Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Carlos Heitor Cony

‘Quando um cardeal polonês tornou-se João Paulo 2º, a surpresa transformou-se em espetáculo. A começar pelo seu passado, vindo da Cortina de Ferro, da pedreira na qual trabalhara como operário, do seminário clandestino que frequentou, de suas experiências como ator e autor teatral, seu doutorado em Roma, quando defendeu brilhante tese sobre Max Scheler, sua vida ao ar livre, atleta de Deus que esquiava nas montanhas e nadava em rios gelados, sua participação na resistência dos poloneses contra a ocupação estrangeira de seu território.


Nada indicava que Wojtyla poderia ser papa. No caso de eleger um estrangeiro para o trono de são Pedro, o segundo conclave de 1978 tinha um candidato mundialmente conhecido, herói de sua pátria, prisioneiro do regime comunista, o cardeal também polonês Stefan Wyszynski, símbolo da Igreja do Silêncio.


A surpresa da eleição de Wojtyla logo se transformou no espetáculo que o tornou personagem do mundo, independentemente de sua liderança religiosa sobre um bilhão de crentes espalhados nos cinco continentes.


Em pouco tempo, era o homem que mais aparecia na mídia mundial, emocionando multidões que apenas queriam vê-lo. Nenhum dirigente nacional, nenhum pop star teve o impacto de sua presença, de sua roupa branca, de seus cabelos também brancos, desalinhados pelo vento de todos os quadrantes da Terra, de sua voz majestosa.


Sua liderança religiosa, marcada pelo valores de uma tradição duas mil vezes secular, recebeu contestações. Sua atuação política, que terminou na queda do Muro de Berlim, começou solitariamente, com a ajuda de operários poloneses, até que, em última fase, contou com a participação de uma grande potência. Um momento da história que, ao menos na etapa final, não teve um tiro, não fez um único prisioneiro.


Sempre espetacular, sua doença e sua agonia agora emocionam a humanidade, não pelo líder religioso que é, mas pelo homem assombroso que sempre foi.’


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‘O homem chamado Karol’, copyright Folha de S. Paulo, 4/04/05


‘Perde o mundo o seu personagem mais importante em termos de mídia e, paradoxalmente, o mais colorido, apesar de sua condição histórica de ícone branco do Ocidente. Não vem ao caso discutir a sua atuação como líder de um bilhão de crentes, tampouco seu ideário e sua pregação política e social. São, desde já, e serão por muito tempo ainda, uma questão para a história se preocupar, de qualquer forma definindo-o como um dos grandes vultos do século 20 e começo do atual século.


No momento, o que importa registrar é o impacto de sua presença em nosso tempo, não apenas no largo período de sua exposição mundial, maior e mais profunda do que a de qualquer político ou pop star.


Para isso contribuíram não apenas a força e a pertinácia de sua pregação religiosa mas a surpreendente e até certo ponto dolorosa transformação de sua imagem. A do operário polonês Karol Wojtyla em papa João Paulo 2º.


Quando apareceu pela primeira vez na sacada da basílica de São Pedro, deu a impressão de ser um imenso, um poderoso jogador de rúgbi, afogado por equívoco nas vestes de pontífice recém-eleito, falando um italiano duvidoso, pedindo que o corrigissem toda vez que cometesse um erro de comunicação.


Foi chamado pela imprensa do mundo inteiro de ‘atleta de Deus’. E tivemos conhecimento de seu passado, de sua vocação tardia, de suas experiências de ator e de autor teatral, de sua vivência de ‘scholar’ e de sua voz grave e até mesmo majestosa, cantando e gravando músicas folclóricas e religiosas. Nos últimos anos, o atleta se apresentava como o ancião combalido, obstinado em continuar homem, homem de Deus e papa.


Conservador que herdou e defendeu uma tradição e uma doutrina de 2.000 anos, Karol Wojtyla abriu e fechou uma página que o credencia a ser um dos maiores papas da história e um nome, mas sobretudo um vulto branco que tão cedo não desaparecerá das retinas de todos nós.’


