‘Curioso: a mídia é compactamente progressista. O demônio de plantão é o conservador Joseph Ratzinger. Impressionante como o estão satanizando, tornando-o a besta negra do atual conclave e, até certo ponto, substituindo Bush no pódio do homem atualmente mais odiado pela mídia nacional e internacional.
Estou longe de morrer de amores pelo cardeal alemão, mas não deixa de ser irritante a satanização de Ratzinger. Atribuíram a ele a imposição do silêncio aos cardeais, que data de 1139, por ocasião do segundo Concílio de Latrão, que criou a exigência do silêncio.
Pior mesmo foi o que li e ouvi na segunda-feira, quando os cardeais se trancaram no conclave. Textualmente, foi noticiado que cardeal tido como linha-duríssima botou todos os estranhos para fora da capela Sistina, aos berros, gritando: ‘Extra omnes’. Tradução literal: ‘Todos fora!’. Tradução real: ‘Rua!’.
Este último ritual é mais recente, foi adotado pelo sexto concílio na mesma basílica, se não me engano em 1517.
O grande furo da mídia nada tem a ver com o ‘furo’, que, em jargão adotado nos jornais, é a notícia dada em primeira mão. O furo a que me refiro é a perspectiva mesquinha que ela adota para informar, analisar e opinar sobre o que acontece no mundo contemporâneo. A impressão que me dá é pitoresca. Comentam-se os fatos como se o mundo tivesse começado com a Elis Regina, com a tentativa de suicídio do gato do João Gilberto e com o cinema novo.
Nada houve antes dos três eventos. Só existiam o Grande Vácuo, o Nada. Nem Guerras Púnicas, nem assassinato de César, nem a Carta Magna, nem a Renascença, nem a Reforma, nem mesmo a vacina obrigatória que o Nelson Rodrigues sempre lembrava como o fato mais remoto e indecifrável da história humana.
(PS – Esta crônica foi escrita antes da eleição de Bento 16. Pensei em substituí-la, mas vai assim mesmo.)’
Luiz Weis
‘A falta que fazem os heróis morais’, copyright O Estado de S. Paulo, 20/04/05
‘Pobre da terra que precisa de heróis, disse o poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, pela boca do seu personagem Galileu Galilei. Pobre do mundo, então, condenado a esperar por outro Karol Wojtyla, de qualquer religião – ou de nenhuma.
Porque tardará a nascer, se nascer, o dia em que serão comuns a todos os homens e mulheres, como uma segunda natureza, os atributos morais – ou seja, valores vividos – que ao longo da História fizeram de alguns deles exceções à regra; excepcionais, literalmente.
Esses atributos decerto constituem o mais precioso patrimônio da humanidade, com o que se quer dizer, primeiro, que são inerentemente humanos, podendo, portanto, se expressar em qualquer um; e, segundo, que sem eles a espécie desapareceria, na barbárie da inevitável guerra de todos contra todos.
Apesar de sua grandiloqüência e das infelizes associações com a mitologia fascista do super-homem, heroísmo talvez seja ainda o termo menos imperfeito para dar conta do conjunto desses traços de personalidade e comportamento, universalmente reconhecidos como virtudes.
Esse reconhecimento, porém, nem sempre torna os seus portadores heróis universais. A estatura heróica de João Paulo II é irrefutável. Já o sentido do seu heroísmo é polêmico, por corresponder – ao lado de notáveis gestos humanitários – a uma imposição tirânica e indiscriminada de dogmas petrificados.
É impossível saber quantos dos milhões de católicos que invadiram Roma depois da morte do papa e pediam nas ruas a sua beatificação já (santo súbito, diziam os cartazes; santo, santo, dizia o coro) jamais usariam camisinha, jamais se divorciariam e jamais praticariam ou consentiriam no aborto.
Há quem especule que pudessem ser muitos, principalmente entre os mais jovens. Há quem afirme o contrário, invocando a aparente propagação do conservantismo religioso nas novas gerações de crentes (ou de indiferentes convertidos em praticantes) cristãos, islâmicos ou judeus.
A questão vem a calhar. Pois, ou por estar de acordo com o papa ou apesar de não levá-lo ao pé da letra, a multidão e os muitos mais que compartilhavam seus sentimentos, os olhos nas tevês, celebravam as qualidades que encarnava e que o elevaram, se não de imediato à santidade, de há muito à condição de herói.
A imensa popularidade do papa resultou do entrelaçamento do colosso humano que foi Wojtyla – para o bem e, no caso da aids, para o mal – com o aparato da maior corporação da Terra, a Igreja Romana, e suas falanges leigas, e com a onipresença da televisão, cujas pulsões teatrais tudo tendem a transformar em espetáculo de altos teores emocionais.
O New York Times assinalou desde logo: ‘O Papa João Paulo II foi um homem que usou os instrumentos da modernidade para lutar contra o mundo moderno e tirou partido de todos os meios de comunicação para propagar a sua mensagem.’ Com o seu sucessor, Joseph Ratzinger, não deverá ser diferente.
