‘O XIS DA QUESTÃO – Nascido dos sonhos de um libertário (o mestre tipógrafo Antonino José de Miranda Falcão), o Diário de Pernambuco, surgiu, contraditoriamente, como um jornal sem bandeira partidária. Depois, na maioridade, fez escolhas ideológicas de natureza acentuadamente liberal. Agora, em sede nova, olhando com ambições o futuro, tenta modernizar a identidade. Oxalá encontre ideários humanistas, para as adequações aos novos tempos. E para que a identidade não seja apenas uma questão gráfica.
1. Olhar sobre a História
Ao considerar o jornalismo ‘trabalho efêmero, sem mérito e sem utilidade’, o filósofo e romancista Jean-Jacques Rousseau, pensador iluminista que mais influenciou os rumos do mundo contemporâneo, deu contundência especial à crítica que os enciclopedistas faziam à imprensa da época. Diderot, o maior dos enciclopedistas, contemporâneo de Rousseau, foi particularmente virulento no achincalhe, ao ajuizar os jornais como ‘pasto dos ignorantes’.
Mas os sábios também se equivocam. Apesar de diagnósticos tão vilipendiosos, a imprensa e o jornalismo se expandiriam nos dois séculos seguintes, para se tornarem energia e fontes de conhecimento indispensáveis ao mundo.
Embora a crítica iluminista tivesse por alvo, provavelmente, o ‘jornalismo’ de pasquim que dava tom às empolgadas polêmicas políticas da época, a imprensa diária já existia, desde 11 de maio de 1702, quando foi à rua a primeira edição do Daily Courant.
Esse jornal inglês fez história não apenas por ter sido o primeiro diário a surgir no mundo, mas, também, pela prática de um jornalismo voltado quase integralmente para a notícia, numa época em que o articulismo era e seria a forma discursiva preponderante nos periódicos. Por inspiração e sob o comando do jornalista Samuel Buckley, foi o Daily Courant que separou as notícias dos comentários, dando origem à teoria de gêneros que divide o jornalismo em textos de informação e textos de opinião – fraude teórica que persiste até hoje.
Talvez por causa da força do articulismo – mas não só por isso – o Daily Courant resistiu apenas 33 anos. Quando desapareceu, em 1735, ainda não existia qualquer outro jornal diário. Só 42 anos depois (em 1777) surgiria o Journal de Paris. E, em 1784, nasceu o Pensylvania Packet, primeiro jornal diário americano.
No universo de língua portuguesa, o primeiro jornal diário foi o Diário Lisbonense, lançado em 1809. No Brasil, só em 1821 surgiria o Diário do Rio de Janeiro. Mas, tal como aconteceu ao Daily Courant, esses dois jornais poucos anos resistiram às dificuldades de sustentação, em tempos de analfabetismo generalizado e mercado curto. Outro fator limitante era a tecnologia insipiente, que não favorecia o ‘fazer gráfico’ nem a amplitude e a rapidez da difusão, pressupostos operacionais do jornalismo diário. A impressora rotativa só em 1846 entraria em operação (no Philadelphia Public) e a linotipo surgiria mais tarde ainda, em 1885, usada pela primeira vez no New Yorl Tribune.
E por que se conta aqui toda essa história?
Porque, apesar das dificuldades quase insuperáveis – financeiras, culturais e tecnológicas – que matavam os sonhos da imprensa diária até à primeira metade do século XIX, um jornal surgiu para ficar e singrar, a 7 de Novembro de 1825, uma segunda-feira – o Diário de Pernambuco, que, 186 anos depois, é um diário pleno de vitalidade, estreando sede nova, moderna, com lugar próprio, e sólido, no cenário da grande imprensa brasileira. Mas que, na origem, era apenas uma folha de pequenos anúncios, de 24X 19cm, vendida a 40 réis em boticas e botequins, a pacatos cidadãos entretidos na conversa da ‘hora do cavaco’.
2. Das origens às escolhas ideológicas
Claro que não cometerei o desatino de tentar resumir em três ou quatro mil caracteres a história de um jornal que tanto já viveu e tanto tem para contar. Até porque, de alguma forma, esse resumo está feito e publicado, em texto assinado pelo saudoso Antônio Camelo, que serve de prefácio ao livro Diário de Pernambuco – História e Jornal de Quinze Décadas, no qual o jornalista e escritor alagoano Arnoldo Jambo, autor da obra, faz o relato contextualizado dos primeiros 150 anos do jornal (1825-1975).
