aqui começam a aparecer termos como ‘propaganda anti-revolucionária’, ‘clichês comunistas’ e assim por diante’, conta Leonor.

Zé Celso, visionário

A leitura ‘ideológica’ dos filmes já começa a ser observada em processos de filmes como ‘Terra em Transe’ (1967), de Glauber Rocha. ‘(…) Fazem ‘takes’ conclamando o povo à luta armada, em represália aos governos demagogos e opressores que o fazem sofrer privações’, escreve o censor no documento, antes de decretar a interdição do filme (mais tarde revogada, com modificações feitas por Glauber).

O processo de ‘ideologização’ da censura atinge em pouco tempo graus elevados de sofisticação, como no caso do processo de ‘Macunaíma’ (1969), de Joaquim Pedro de Andrade. ‘Há coisas no filme que o espectador comum não percebe, mas a censura sim’, afirma. ‘Tem um vestido da Joana Fomm em que a estampa lembra o símbolo da Aliança para o Progresso (acordo entre países da América Latina concebido pelos EUA, com o objetivo de conter o avanço do socialismo na região). Até isso eles enxergaram e cortaram’, diz Leonor.

Nessa época, o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa, que teve a peça ‘Roda Viva’ censurada, declarou: ‘Se existe alguma coisa eficiente nesse país, é o Departamento de Censura. Ou a gente faz alguma coisa para tomar tenência disso ou a gente vai se arrepender muito, porque eles sabem o que estão fazendo.’ Para Leonor, Zé Celso foi visionário nessa declaração.

A pesquisadora conta que os censores conheciam a fundo a plataforma de todas as organizações clandestinas e também as orientações políticas dos principais cineastas internacionais. Isso fica claro em uma apostila de um curso para censores, em 1974, batizada de ‘Os Cineastas Franceses Esquerdistas’. Em um trecho, o Departamento de Censura escreve: ‘Os cineastas brasileiros, ingênuos uns, ambiciosos outros, estão sendo envolvidos por cineastas franceses esquerdistas, que procuram de qualquer maneira um contato com a juventude brasileira.’

Em outro trecho, eles dão nomes aos bois, franceses ou não: Jean-Luc Godard (que, segundo Leonor, era vista como ‘mentor intelectual dos cineastas brasileiros’), Michelangelo Antonioni (chamado curiosamente de ‘Mao Tse-Tung italiano’), Robert Altman (‘especialista em infiltração subliminar subversiva’), Pier Paolo Pasolini, Bernardo Bertolucci, Francesco Rosi, Arthur Penn, Sam Peckinpah, Costa Gravas, Raul Ruiz e muitos outros.

Com o recrudescimento da censura, os filmes brasileiros começaram a ser retalhados impiedosamente. Mesmo os filmes apoiados pela Embrafilme eram cortados. ‘O governo financiava os filmes e depois censurava. Eles eram proibidos aqui, mas liberados na íntegra para o exterior. O governo militar não se assumia como ditadura, queria manter uma fachada de democracia. Era uma coisa maquiavélica’, diz Leonor.

Agentes seguiam Glauber

Os cineastas não apenas tinham seus filmes cortados, como alguns deles eram vistos como ameaça ao governo. Leonor encontrou nos arquivos do Dops documentos que mostram que vários deles eram vigiados constantemente por agentes ou informantes do órgão, entre eles Glauber Rocha, Ruy Guerra e João Batista de Andrade.

Segundo Leonor, essa documentação desmente a idéia muito difundida de que Glauber era paranóico ou que sofria de mania de perseguição. ‘Ele não tinha nada de louco. Era realmente seguido passo a passo por agentes do órgão, que anotavam tudo que ele fazia, todas as pessoas com quem ele se encontrava e até a roupa que ele estava usando’, conta. Leonor também encontrou nos arquivos uma seqüência de fotos de João Batista chegando a um encontro do PCB. O cineasta ficou surpreso com a descoberta. ‘Nunca percebi que era seguido e nunca imaginei que me viam como uma ameaça’, diz.