Pode ser que a massa atraída pelo papa viesse ‘mais pelo cantor do que pela canção’, conforme o comentário de um cético cardeal. Mas, pensando bem, a distinção é discutível. Quando se trata de heróis, o meio é a mensagem.
Uma coisa se confunde com a outra quando o que se ressalta é a força interior, a paixão, a coerência, a coragem moral (e física), a obstinação, o despojamento pessoal e a prontidão para o sacrifício em nome de causas defendidas com uma convicção capaz de calar o mais empedernido dos desconfiados.
Na luta do papa pela paz, igualdade e coexistência religiosa – a face luminosa do seu legado -, o que contou mais: o cantor ou a canção? Ambos tinham pela frente um mundo que se tornara, afinal, o ‘vasto arsenal de mercadorias’ de que falava Marx já em 1867, e que se desenganara das utopias igualitárias.
Diante do egoísmo dos ricos e da desesperança dos pobres, do consumismo da minoria e das privações da maioria, do cinismo diante da morte das ideologias, da destruição ambiental provocada pela opulência e pela miséria, João Paulo II, cantor e canção, deu tudo de si para persuadir os povos de que só a fé os salvará – aqui, na Terra.
Eis o motor do seu heroísmo, favorecido pelo vácuo de figuras inspiradoras que arrebatariam pelo exemplo de sua vida e por propagar os mesmos valores da ética social do papa. Historicamente, essas bandeiras as religiões poucas vezes empunharam. A fé separou (e destruiu) muito mais do que uniu.
Nenhum papa, nem mesmo o boníssimo reformador João XXIII, rivalizou em heroísmo – no sentido deste texto – com Mohandas Gandhi, Franklin Roosevelt, Ho Chi Minh, Martin Luther King, Nelson Mandela e Che Guevara. Tão diferentes e tão próximos, continuam a tocar o coração do mundo.
Um, com a espantosa arma da não-violência, começou a acabar com o colonialismo. Outro, o líder mais progressista da História de seu país, foi a luz que socorreu um tempo de treva. Outro foi o Davi contra o Golias da nossa era. Outro viveu e morreu pelo sonho de uma sociedade sem segregação. Outro ainda passou preso quase três décadas para libertar o seu povo do jugo racista. E o último virou o símbolo de uma aventura humana levada de peito aberto até o fim.
Diziam que ao novo papa não servirão os sapatos de João Paulo II – serão sempre demasiado grandes. Se assim é, pode-se dizer também que, com exceção de Mandela, que completará 87 anos em julho, não há personalidade política viva que se compare àqueles titãs. Nem os mensageiros do humanismo na aristocracia cultural e na cultura popular – como foram, a seu modo, Albert Einstein, Bertrand Russell e John Lennon.
Pobre do mundo que precisa de heróis – e, ainda por cima, não os acha.
Luiz Weis é jornalista’
Marco Politi
‘De liberal a linha-dura’, copyright Folha de S. Paulo, 20/04/05
‘Por anos ele foi perseguido com o apelido ‘Panzerkardinal’, mas Joseph Ratzinger é, no íntimo, um homem tímido, com grande senso de humor e exibe a jovialidade típica da personalidade bávara. É um equívoco confundir os filhos da Baviera com os prussianos. Os bávaros trazem na alma alguma coisa melódica e catolicamente misericordiosa que falta aos rígidos filhos da Prússia.
Mas Joseph Ratzinger não deixou de ser duro em sua função como guardião da ortodoxia. Sobre isso não se discute e, como diz seu irmão, Joseph não gosta de brigar e custa a entrar em conflito, mas não muda mais de idéia quando toma uma decisão.
De Markt al Inn, a aldeia bávara onde ele nasceu em 16 de abril de 1927 (no sábado de Páscoa, em meio a uma nevasca), até o trono pontifical, seu caminho foi longo. E sobretudo inesperado. Uma mãe muito afetuosa, um irmão que se tornou padre e condutor dos célebres Pequenos Cantores de Ratisbon, uma irmã de quem muito gosta. O pai era policial. Mas não devemos imaginar um homem autoritário que forçasse o filho a marchar. Era comissário de polícia em uma cidade de província, e portanto severo, mas repudiava o nazismo e encarava a França com admiração, preferindo o espírito de sua pequena pátria bávara à frieza prussiana e à satânica fome de poder de Hitler. Ratzinger ainda se lembra do pesar que sua família sentiu quando Hitler deu início à Segunda Guerra Mundial.
Desde a infância, o novo pontífice era apaixonado por música. Mozart, confessa abertamente, tem o poder de comovê-lo e de fazê-lo submergir no drama da existência humana. E entre suas leituras juvenis estava ‘O Lobo da Estepe’, de Hermann Hesse, que o influenciou na medida que o niilismo do protagonista o levou a refletir sobre o fato de que a exaltação do eu, levada ao extremo, resulta em autodestruição. Entre seus traços menos conhecidos está, igualmente, o apreço pela poesia. Sim, escreveu mais de um poema, trabalhos dedicados à natureza, às festas religiosas, talvez um tantinho sentimentais mas reveladores de sua sensibilidade. Ainda em sua juventude, há a experiência do serviço militar aos 16 ou 17 anos, como membro de bateria antiaérea (não cabia a ele disparar o canhão, porém), e a visão de bombardeiros aliados abatidos, caindo sobre Munique. Até que chegou, como uma libertação, a queda da Alemanha nazista, que para ele representou um breve período de internamento em um campo norte-americano de prisioneiros de guerra.