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‘O homem e o papa’, copyright Folha de S. Paulo, 3/04/05


‘Em livro recente , publicado em 1978, logo após o segundo conclave daquele ano, o sociólogo norte-americano Andrew M. Greeley fez o perfil do papel atual de um papa, do que se esperava de um papa e, até certo ponto, do que um papa precisa. ‘Um líder religioso’, disse Greeley, ‘tem grande poder sobre os acontecimentos, precisamente por apelar para o que existe de nobre na natureza humana’.


À falta de lideranças efetivas, carismáticas ou não, todos sentimos (e os órgãos de comunicação foram os primeiros a detectar essa necessidade) que o palco estava preparado para o surgimento de um grande ator, de um grande personagem que faltava ao mundo. Esse personagem poderia ser um presidente dos Estados Unidos, um primeiro-ministro da então União Soviética, um cientista notável que abrisse novos caminhos para a humanidade. Mas as perspectivas estavam sombrias em matéria de liderança. Os Estados Unidos não souberam arranjar uma solução para o binômio Carter-Reagan. A ex-União Soviética mantinha um funcionário categorizado para substituir Brejnev: mudava-se o parafuso, mas a máquina continuava.


No setor da ciência, tirante esparsos investimentos na área da saúde e da tecnologia, o grosso estava concentrado no desenvolvimento do equipamento bélico. Então, a pergunta: por que a igreja não daria ao mundo, mais uma vez, um grande papa?


Muitos deles se tornaram notáveis como políticos e diplomatas, dirimiram questões delicadas no cenário mundial, aliviaram tensões através de gestões muitas vezes sigilosas. Mas esse papel político-diplomático foi perdendo importância, esvaziando-se mais e mais. Afinal, como dizia Stálin, o papa não tem divisões de infantaria e artilharia nem dispõe de arsenal atômico. Mas, acentuava Greeley, ‘paradoxalmente, foi o fato de perder o seu tradicional papel político e diplomático que acabou valorizando o papa perante os donos temporais da Terra: a liderança religiosa, pura e simples, acabou por ter enorme impacto político’.


Mais adiante: ‘O próximo papa estará na casa da maior parte das famílias. Será visto, pessoalmente, por muitas famílias a mais. Terá um público que nunca outro líder religioso em toda a história teve igual. Hesitante ou a contragosto, terá que usá-lo. Até que ponto o novo papa possuirá ou não essas qualidades será percebido claramente pelo povo, por mais povo do que nunca, e terá sobre o povo um impacto fortíssimo’.


João Paulo 2º teve o seu retrato falado bem antes de sua eleição. Seu visual, sua virilidade, sua estudada postura de ex-ator que compreende a importância da expressão corporal, estariam colocadas a serviço de uma tarefa ‘full-time’: ser papa.


Sua piedade não era carola, vulgar, seu conhecimento do mundo não era livresco, apesar de ser um ‘scholar’, doutorado no Angelicum, de Roma, tendo defendido tese sobre Max Scheler e a fenomenologia de Husserl. Sua fé trazia a marca de um grande testemunho. Vindo da Igreja do Silêncio, nenhum outro homem falaria tanto ao mundo. E, ao mesmo tempo, nunca um homem da Terra falou tanto do homem que não é só desta Terra.


No vazio das lideranças, no espaço que a era eletrônica tornou definitivamente maior e instantâneo, a igreja mais uma vez assumia uma ‘pole position’, saindo à frente com seu colorido, vigoroso e inesperado chefe. Repetindo uma fase do passado, a igreja parecia penetrar em Nova Renascença, uma Renascença Eletrônica, com uma volta ao passado, mas, ao mesmo tempo, com um arsenal moderno. E o mundo, querendo ou não, descobria que estava obrigado a se ocupar e preocupar com ela. Em pouco tempo de pontificado, a personalidade de Karol Wojtyla demonstrava que não entrara na história para ser apenas um nome na lista do Anuário Pontifício e um verbete nas enciclopédias. Os desafios que teve pela frente foram cada vez mais dramáticos. Independente do curso de sua atuação pública, como líder religioso e como estadista. Logo revelaria o bastante: ele saberia encontrar o homem na sua nudez de barro e no seu sopro de eternidade.’