Se alguns cineastas brasileiros optaram pelo exílio, como Glauber, a maioria seguiu um conselho dado a Roberto Farias pelo célebre crítico francês Georges Sadoul. ‘Continue no Brasil fazendo o cinema que for possível. Um dia, a ditadura vai passar, mas os filmes que vocês fizeram irão permanecer.’ Muitos deles faziam romaria ao Departamento de Censura para negociar exaustivamente cada corte. ‘Era uma coisa cotidiana viajar a Brasília nessa época. Às vezes, a gente não sabia se ia voltar’, conta Nelson Pereira.

Alguns recorriam a um método que Leonor batizou de ‘boi de piranha’: colocavam nos filmes cenas de caráter apelativo, seja político ou erótico, mas sem nenhuma importância para a narrativa, apenas para atrair a atenção dos censores; depois, na negociação com a censura, sugeriam cortar essas cenas para preservar outras realmente relevantes. ‘Cacá Diegues, Joaquim Pedro e Nelson Pereira usaram muito esse expediente’, conta Leonor.

Mas a principal maneira encontrada para driblar a censura foi o recurso à metáfora. ‘Os cineastas começaram lentamente a ficar mais herméticos. Não deixou de ser um movimento de resistência, para que o cinema brasileiro continuasse existindo’, afirma Leonor. Os cineastas confirmam a tese. ‘Nós dificultamos a comunicação conscientemente. Mas não havia outra opção. A censura era sofisticada, chegava a ser cínica. ‘Ninguém vai entender esses filmes’, sempre me dizia um censor’ – conta Nelson Pereira.

Para a pesquisadora, o hermetismo resultante da censura criou uma desconfiança do público com os filmes brasileiros que até hoje não foi totalmente superada. ‘Boa parte do cinema brasileiro virou uma coisa incompreensível, intelectual demais para o público comum. Alguns filmes do Nelson, como o ‘Quem é Beta’, são uma loucura total. Aí começa a pipocar uma outra estética, mais psicodélica.’

Ao lado desses filmes metafóricos, havia outros de grande sucesso comercial, mas politicamente inofensivos, como ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos’, as comédias de Mazzaropi e dos Trapalhões e as pornochanchadas. Com esse cenário, os censores foram relaxando gradativamente com o cinema ao longo dos anos 70 e voltando seu foco para a televisão, que passou a ser o grande veículo de comunicação da ditadura.

Mas, em alguns casos, a censura voltava a exibir a velha forma, como no de ‘Pra Frente Brasil’ (1982), de Roberto Farias. O filme foi interditado por um ano, e o impasse levou à demissão de Celso Amorim, então presidente da Embrafilme e hoje ministro das Relações Exteriores. ‘Um general do Exército chegou a dizer que o filme era uma senha para disparar uma guerra de guerrilha urbana no Brasil’, lembra Farias. ‘Nós negociamos muito, tivemos que ceder em algumas coisas. Fui acusado de não bater de frente com a ditadura. Mas as pessoas achavam que a abertura era muito maior do que era na verdade.’ Depois de vários protestos públicos, ‘Pra Frente Brasil’ foi finalmente liberado, e a polêmica acabou ajudando o filme a se tornar um enorme sucesso.

Com o fim do regime militar em 1984, a censura política ao cinema também terminou. ‘Je Vous Salue, Marie’ (1986), de Godard, foi interditado por motivos religiosos pelo então presidente José Sarney. Mas se engana quem pensa que a censura não atuou no período de redemocratização. Os censores continuaram de olho na televisão, cortando cenas ou limitando o horário de exibição de filmes como ‘Pixote’ ou ‘Macunaíma’. O capítulo da censura no cinema brasileiro só foi encerrado em 1988, com a promulgação da nova Constituição.’