A Baviera é importante para as raízes de Joseph Ratzinger. Significa uma religião popular viva, repleta de cor e música, de arquitetura barroca, de peregrinações no campo, de intensa oração, de homenagens aos santos e à misericordiosa Madona, como na Europa meridional. Se Karol Wojtyla, quando jovem, sonhava se tornar eremita, Joseph Ratzinger teria preferido ser sempre professor e teólogo. Livre-docente em teologia com 32 anos de idade, ele lecionou Dogmática e Teologia em Freisingen e depois trabalhou em Bonn, Muenster e Tubingen. Aulas e livros pareciam ser seu destino se, em 1962, o arcebispo de Colônia, cardeal Frings, não o houvesse levado consigo ao Vaticano como consultor para o recém-instalado Concílio Vaticano 2º.
Foi o período ‘revolucionário’ para Ratzinger. Hans Kueng era seu mestre, Karl Rahner seu colega de estudo e trabalho. Os dois pertenciam à primeira linha da teologia crítica e faziam parte daquela rede internacional de teólogos que fornecia aos bispos da Alemanha, França, Bélgica e Holanda (e, na Itália, aos arcebispos Montini e Lercaro), a munição intelectual e doutrinária de que precisavam para derrubar o controle dos conservadores sobre a preparação dos documentos conciliares, redigidos pela Cúria Romana, e conduzir o concílio a uma posição mais reformista. Foram os anos em que ele reprovaria a hierarquia eclesiástica por ‘segurar demais as rédeas’ e ‘impor leis rígidas em excesso’.
Alguns anos depois, seria Ratzinger que aplicaria os freios. Assustado com o reformismo radical dos teólogos inovadores, ele entrou em choque devido ao extremismo dos estudantes cristãos em 1968, que gerou ataques contra a religião nas universidades, sob a alegação de que ela representava a ponta de lança das injustiças capitalistas. O padre professor jamais esqueceu os efeitos perversos de um panfleto intitulado ‘maldito Jesus’. Remonta a esses anos sua rejeição vigorosa a todas as formas de marxismo.
Nos anos 70, se tornou crítico daquilo que definia como ‘o espírito negativo do Concílio’, as mudanças que não promoviam a união, o sentimento de ‘declínio’ que lhe parecia haver infectado a vida da igreja. Ratzinger criticou a decisão de abolir a missa tridentina e a reforma litúrgica que posicionou o altar no centro da assembléia, com o sacerdote voltado na direção dos fiéis. Sob o velho modelo, argumentou, todos estavam voltados para Cristo, o ponto focal. Depois, a relação eucarística passou a estar centrada no elo entre o padre e os participantes. Nesse clima de oposição aos resultados do Concílio, Ratzinger fundou, com o famoso teólogo De Lubac e com o apoio do prelado conservador d. Giussani, a revista ‘Communio’, para combater a ‘Concilium’, publicação dos reformistas.
Teólogo bávaro, Ratzinger adora a música de Mozart e ajudou a esquerda no Concílio Vaticano 2º; tornou-se intransigente defensor da ortodoxia
O teólogo bávaro, protagonista do Concílio e adversário de suas derivações mais radicais, agradava a Paulo 6º. O papa Montini, para surpresa de muitos, o promoveu a bispo de Munique, na Baviera, e lhe conferiu a mitra cardinalícia, em 1977. Um ano depois, Ratzinger estaria entre os grandes eleitores que fariam de Karol Wojtyla, arcebispo de Cracóvia, o novo papa. Na véspera do conclave, o cardeal teólogo advertiu, em longa entrevista, sobre o perigo de que o marxismo, em sua versão eurocomunista, pudesse influenciar de alguma forma a escolha da igreja. Três anos mais tarde, João Paulo 2º o convocou a Roma e o nomeou ao segundo posto mais importante da hierarquia católica, abaixo do papado: o de chefe do Santo Ofício ou, na nova terminologia, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
Baluarte da doutrina
Entre Ratzinger e João Paulo 2º se criou um elo de amizade e afeto profundo que levou João Paulo 2º, em seus últimos anos, a receber insistentes apelos de seu subordinado para que se afastasse do cargo em função de seus problemas de saúde. Para João Paulo 2º, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé era um baluarte da doutrina, no qual podia confiar sem qualquer hesitação. João Paulo 2º viajava e realizava gestos proféticos, enquanto no Vaticano o cardeal alemão limpava o terreno de todos os teólogos críticos da nova postura da igreja: de Schillebeeckxs a Boff, passando por Curran e muitos outros acadêmicos que perderam suas cátedras em universidades católicas ou foram privados do direito de publicar livros ou fazer conferências. No curso dos anos, o cardeal combateu sistematicamente a Teologia da Libertação, acusando-a de subordinação ao marxismo, chamou os regimes do Leste Europeu de ‘a vergonha de nossa era’, pronunciou todos os vetos de que João Paulo 2º precisava para manter a ordem na igreja.