Marcelo Coelho


‘Um papa da era do espetáculo’, copyright Folha de S. Paulo, 4/04/05


‘Chamar o papa João Paulo 2º de ‘carismático’ sempre me pareceu um certo exagero. Popular e midiático, sem dúvida, João Paulo 2º sempre foi, em especial nos primeiros tempos de seu papado.


Mas o que se espera de um líder carismático é sobretudo o poder de impor valores, de mobilizar consciências, de transfigurar, de ‘converter’ as massas a determinada visão de mundo. Embora João Paulo 2º tenha exercido um papel importantíssimo na guinada política conservadora que tomou conta do planeta a partir da década de 1980, não me parece que sua atuação tenha tido efeitos substantivos sobre o comportamento, as idéias, as predisposições das massas que o consagraram como um dos maiores ícones do seu tempo.


Não me refiro apenas aos aspectos em que o Vaticano ficou praticamente falando sozinho nos últimos 20 anos, como a condenação da pílula e da camisinha. De modo geral, a figura ‘midiática’ de João Paulo 2º ultrapassou todos os conteúdos doutrinários que tenha procurado transmitir. No seu caso, o ‘meio’ foi maior que a mensagem.


Na época de João 23 e de Paulo 6º, a nítida esquerdização da Igreja Católica era uma estratégia de sobrevivência. Acreditava-se que o mundo rumava para algum tipo de socialismo.


Os esforços violentos de resistir a isso surgiam como simples tentativas de atrasar o relógio da história. A modernização da igreja passava por sua abertura às idéias da esquerda. Mas a figura acinzentada, formal e contida de Paulo 6º -não me lembro de uma foto sua em que estivesse sorrindo- diminuía, sem dúvida, o alcance desse projeto.


Na minha memória, o papa dotado de irresistível encanto pessoal e poderes, aí sim, quase mágicos de comunicação, foi João Paulo 1º.


Não me esqueço de sua primeira aparição, acenando sorridente daquela janela do Vaticano. Disse que, quando chegara a Roma para participar da eleição do novo papa, ‘não fazia a menor idéia… daquilo que acabou acontecendo!’. Era alguém falando como uma pessoa, não como um detentor de cargo vitalício e sacrossanto. A revolução de informalidade e de quebra de protocolo que Albino Luciani promoveu nos seus poucos dias de papado deixou, na verdade, seu sucessor numa situação difícil.


Era impossível reverter à frieza hierática de Paulo 6º. Ao mesmo tempo, o projeto de João Paulo 2º era hostil a toda modernização política no rumo da esquerda. A solução encontrada foi modernizar o tipo de relação do papa com o público -torná-lo, como disse alguém, uma figura ‘pop’. Viagens, papamóvel, publicações, fotografias, atividades esportivas: o vocabulário contemporâneo das ‘celebridades’, da espetacularização midiática, foi apropriado com especial eficiência.


Riscos da impopularidade


Por outro lado, a imprevista derrocada do regime soviético dava razão e contemporaneidade à resistência anticomunista do Vaticano. Assim, o que parecia, depois da morte de Albino Luciani, um impasse estratégico, se revelou uma aposta extremamente bem-sucedida numa nova forma de modernização, agora à direita. Talvez esse sucesso tenha inspirado João Paulo 2º a assumir os riscos da impopularidade na questão dos costumes sexuais.


Sua grande tarefa, a de desmantelar a influência da esquerda sobre a igreja, acabou sendo cumprida; mas essa mensagem doutrinária se esvaziava, à medida que a própria vitória estava assegurada. O resultado foi um esgotamento estratégico, semelhante ao esgotamento físico cuja dolorosa espetacularização fomos forçados a acompanhar. Mais uma vez, ao que tudo indica, caberá a um novo papa reinventar a velha Igreja Católica.’




Vinicius Torres Freire


‘Os católicos e o ultramundanismo’, copyright Folha de S. Paulo, 4/04/05


‘Em uma análise da última grande modificação que João Paulo 2º imprimiu no colégio dos cardeais, em 2003, o jornal cristão francês ‘La Croix’ observava que uma lista refletida e hierarquizada de ‘problemas prioritários da igreja seria um instrumento mais útil para tentar traçar um ‘retrato falado’ do próximo papa’ do que qualquer outro critério, como ideologia laica ou nacionalidade, por exemplo.