Ao prefaciar o livro, escreve Camelo, sobre o Diário de Pernambuco: ‘O mestre tipógrafo Antonino José de Miranda Falcão, que o criou a 7 de novembro de 1825, embalara os sonhos da sua juventude nos ideais da Revolução de 1817. Ajudara depois Frei Caneca a imprimir o Typhis Pernambucano e participara na linha de frente da revolta da Confederação do Equador, em 1824. Condenado a longos meses de prisão na Fortaleza do Brum, no Recife, dela não sairia nem domado nem convertido. Pelo contrário. Suas convicções e sua revolta cresceram no cárcere, para onde não tardaria a voltar, (…) em 1829, por crime de sedição.’
Pois esse libertário, como Camelo lembra e exalta, quis fazer um jornal para durar. E, para isso, evitou dar-lhe ‘bandeira de partido’. Na ‘Introdução’ que apresentava o primeiro número, Miranda Falcão dizia ao que vinha, com o novo jornal: ‘Facilitar as transações’ e publicar notícias ‘que a cada um podem interessar’.
O Diário de Pernambuco apresentava-se, portanto, com ‘uma orientação informativa’, fugindo – como escreve Antonio Camelo – ao ‘torvelinho das paixões políticas’, conduta que ‘por certo concorreu, como bem planejara Falcão, para firmar o Diário logo no nascedouro, evitando que ele desaparecesse, como tantos outros’.
Para Antônio Camelo, o Diário de Pernambuco foi sempre fiel a uma dinâmica de inserção no ambiente social, influenciando-o e por ele sendo influenciado, dos vários tempos históricos do seu percurso. E pela coerência (nem sempre fácil de entender – e esse é um comentário meu), que lhe elaborou a história, o Diário ‘foi trincheira contra o arbítrio imperial nos tempos de D. Pedro I’ e ‘soube ser conservador nas épocas construtivas e tranqüilas do 2º Império’; não deixou de ‘exaltar a Abolição, mas aplaudiu com reservas a República’; aderiu às ‘lutas políticas das duas primeiras décadas do século, sempre se batendo contra a prepotência e a tirania’; ‘defendeu a Revolução de 30 e com ela se decepcionou’; ‘alinhou ao lado das forças aliadas na Primeira Guerra e se empolgou no combate ao nazi-fascismo na Segunda’; em tempos mais recentes, empenhou-se ‘na luta contra o Estado Novo (…)’ e ‘liderou, no Norte-Nordeste, a campanha contra o comuno-janguismo em 1963-64’.
3. Figuras maiores
No percurso de 178 anos, há uma fileira de nomes importantes, impossível de citar. Mas, e sem falar em Chateaubriand, permito-me salientar duas figuras maiores, que influenciaram fortemente o jornal e lhe moldaram traços fundamentais na fisionomia ideológica e cultural. Uma, o poeta Mauro Mota, ligado aos melhores momentos culturais do jornal. Ele foi secretário de redação por vários anos, e depois diretor, mas deixou sua marca na criação de um suplemento literário que marcou época, projetou nomes e novos valores, animando a vida cultural de todo o Nordeste.
Como escreve Aroldo Jambo (pág. 406), ‘com a ‘Literatura da Semana’, Mauro Mota animou jovens de uma forma nunca antes experimentada. Comentava-os, estimulava-os, divulgava-os, ao tempo em que os apoiava em suas próprias células regionais – em suas cidades’.
Outra figura notável na história do Diário de Pernambuco foi o sociólogo Gilberto Freyre, principal criador das marcas ideológicas que identificam ainda hoje o jornal. Ele começou a colaborar no Diário em 1918, e chegou a dirigi-lo por alguns meses, em 1934. Mas marcou sua presença e influência como articulista de espaço cativo, ao longo de décadas.
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Em sede nova, de linhas modernas, o Diário de Pernambuco olha com ambições o futuro, sem destruir o passado, guardado na velha sede que será transformada em Memorial. Oxalá encontre ideólogos e ideários para as adequações aos novos tempos.’
JORNALISMO & IDENTIDADE
‘Falta identidade aos nossos jornais’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 2/07/04
‘O XIS DA QUESTÃO – Há uma pergunta-chave, essencial para as pessoas, que deveria ser aplicada, e com urgência, aos jornais diários em crise: – Quem sou eu? Mas a construção do ‘eu’ não pode nem deve ser feita diante de espelhos. É nas relações com o mundo, olhando para os outros, em interações de deveres e direitos, que a identidade se define e se afirma – a das pessoas, como a dos jornais. E porque falta identidade aos jornais, eles se tornaram tão parecidos entre si.