Rejeitou o sacerdócio feminino, o fim do celibato, o aumento da influência laica na gestão das comunidades cristãs, o casamento homossexual. Para o papa João Paulo 2º, que usava uma linguagem menos agressiva, o cardeal era o parceiro perfeito no grande jogo contra o socialismo real e, na América Latina, contra os movimentos cristãos revolucionários ou simplesmente de esquerda. No plano interno, Ratzinger concretizou para o pontífice polonês o objetivo de restaurar uma linha doutrinária severa, por meio da redação de um catecismo universal, destinado a servir, com imprimatur papal, como base de qualquer catecismo nacional.
O que quer que os bispos internacionais realizassem no campo da doutrina, catequese ou liturgia, a mão controladora do prefeito para a Congregação para a Doutrina da Fé se fazia sentir.
Nos anos 90, causou choque o documento escrito por Ratzinger e aprovado por João Paulo 2º que exaltava a primazia da função de Cristo como salvador, de preferência a qualquer outra religião, e a superioridade da Igreja Católica como guardiã da plenitude e pureza da fé com respeito às demais igrejas cristãs. ‘Dominus Jesus’ era o nome do documento, e sua publicação causou sérias perturbações nas relações ecumênicas.
No entanto, com o passar do tempo, Joseph Ratzinger se tornou um interlocutor cada vez mais interessante, mesmo para o mundo laico. A sua vontade de instaurar um diálogo entre a fé e a razão sem impor restrições suscitou respeita e atenção, entre os intelectuais laicos. Sua abordagem quanto à crise do cristianismo na sociedade contemporânea não é banal, e sua reflexão sobre a marginalização da fé na sociedade laica não deixa de exibir certa dose de autocrítica. Sua sensibilidade com relação às culturas nacionais é lúcida e aguda, especialmente as extra-européias, na era da globalização. Ratzinger reconhece que a ocidentalização pode provocar radicalismo, frustração e incentivar o terrorismo, em diversas partes do mundo, exatamente porque não respeita as pessoas e as tradições nacionais.
Nos últimos anos, o assunto que mais o interessa é a relação entre identidade e diálogo, defesa da cristandade e relacionamento com a sociedade contemporânea, em um contexto no qual o relativismo ameaça destruir qualquer elenco de valores.
Por mais justas ou por mais distorcidas que sejam suas respostas, o conhecimento religioso e o vigor intelectual do novo papa fascinaram, perturbaram e convenceram o primeiro conclave do terceiro milênio. Na hora da decisão, foi a ele que os cardeais de todo o mundo confiaram o timão do barco de Pedro.
Marco Politi é correspondente no Vaticano do jornal italiano ‘La Repubblica’’
Laura Capriglione
‘Igreja vira-se para dentro, diz escritor’, copyright Folha de S. Paulo, 20/04/05
‘O escritor e jornalista espanhol Juan Arias acompanhou João Paulo 2º em suas andanças por 60 países. Por ter convivido com a corte romana [muitas viagens feitas no mesmo avião que a comitiva do papa], Arias tem uma visão bem concreta do que aguarda o rebanho católico durante o reinado de Bento 16.
‘Karol Wojtyla era um supercomunicador de massas, era um ator, era alguém que se dava muito bem com a mídia. Ratzinger é o contrário. É um tímido. Não gosta da mídia. É um príncipe, uma personalidade pouco gestual.’
Por telefone, Arias falou à Folha do Rio de Janeiro, onde mora há sete anos. ‘O Brasil antecipa o futuro positivo do mundo, do diálogo das raças, das religiões. Infelizmente, o novo papa está muito longe disso’, diz ele.
Folha – O que se pode esperar do próximo papa?
Juan Arias – Ratzinger fará uma igreja muito mais voltada para si mesma, uma igreja mais severa, sem concessões ao mundo moderno. Será um pontificado em defesa da fé, da tradição. Embora vá canonizar João Paulo 2º, não poderia haver ninguém mais diferente do papa anterior do que Ratzinger.
Folha – Por quê?
Arias – Karol Wojtyla era um supercomunicador, um ator, alguém que se dava muito bem com a mídia. Que conversava com a gente pegando no braço, falando bem de perto. Ratzinger é o contrário. É tímido, um homem fino e muito delicado ao falar, embora às vezes um tanto irônico. Não gosta da mídia. É um príncipe, uma personalidade pouco gestual. É duro em suas posições. Eu fiz 60 viagens com João Paulo 2º no mesmo avião. Ele mudava às vezes. Numa oportunidade, me disse que era necessário ver as coisas positivas que havia no comunismo que tinha acabado, que não era bom que o mundo, pós-comunismo, ficasse com apenas um pólo de poder, os Estados Unidos. Ratzinger nunca vai fazer uma concessão desse tipo. Ele é completamente ortodoxo.
Folha – A sua aposta, então, é em uma igreja mais fechada?