Muito do debate da mídia a respeito da igreja é contaminado por preocupações laicas. É influenciado pelo fato de muitos jornalistas não serem católicos ou cristãos, por serem religiosamente indiferentes ou ateus.


Enfim, os centros mais importantes de difusão de informação estão em países em que a sociedade se torna mais e mais laica, caso da Europa, ou em que o debate midiático ou é fundamentalista (e protestante) ou está carregado de reivindicações ultramundanas, modernistas e anti-religiosas, como nos Estados Unidos.


Embora a laicização seja um dos piores problemas que a Igreja Católica tem a enfrentar, a cúpula eclesiástica jamais vai se bater no campo e segundo as regras de seus adversários (dentro e fora do catolicismo). Isto é, aborto, concepção e contracepção artificial, feminismo, para citar apenas os temas do lugar-comum, não são nem podem ser preocupações imediatas e centrais da igreja.


A razão desembaraçada da autoridade religiosa e política, a ciência, o subjetivismo que se disseminou depois do romantismo, o liberalismo, a democracia, tudo isso colocou em xeque ou bateu de frente com o ensinamento católico, com a idéia de verdade, de bem e mal, de compromisso antes do prazer narcísico. Pior ainda, a Igreja Católica lida ainda com a maré de religiosidades que substituem vínculos transcendentais pela relação imediata de troca com a divindade. Ou com a religiosidade difusa, emotiva, não-doutrinal.


Apesar de todo esse cerco, a Igreja Católica está em outra. Vai lidar com esses problemas. Mas, se ceder à razão e aos motivos laicos, vai perder sua identidade e razão de ser.’




Jamil Chade


‘A mídia monta seu circo em Roma’, copyright O Estado de S. Paulo, 4/04/05


‘A morte de João Paulo II levou a Roma um verdadeiro exército de jornalistas de todo o mundo, que disputavam o melhor ângulo e transformaram o Vaticano em uma das imagens mais transmitidas dos últimos anos. Para os analistas em Roma, o interesse da mídia internacional pela morte de João Paulo II é em parte conseqüência da estratégia estabelecida pelo papa de usar os meios de comunicação para passar sua imagem de carisma e suas idéias.


As grandes redes de TV já estavam se programando para o evento havia anos. Não apenas prepararam material sobre a vida de João Paulo II como criaram uma verdadeira especulação imobiliária em alguns locais próximos do Vaticano. Algumas redes alugaram seus apartamentos há cinco anos para conseguir a imagem da esperada fumaça branca, vista quando o conclave concluir sua escolha do novo papa.


INTERESSE


Para o reverendo Gregory Apparcel, contratado pela CNN para realizar análises religiosas sobre o evento, a cobertura internacional mostra que João Paulo II é mais que uma personalidade religiosa e ligada ao cristianismo. ‘Acho muito positivo o fato de haver tanto interesse por celebrar a vida de uma pessoa e de lhe dar um último adeus’, disse.


De acordo com um dos chefes dos escritórios da agência de notícias japonesa Kyodo, Hajime Ozaki, a cobertura realizada por sua empresa concentra-se no papel político e ético do papa. ‘O Japão é um país com forte característica laica em sua mídia e apenas 2% da população é católica’, afirmou Ozaki.


Já os árabes realizaram uma cobertura diária e permanente. ‘João Paulo II foi o primeiro papa a visitar uma mesquita, na Síria. Ele mostrou respeito em relação ao Islã, o que foi tomado com admiração pelos árabes’, afirmou um jornalista egípcio.


O grande número de jornalistas no Vaticano e a falta de informações detalhadas ainda deram origem a boatos nos últimos dias. Agências e alguns jornais italianos chegaram a antecipar a morte do papa e foram criticados pela opinião pública.


Segundo Marco Politi, um dos principais vaticanistas da Itália, a facilidade em transmitir informações instantâneas a todo o mundo acabou fazendo com que a multidão que esteve na Praça de São Pedro nos últimos dias tenha sido menor da que quando os demais papas morreram. Segundo o jornal La Repubblica, textos enviados por celulares e e-mails foram intensamente usados pelos italianos para obter informações.’