‘O XIS DA QUESTÃO – Para o jornalismo, o acontecimento não se define como aquilo que simplesmente acontece, mas como aquilo que, ao acontecer, produz ou pode produzir alterações significativas na realidade e no mundo presente das pessoas. Por esse entendimento, a atualidade que interessa ao jornalismo tem o gene da transformação, não o da efemeridade.
1. Estigma do efêmero
‘Lula critica quem paga juros de cartão’; ‘Senado aprova nova Lei de Falências’; ‘ACM se queixa de favorecimento’ (na distribuição de verbas, pelo governo federal); Maluf declara ao TER conta no exterior’; ‘Bens do vice de Serra sobem 316% em quatro anos’.
Essas notícias estavam entre as que ganharam destaque de primeira página, nas edições dos principais jornais do país, quarta-feira passada, dia 7. Vieram ao mundo e morreram no mesmo dia. No dia seguinte, quinta-feira, a vida noticiada já parecia outra: ‘Senado aprova reforma do Judiciário em 1º turno’, ‘Presidente argentino quer ampliar guerra comercial com Brasil’, ‘TSE veta repasse da União para obra não iniciada’…
Por causa desse ciclo noticioso – antigamente organizado a intervalos de 24 horas, hoje perturbado pela instantaneidade da difusão – pensam alguns que o jornalismo faz o relato de efêmero. Jornal de ontem joga-se fora, vira papel, lixo, pois as notícias só o são enquanto conservam o revestimento da novidade. E por acreditarem que o jornalismo se nutre do efêmero, e que ao efêmero se limita, vêem nisso uma fragilidade irremediável, o que os anima a desqualificarem o jornalismo tanto como linguagem quanto como processo. Pois eu digo que na efemeridade da notícia está a força do jornalismo.
Em primeiro lugar, é necessário dizer que o jornalismo não se nutre do efêmero. Nutre-se do acontecimento, que tem em si a natureza do efêmero, por ser o presente o tempo real da atualidade. Mas o acontecimento é efêmero apenas na sua materialidade. Porque os sentidos que lhe dão força e significação estão todos na instância da transformação, vinculada a contextos de causas e conseqüências de alguma complexidade.
2. O ‘hoje’ que transforma
Para o jornalismo, o acontecimento não se define como aquilo que simplesmente acontece, como dizem os dicionários, e sim aquilo que, ao acontecer, produz ou pode produzir alterações significativas na realidade presente das pessoas. E o potencial transformador de um acontecimento noticiável já configura a probabilidade de decorrências igualmente noticiáveis. Assim funciona a dinâmica da atualidade, na qual se explica o segredo do sucesso da periodicidade jornalística, que não é um intervalo entre edições, mas um ritmo narrativo sincronizado com a vida que se afirma na transformação.
A relevância jornalística dos acontecimentos será tanto maior quanto maior for o potencial desorganizativo ou reorganizativo dos fatos. Se quisermos usar um exemplo, pincemos, dos acontecimentos recentes, o escândalo Waldomiro Diniz, que tão duramente lesou a imagem pública do ministro José Dirceu. Ele próprio admitiu, há dias, ter sido atingido na sua honra.
Nos dias seguintes à revelação jornalística do conteúdo da fita gravada, novos fatos (ações e reações) sustentaram o escândalo nas primeiras páginas, mas em decrescendo. O acontecimento se esgotou quando se esgotaram os fatos transformadores, significativos para a atualidade.
Nessa lógica, todos os acontecimentos de alguma complexidade, com maior ou menor duração, cumprem um percurso de três estágios: o surgimento, o ápice e o esgotamento. Porém, os que interessam ao jornalismo não passam em vão, porque alteram a realidade, pela via das ações, dos confrontos, das explicações ou dos desvendamentos que os constituem, enquanto narração.
Nos estudos do jornalismo, a teoria do acontecimento faz parte de uma disciplina chamada ‘Efemerologia’, ainda não descoberta pelos currículos brasileiros. Mas eu penso que a relação do jornalismo com o acontecimento não se dá na instância do efêmero. Dá-se no plano da vocação transformadora dos fatos noticiáveis, entendidos como ações humanas conscientemente produzidas e controladas, para desorganizar e/ou reorganizar as coisas, na contínua e fascinante elaboração do presente.
Por esse entendimento, a atualidade que interessa ao jornalismo tem o gene da transformação, não o da efemeridade.’
PAUTA & JORNALISMO
‘O goleiro do jornalismo’, copyright Comunique-se, 9/7/04
‘Tenho exercido várias funções jornalísticas ao longo dos anos. Eu e a torcida do Corinthians. Recomendo esse rodízio. Com o tempo, a gente consegue ter uma visão mais acurada, não só do conteúdo quanto da própria sinergia do veículo em que trabalhamos. A reportagem – tida e havida como nobre – justifica os seus densos louros, mas raras vezes nos permite analisar um jornal – seja lá em que mídia for.
Na televisão, poucos repórteres participam da reunião de pauta. São premidos pela correria infligida pelas marcações, pela apuração recorde, pelo áspero chicote da chefia de reportagem que, por sua vez, tem que atender ao bom-senso para fechar a tempo.
A ausência do repórter nas reuniões – refiro-me à maioria e ao jornalismo diário – é um óbice para quem tenta ‘enxergar’ o jornal. Não basta assistir no ar. É na reunião de pauta que se pescam as sutilezas do que seja a linha – mestra a ser seguida.