Arias – É isso mesmo. Uma igreja de volta à espiritualidade, de volta às tradições. Ratzinger acha que a igreja fez concessões demais à modernidade e que a mensagem de Cristo não tem nada a ver com isso. Ele deve voltar à teologia de São Paulo, a teologia da cruz.
Folha – Como é essa teologia?
Arias – A igreja sempre oscilou entre dois pólos. Um é a teologia da cruz, a teologia da dor, do Cristo crucificado, que é o que dizia São Paulo. É a teologia que acaba na Sexta-Feira da Paixão. O importante é o sofrimento como caminho da salvação, é o exemplo que Jesus nos deu para salvar o mundo do pecado. O outro é a teologia da ressurreição, que fala de libertação, de felicidade, de Deus como pai, não como juiz. Ratzinger segue o primeiro.
Folha – Os acenos de João Paulo 2º ao ecumenismo devem ficar para trás?
Arias – Ratzinger tem convicção de que a única salvação está na igreja católica. Ele vai tentar dialogar com as religiões judaica, islâmica e outras, mas em um patamar diverso. Porque ele parte do pressuposto de que a verdade está com a igreja católica, e as outras religiões terão de chegar até ela. Diálogo, tudo bem, mas a verdade está com a igreja de Cristo.
Folha – A igreja crescerá sob o pontificado de Ratzinger?
Arias – Os cardeais votaram em Ratzinger por enxergar um paradoxo na atuação do papa anterior: ele encheu as praças do mundo, mas as igrejas seguem vazias. Considero que, sobretudo os europeus, votaram em Ratzinger pela insistência dele em apontar que a Europa está perdendo as raízes cristãs, voltando ao paganismo, ao agnosticismo. Ratzinger acha que tudo isso está ocorrendo porque a igreja tornou-se muito relativista.
Folha – Em termos práticos, o que isso significa?
Arias – Nos últimos dias, falou-se muito que João Paulo 2º não conseguiu resolver os problemas da bioética, da moral, da centralização da igreja, da mulher. Pois bem, Ratzinger é contra todas as formas de flexibilização da doutrina para comportar essa nova agenda. Não se pode esquecer que ele, pessoalmente, condenou algo como 200 teólogos. O silêncio imposto a esses teólogos significou calar a parte mais criativa da igreja. Seria o mesmo que um Estado de repente calar 200 pesquisadores científicos.
Folha – Ele sempre foi assim?
Arias – Eu conheci Ratzinger quando ele foi, com o teólogo [suíço] Hans Küng, ao Concílio Vaticano 2º [1962-65]. Lembre-se que João 23 disse que era necessário abrir as janelas do Vaticano para que entrasse ar novo. Na questão da sexualidade, por exemplo, o Concílio abriu a primeira porta para uma compreensão mais ampla da sexualidade. Em vez de simplesmente voltado à procriação, como quer a ortodoxia, o sexo poderia, segundo o Concílio, ser entendido como uma forma de diálogo entre os seres humanos. Em relação ao ateísmo, o Concílio assumiu que parte da culpa pelo crescimento do ateísmo era da própria igreja que se fechara ao mundo do trabalho, dos pobres. Ratzinger compareceu como conselheiro da representação alemã. Era um progressista, um grande progressista. Só que, depois, ele mudou. Disse que o Concílio tinha sido um erro, virou bispo, virou cardeal e, por fim, tornou-se o grande vigilante da ortodoxia católica. Quando Ratzinger condenou a Teologia da Libertação, o próprio papa João Paulo 2º consolou os religiosos brasileiros dizendo que Ratzinger era severo demais, mas que ele, João Paulo, os ajudaria. O papa era mais aberto.
Folha – Falou-se muito sobre a influência da Opus Dei no conclave…
Arias – Eu acho que Ratzinger não tem nada a ver com a Opus Dei. Não tem nada a ver com ninguém. Ele é muito independente. É verdade que movimentos como ‘Comunhão e Libertação’, carismáticos, pentecostais, movimentos mais espiritualistas, podem ter apoiado Ratzinger. Mas a Opus Dei teria preferido o cardeal Angelo Sodano e muitos outros a Ratzinger. A Opus Dei é um movimento mais político e Ratzinger não é político. Ele é um inquisidor, não é um político.
Folha – Como foi possível a tão rápida eleição de Ratzinger?
Arias – Analistas italianos que leram o discurso de Ratzinger na missa que antecedeu a primeira votação do conclave interpretaram-no como a fala de alguém que não quer ser eleito, até porque pedia que os cardeais elegessem um papa pastor, o que ele nunca foi. Parecia que o próprio Ratzinger excluía-se da candidatura. Pois bem, foi eleito um papa burocrata da Cúria Romana, o que não acontecia desde Pio 12. E um linha-dura. Como isso foi acontecer? É um mistério.
Folha – Como ficarão os temas sociais na agenda da igreja?
Arias – Ratzinger nunca se preocupou com a questão social. Ele só tem olhos para a fé.’