1. ‘Quem sou eu?’
O artigo de Eduardo Ribeiro (‘Nossos jornais são chatos?’) sobre a crise que hoje descaracteriza e rouba importância aos grandes diários, motivou interessantíssimo debate, ao qual gostaria de acrescentar algumas idéias, em torno de um tema que me parece particularmente importante, como fator de causa e efeito nessa crise de criatividade de que nos fala o colega Eduardo. Refiro-me à questão da identidade, raramente abordada em nossos debates.
Há uma pergunta-chave, essencial para as pessoas, que deveria ser aplicada, e com urgência, aos jornais diários em crise: – Quem sou eu?
Se os jornais falassem, ou se alguém falasse por eles, obteríamos respostas muito semelhantes. Infelizmente. Porque, embora com histórias diferentes, os grandes jornais nunca estiveram tão iguais entre si. Iguais na seleção de notícias, nos critérios jornalísticos, no desenho gráfico, no jeito de ser e fazer. E na ausência de identidade se reflete uma outra monotonia, bem mais grave: todos se relacionam com o mundo do mesmo jeito, reproduzindo os jogos de poder por escolhas de adesão aos interesses dos mais fortes.
Quem sou eu?
Não se trata de uma pergunta fácil. A primeira coisa a entender é que ninguém saberá quem é, se procurar a resposta em espelhos.
Foi Jostein Gaarder quem melhor nos ensinou que a descoberta do eu não se dará diante de espelhos, mas nas relações com o mundo. É olhando para os outros, nas interações de deveres e direitos, que a identidade se define e se afirma. A das pessoas, como a dos jornais.
Jostein, vocês sabem, é o genial escritor norueguês que criou para nós O Mundo de Sofia, já traduzido e vendido em 42 línguas. Quase trinta milhões de pessoas compraram o livro, encaminhando para a conta bancária de Jostein ganhos que o tornaram rico. Mas quem mergulhou no mundo de Sofia ganhou, se não mais, pelo menos com outro tipo de lucro. Porque, se bem entenderam a intenção criativa do autor, descobriram, nos percursos da história contada, o desafio e a complexidade da pergunta – quem sou eu?.
2 . Relações com o mundo
Quando, três ou quatro anos atrás, passou pelo Brasil, Jostein deu uma entrevista brilhante à TV Cultura de São Paulo. E a idéia forte em torno da qual se construiu a conversa foi essa de que ninguém descobrirá quem é se apenas olhar para si próprio.
Apliquemos a idéia aos jornais. E concluiremos que cada um deles terá que se descobrir e identificar olhando o mundo de que faz parte e tomando consciência das conexões vitais que o ligam a esse mundo, das quais resultam não apenas direitos, mas também deveres.
Estou convencido de que a ausência de uma identidade lúcida e honestamente assumida explica, em boa parte, a crise de criatividade que assola o jornalismo diário impresso.
Pensemos nos jornais que cada um de nós conhece mais de perto. Será que algum deles, por seus responsáveis ou por suas equipes de redação, já impôs a si mesmo a pergunta de ‘quem sou eu?’ – quem sou eu, nas relações de direitos e deveres que me ligam à vida e ao mundo?
Alguns, ou muitos, pensarão que admiti, aí, uma hipótese inviável, essa de imaginar jornais preocupados com a descoberta do seu ‘eu’ e a elaboração da uma identidade. Outros dirão que essas idéias não passam de devaneios de alguém que continua a acreditar na essencialidade de uma relação idealista com a profissão. Talvez estejam certos.
Mas como o idealismo terá de pertencer não aos jornais, mas às pessoas que os fazem, proponho que comecemos pela atitude corajosa de fazermos a pergunta a nós mesmos, em diálogos silenciosos com a própria consciência: – Que jornalista sou eu, nas relações de direitos e deveres que me ligam à vida e ao mundo?’
Eduardo Ribeiro
‘Nossos jornais são chatos?’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 30/06/04
‘Como quase todas as outras atividades profissionais existentes, o jornalismo brasileiro também foi vítima de uma convergência perversa de fatores que levou grande parte dos veículos a expurgar de seus quadros os colegas mais experientes, alguns, inclusive, de alto coturno – ou, caso prefiram, do chamado alto clero. Falamos sobre isso, aliás, no último artigo (Repatriar a experiência).