Nesse aspecto, o pauteiro (ou produtor) é um privilegiado. Ele tem a seu dispor um arco de informações significativamente amplo – porque vai atrás e porque é assediado pelos assessores de imprensa, telespectadores e demais agentes sociais. Mas não só isso. É uma função que estimula o filtro que resulta da análise e do embate de idéias com os editores. De forma geral, quando se trata de aprovar ou rejeitar uma pauta, o sim e o não são justificados, o que enriquece. É claro que há os editores prepotentes que dizem ‘quero’ ou ‘não quero’, e ponto final. Mas, de modo geral, explica-se. Podemos concordar, discordar, achar legal ou absurdo, não importa: saímos da reunião mais experientes – por vezes, mais nervosos também.
Por que, então, o pauteiro é um injustiçado? Porque poucos lhe dão o crédito ao criar e pôr a matéria em pé. Olhe para a tela e confira: quantas vezes você vê o nome do produtor de uma reportagem? Respondo antes: raras. É como se ele trabalhasse na cozinha engordurada do jornalismo. Essa é mesmo a percepção geral, embora velada. Falo disso com a segurança de quem tem vivido essa ciranda de funções: quem quiser glamour, status ou, no mínimo, o justo reconhecimento profissional evite a pauta: seja repórter, editor ou âncora. O pauteiro é tido como um subalterno, um carregador de piano, um zagueiro. Não, ele é o goleiro do jornalismo: quase não aparece; se acerta é obrigação; se os outros erram, afunda junto; e o mérito da vitória é de quem faz o gol.’
LÍNGUA PORTUGUESA
‘Os nomes do povo’, copyright Jornal do Brasil, 12/7/04
‘Qual o conceito de ‘povo’ que vem escondido em atos e falas de nossas autoridades? Constantemente invocado como beneficiário das medidas tomadas em Brasília, o povo brasileiro recebe na imprensa o contraponto de insólitas designações.
Choldra e escumalha, subentendidas na locução ‘andar de baixo’, naturalmente em oposição ao ‘andar de cima’, são sinônimos de povo?
Teria entrada no ‘andar de cima’ o povo, definido pelo dicionário Aurélio como ‘conjunto de indivíduos que falam a mesma língua, têm costumes e hábitos idênticos, afinidade de interesses, uma história e tradições comuns’?
Às vezes, a resposta a graves questões vem por vias transversas. Em minha adolescência, um padre, depois de longa e enfadonha aula de religião, tendo provado que o céu não ocupava lugar, encerrou, muito seguro: ‘Alguma pergunta?’
‘Se o céu não ocupa lugar’, indagou um aluno, o Benedito, ‘ele pode caber no cantinho da unha deste meu dedo?’
O professor não esperava pergunta tão complexa. Para ele, o mundo cabia na filosofia escolástica. Guilherme de Ockham, em suma lógica, e Tomás de Aquino, em suma teológica, apoiados em antigos sábios gregos, tinham organizado direitinho o mundo para ele, ao conciliar razão e fé. Mas tamanho saber de nada lhe servia para responder a aluno de pensamentos tão desarrumados.
‘Evidentemente que não, Benedito. O céu é lugar de muita limpeza, de higiene total, um espaço imaculado, e veja só como a sua unha está suja!’ Os outros pupilos do senhor reitor gargalharam. O mestre sorriu, agradecido. A solução lhe chegara por ínvios caminhos.
Pois com o conceito de povo dá-se algo semelhante. Dicionários e respeitados manuais definem povo como aquele padre definia o céu. ‘Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido’, diz nossa Constituição. Elio Gaspari e outros atrevidos usuários da língua escrita expõem a controvérsia a partir de mirantes inusitados. O jornalista certamente não toma o povo como choldra e escumalha, mas informa, por meio de estratégia solerte, que nomes tão feios escondem outros significados, embutidos em decisões tomadas por altas autoridades da República. Esta deixa de ser ‘coisa pública’, de acordo com a etimologia latina do vocábulo, para ser despojo a serviço de ‘privataria’. O neologismo, aludindo à vida econômica, mistura ‘pirataria’ e ‘privatização’ para designar os beneficiários de práticas ilícitas, acusados de assaltar a ‘viúva’ para multiplicar o ‘ervanário’, cuja designação tem a ver com a cor da moeda americana. Afinal, a escumalha e a choldra conhecem os dólares por ‘verdinhas’. E a República, à semelhança da mulher que perdeu o marido, está desprotegida diante dos ladrões.
A estratégia é desvendar a astúcia oficial e mostrar, não apenas a incoerência entre discurso e prática, mas a perfeita coerência entre intenção e gesto. É como se o jornalista escrevesse: ‘Para o governo, povo é, na verdade, outra coisa (choldra, escumalha)’, e não os chiques ‘nação’, ‘país’, ‘sociedade’, ‘pátria’.
O estilo escorreito de Elio Gaspari é estonteante, pela simplicidade. Ele não investe contra a sintaxe, não abole a regência, concorda nominal e verbalmente com tudo, faz as devidas flexões e genuflexões à língua-mãe, conjuga os verbos corretamente.
Dando outros significados a palavras canônicas ou substituindo-as por neologismos, o jornalista enriquece o léxico da língua portuguesa.
O povo (demos) grego não tinha o poder (kratos) que a etimologia de ‘democracia’ lhe dá. Em seu nome, poucos mandavam muito. Em nossa República dá-se o mesmo.
Um provérbio latino resume o estilo de críticas semelhantes às de Elio Gaspari: ‘Ridendo castigat mores’. Ou: rindo, critica os costumes.’