Luiz Felipe Pondé
‘Bento 16 não dialogará com as ‘demandas modernas’’, copyright Folha de S. Paulo, 20/04/05
‘Uma análise da história recente da Igreja Católica pode ser feita em bases puramente sociológicas e políticas ou pode ser feita levando-se em conta aspectos teológicos e espirituais (sem reduzi-los aos parâmetros das ciências sociais, vício moderno comum). Na realidade, estão interligados, mas o peso dado a cada um desses blocos temáticos pode indicar maior ou menor compreensão de como Joseph Ratzinger pensa Bento 16.
Podemos fazer uma análise escrava dos jargões modernos e dizer que Bento 16 deverá ser um papa ‘conservador’, ‘continuísta’, isto é, não dialogará com as ‘demandas modernas’: casamento de padres, sacerdócio de mulheres, legitimação do aborto, da eutanásia e das células-tronco, abertura da igreja para sensibilidades outras que não a cristã romana, colegialidade episcopal, enfim, a agenda ‘progressista’ em geral, ainda que com diferenças mais ou menos sutis, umas pendendo para a pura ‘militância sóciolobista’, outras para temas de fato contundentes de um ponto de vista teológico ou espiritual, e mesmo moral, como o aborto ou as células-tronco. Alguns falarão de ‘exclusão da dinâmica do humano’.
Acho que Bento 16 significa um entendimento do cristianismo no qual Cristo não vale porque ‘mergulhou Deus no humano’, mas porque ‘suspende o humano até Deus’, e isso aponta para a ‘demanda pelo impossível’ (não gostamos de coisas que nos cansam e que complicam a dinâmica do nosso desejo), tema comum no cristianismo dos padres do deserto (séculos 2 a 5, grosso modo): o novo papa radicaliza um vocabulário (já presente em João Paulo 2º) voltado para uma ‘espiritualidade de Deus como além do humano’ e não uma ‘espiritualidade do humano e suas demandas’, um olhar que tende a não valorizar o mundo só porque ele ‘faz mais barulho’ ou porque é maioria.
É comum se escutarem idéias como ‘a igreja deve se modernizar’, como se isso fosse uma afirmação auto-evidente. Acho que talvez fosse saudável intelectualmente cuidarmos para que vícios militantes não tomem o lugar de idéias, e que o ‘produto publicitário emancipação’ mesmo que simpáticos à maioria -desde quando maioria foi critério de verdade ou certeza? Só na sofística marqueteira e nos vícios intelectuais dos cidadãos da jovem democracia americana, visitada em 1830-31 por Tocqueville- não tome o espaço da reflexão.
Nesse sentido, a contabilidade sociológica de fiéis não é o foco, mas sim a qualidade dos fiéis, portanto, essa coisa de ‘estamos perdendo fiéis, socorro!’ é conversa para quem não entende o que está acontecendo. Em meio ao caos (o mundo virou um circo do desejo, cada um com sua cartilha de valores, disputando a agenda da mídia e querendo facilitar tudo para ser aceito), o cristianismo (leia-se a igreja) pode ser para poucos. A modernidade está longe de ser um parâmetro auto-evidente. Acho que uma chave interessante para pensarmos um pouco sobre essa passagem de João Paulo 2º a Bento 16 pode começar com o abandono dessa ladainha do ‘vocabulário moderno’, como se a modernidade fosse uma dama mal-amada (inteligente e bem comportada) e que merece evidentemente nosso apoio incondicional.
A tradição dos padres do deserto, no Ocidente, será recebida por alguns pioneiros, entre eles, são Bento (séculos 5 e 6). Essa tradição era marcada pelo entendimento de que o mundo não é um referencial evidente para o cristão (ou para o homem não doente, no entendimento dessa tradição). Quando os padres do deserto abandonam as cidades, o cristianismo então já era uma religião em processo de acomodação das demandas de seu mundo secular em vias de oficialização plena. Ainda nesse período anterior a são Bento, no Oriente Médio, os monges (os padres do deserto) falavam em ‘recusa do mundo’. A idéia era se afastar para criar o verdadeiro mundo. A prática da conversão não deveria seguir a lógica da sedução pela atração, mas pelo teste da ascese (a superação da dinâmica centrada no amor por si mesmo e por suas necessidades). O monge é aquele que re-funda o mundo porque este está fora dos planos de Deus. Nesse sentido, são Bento fundará o monaquismo ocidental, a ordem beneditina, ‘os monges de negro’, homens pouco preocupados com o que pensavam deles, mas que, à diferença dos que pensavam mal deles, tinham a certeza de que caminhavam em direção à verdade.
Se o mundo a sua volta, imerso no barbarismo da queda de Roma, no relativismo da decadência imperial, desintegrava-se, são Bento preparava-se (sem estar preocupado se teria um ou dois seguidores) para contemplar Deus e agir a fim de criar no mundo espaços (os mosteiros), ainda que mínimos, onde a onda desintegradora não se instalasse. São Bento é um homem para tempos difíceis, quando o ‘mundo lá fora’ tornou-se um lugar que não merece plena confiança, onde as pessoas se perdem porque não sabem aonde estão indo. A tendência ao exílio reconstruidor do mundo (Bento 16 não se esconderá do mundo, mas agirá nele como alguém que não o admira só porque todos o acham lindo, seu exílio é sua capacidade de acreditar em sua fé e não negociar com modos facilitadores; ele não está no nosso mundo mesmo, porque nós não acreditamos em nada) é uma das estruturas teológicas fundantes do cristianismo. Isso implica num discurso que não leva em conta parâmetros ‘objetivos’ de como o mundo ‘quer outra coisa’, exatamente porque a consciência de que o mundo se engana faz parte da própria dinâmica da ação.