É um fenômeno (ou uma aberração) que se acentuou de uma forma impressionantemente veloz ao longo desta que eu reputo ter sido a maior crise de emprego já vista na história do jornalismo brasileiro. É preciso, no entanto, reconhecer que não foi só na crise que isso ocorreu. Muito antes já se notava que as redações não tinham espaço ou atrativos para inúmeros jornalistas competentes, talentosos e experientes. E vários foram os fatores: baixos salários, embates trabalhistas com as empresas ou com as chefias, estresse, desinteresse com o jornalismo praticado no País, jornadas extenuantes de trabalho, ausências de fins de semana com a família etc. etc. etc.
A conseqüência dessa diáspora, nós vemos todos os dias na qualidade, não técnica (porque neste quesito estão entre os melhores do mundo) e sim editorial, dos jornais, revistas, telejornais e mesmo nas programações das chamadas rádios jornalísticas. Os veículos deixaram de ousar, de criar, de sonhar, de amalgamar-se com seus leitores, telespectadores e ouvintes. Mediocrizaram-se e as exceções estão aí exatamente para confirmar a regra.
Temos uma grande imprensa pautada quase pelos mesmos valores e pelos mesmos assuntos, com medo de ousar, acomodada numa zona de enganoso conforto, tentando entender o que está acontecendo com suas tiragens e com sua audiência, sem muita idéia do que reserva o futuro.
E temos, sobretudo, um grande desafio pela frente: o de resgatar a importância do jornalismo impresso, elevando seu poder de influência sobre a sociedade, que vem progressivamente diminuindo.
Quem não mudar a fórmula, quem não se atualizar, quem não ousar, vai acabar ficando pelo caminho, por falta de leitores.
Num recente encontro com colegas das agências de comunicação, Carlos Eduardo Lins da Silva, ex-diretor adjunto do jornal Valor Econômico, lembrou que os jornais e revistas no Brasil, e mesmo no Exterior, são, hoje, muito chatos e não conseguem atrair a juventude. E isso explica em boa parte a vertiginosa queda nas tiragens que ocorre em quase todo o planeta.
A fórmula atual é antiquada e baseada num modelo arcaico de jornalismo, que não mais cabe num cenário de globalização, internet e veiculação de informação em tempo real, por múltiplos meios, incluindo o celular, que chega ao fulano, onde ele estiver.
Como competir editorialmente com eles? Impossível. Mas mesmo assim, os veículos impressos pouco mudaram e teimam em manter uma fórmula editorial ultrapassada. Ou não é verdade que nossos jornais e revistas dão com atraso, e com poucas novidades, o que todos já viram na TV, na Internet ou no rádio, em tempo real?
Lins da Silva também falou da dificuldade de mudar a cabeça dos jornalistas que estão nas redações, os quais, em sua grande maioria, não aceitam a premissa de que é preciso mudar para acompanhar as transformações do mundo e da atividade profissional. E isso é até compreensível, uma vez que uma atitude como essa tem o mesmo valor de conclamar alguém a jogar grande parte do que aprendeu na lata do lixo e praticamente começar de novo.
Não se trata de reinventar o jornalismo, mas de fazer jornalismo de acordo com a característica do veículo e com as necessidades do público. Se anteriormente não havia a mínima condição de acompanhar as notícias em tempo real, era natural acompanhar os acontecimentos do dia ou da semana, no jornal do dia seguinte ou nas revistas de final de semana. Mas quando isso muda, e o público passa a acompanhar o noticiário em tempo real, via Internet, TV, rádio, celulares etc., o veículo que cumpria este papel precisa mudar, para sobreviver.
Quais seriam as fórmulas? Estão aí as Universidades Navarras da vida pesquisando isso o tempo todo e percorrendo o mundo com suas propostas, entre elas a de que é preciso que o noticiário dos jornais e revistas olhem muito mais para a frente e de forma analítica do que para trás, que usem as notícias do dia para tentar enxergar que conseqüências elas terão na vida do cidadão amanhã, que analisem os acontecimentos, que levem insights para os leitores. Humor, visual e linguagem mais adequada também são desejáveis, se o objetivo for atrair o jovem. Mostrar que o mundo e as pessoas também são do bem pode dar um surpreendente resultado.
Que é preciso mudar é consenso. Que nossos jornais estão muito chatos e perdendo circulação também. Mudar, portanto, é apenas uma questão de tempo, oportunidade e inteligência. Ou não?
Está aberto o debate.’