Como podemos soar diante de alguém que vê o mundo como algo que seduz para se fazer aparentemente justo? As pessoas podem gritar pelo aborto, mas o ato ainda cheira a violência sobre um ser mais fraco (sem direito a palavra ou a uma ONG que o defenda) a serviço de um orgasmo fora de hora ou indesejado. Adoramos dizer que engenharia genética é ‘coisa de nazista’ quando esquecemos que nazista é que é coisa nossa, e que nós e ele somos eugenistas (só que nós oramos pela ‘qualidade de vida’ a todo custo e somos mais elegantes e discretos na nossa prática): a questão é onde acaba a terapia curativa/preventiva e começa a preventiva/ cosmética? Ninguém sabe. Afinal de contas, o celibato anda mal entre clérigos, mas os que podem casar (ou viver juntos) têm passado por um doloroso processo de desintegração afetiva e psicológica e de responsabilidade moral pela prole (claro que acalentados por teoria hedonistas da subjetividade que higienizam o sofrimento).
Como fazer os seres humanos acharem que vale a pena viver com outro ser humano para além da lógica de troca de afetos e favores? É claro que se trata de ‘direitos afetivos’. A modernidade está num beco sem saída (aporia) há algum tempo. O recuo (ou exílio) de Bento não implica a fuga do mundo real, mas sim um ato de discernimento profundo no mundo, que para nós parece estranho, seres pouco afeitos à atividade de discernimento para além da escolha de bens que nos agradam. Não acho correto entender essa atitude de Bento como ‘contra o humano’, mas sim uma atitude que pensa despertar o humano para além do macaco que nele habita e que sonha com bananas, mas que, como esqueceu que virou macaco, esqueceu que só consegue sonhar com bananas.
Luiz Felipe Pondé, filósofo, professor do programa de pós-graduacão em ciências da religião e do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da FAAP.’
Igor Gielow
‘Onda conservadora ocidental é reforçada’, copyright Folha de S. Paulo, 20/04/05
‘Primeiro Bush 2º, agora Bento 16. A onda conservadora que assola o mundo desde o começo deste século agora chega a mais um momento apoteótico, a eleição de Joseph Ratzinger ao cargo de chefe supremo da maior igreja cristã do mundo, com cerca de 1 bilhão de fiéis. Há algum paralelo possível sobre o que aconteceu nos EUA em novembro do ano passado, quando mais de 50 milhões de pessoas elegeram George W. Bush para um segundo mandato, com a eleição por números secretos do alemão ontem?
Não e sim. O não fica por conta da diferença básica: um elegeu-se num sufrágio popular, outro num conclave secreto. Democracia e religião são quase imiscíveis, e desde pelo menos o século 18 isso virou boa norma de governo.
Dito isso, é significativa a eleição de Ratzinger, um cruzado da idéia de uma Igreja Católica fundamentalista, antiglobalização, antimodernidade, justamente num momento em que o também integrista, isolacionista e tradicionalista Bush governa a maior potência militar do mundo, que move sua própria cruzada, a ‘guerra ao terror’. Como chefe da maior potência religiosa e, para muitos, moral do mundo, Bento 16 irá operar numa banda semelhante à do presidente dos EUA, descontadas as óbvias diferenças.
O que isso diz do mundo em que vivemos? Primeiro, que a crise existencial do homem moderno, um homem sem deuses ou pátrias, está gerando um refluxo. Depois da farra liberal dos anos 90, quando o fim da Guerra Fria parecia anunciar um mundo multipolar e integrado, com a bonança dos anos Clinton gerando uma prosperidade artificial no mundo rico que só foi acabar quando estourou a bolha da internet, em 2000, e um abismo de miséria no mundo pobre, veio a dúvida.
Para onde estamos indo? A farra acentuou a emergência de ‘Sudões’, ajudou a fomentar a Al Qaeda e o 11 de Setembro, e da moral clintoniana os americanos lembram mais de Monica Lewinsky. Com isso, abriu-se o caminho para a ansiedade do Ocidente buscar algum tipo de agenda mais sólida. Nos EUA, o que havia à mão era o amálgama de denominações protestantes que pregam um fundamentalismo quase apocalíptico, mas que diz muito ao paroquiano da América rural. À Europa ainda tentando achar um caminho por meio de uma economia forte calcada no euro, mas patética frente ao poderio americano, restou dizer amém. Expoentes dos róseos anos 90, como Tony Blair, dizem sim aos antes espezinhados texanos que ocupam a Casa Branca.
No mundo católico, João Paulo 2º já vinha trilhando esse caminho. Mas ele era uma incógnita teológica. Acabou como um dos grandes nomes do catolicismo, mas seus feitos se concentram nos seus primeiros anos de papado. Era uma relíquia do século 20.
Já Ratzinger, como seu inquisidor-mor, representa uma opção clara. Para encarar o mundo moderno, apenas uma Igreja Católica firme em princípios que datam de séculos poderá sobreviver. E, talvez, até conquistar fiéis mais convictos, como um banco antigo, que atrai clientela porque não quebra. Pelo menos foi isso que os cardeais proclamaram ontem.
Como consolo para os liberais, o movimento parece ser pendular, embora seja arriscado cair na falácia da repetição da história. O que é inescapável é que a eleição de Bento 16 é um sinal eloqüente do lado da balança em que o mundo, pelo menos o ocidental, está.’
Luciana Nunes Leal
‘‘Terei muita dificuldade em amar esse papa’’, copyright O Estado de S. Paulo, 20/04/05
‘Perseguido pelo cardeal Joseph Ratzinger no período em que, como frade franciscano, era um importante porta-voz da Teologia da Libertação, o teólogo e escritor Leonardo Boff disse ontem que terá ‘dificuldades em amar esse papa, por causa de suas posições perante a Igreja e o mundo’. Boff desejou que o escolhido ‘pense mais na humanidade, especialmente nos pobres, que na Igreja’. Disse ainda esperar que Ratzinger ‘mantenha o diálogo com outras igrejas e com a ciência, para buscar os melhores caminhos para a humanidade’.
Na avaliação de Leonardo Boff, em relação a temas polêmicos da Igreja Católica como o celibato dos padres, o sacerdócio das mulheres, pesquisas com células-tronco e homossexualismo, Ratzinger manterá as posições conservadoras de João Paulo II e será ‘ainda mais fechado’.
Boff ressalvou, no entanto, que ‘como cristão’, mantinha a posição de ‘aceitar e respeitar a decisão, fruto da escolha dos cardeais’.
Ratzinger foi o responsável pela punição de ‘silêncio obsequioso’ imposta a Boff em 1985, já no pontificado de João Paulo II. Na época, o papa diminuiu a duração do castigo, que era por tempo indeterminado, para um ano.
Em entrevista ao Estado publicada no domingo, Leonardo Boff, que se desligou da Igreja em 1992, disse que Ratzinger ‘é um dos cardeais da Cúria mais odiados’ e estimou que ‘jamais fosse eleito papa, porque seria um excesso do mesmo, coisa que a inteligência dos cardeais não permitiria’.
Boff lembrou que muitos cardeais foram humilhados pelo colega alemão em várias conferências, pois o novo papa sempre tratou questões da religião ‘de forma autoritária’.
Outro episódio de Ratzinger lembrado por Boff aconteceu pouco antes de o teórico da Teologia da Libertação ser submetido à condenação do Vaticano. Segundo Boff, João Paulo II determinou a Ratzinger que chamasse o frade a Roma e ouvisse seus argumentos, antes de decidir a punição. Boff reconhece que Ratzinger é um ‘teólogo eminente’ e foi ‘a cabeça do papa’ durante o pontificado de João Paulo II , apontado como ‘limitado’ no campo teológico e dogmático.’
Renato Galeno
‘A linha-dura do principal teólogo de João Paulo II’, copyright O Globo, 20/04/05
‘Para alguns, o braço direito de João Paulo II. Para outros, mais críticos, ele era o cão de guarda doutrinário do Papa Polonês. Como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Ratzinger se tornou na segunda pessoa mais importante da Igreja. É difícil encontrar alguma controvérsia católica nos últimos 20 anos que não tenha tido a participação de Ratzinger, conhecido em seu país, a Alemanha, como panzerkardinal.
A relação especial entre Ratzinger e Karol Wojtyla começou em 1981, quando o alemão foi nomeado para a organização que foi alvo de grandes críticas por seu passado. Conhecida como Santo Ofício até o Concílio Vaticano II, terminado em 1965, a congregação nada mais é do que a sucessora da Santa Inquisição. Porém, desde o concílio, a função da organização passara a ser não punir, mas espalhar a fé católica. Mas muitos críticos diriam que o cardeal Ratzinger traria para a congregação um sentimento que a abandonara desde a década de 1960: o medo.
Sempre com a concordância de João Paulo II, Ratzinger não demorou a atacar diversos assuntos que são considerados desvios da doutrina católica por Bento XVI. Uma de suas primeiras lutas seria contra a teologia da libertação. Wojtyla (que vinha da Polônia aprisionada do lado leste da Cortina de Ferro) e Ratzinger (que tinha muitos amigos na Alemanha Oriental) concordavam que a aproximação do catolicismo com o marxismo não era apenas um absurdo doutrinário, mas um perigo para a própria Igreja. Brilhante intelectual e teólogo, Ratzinger divulgou, em agosto de 1984, uma mensagem chamada ‘Instrução sobre certos aspectos da ‘teologia da libertação.’ Seu texto era fulminante.
‘Seria ilusório e perigoso ignorar a ligação íntima que une os radicalmente (marxismo e os teólogos da libertação), e aceitar elementos da análise marxista sem reconhecer suas conexões com a ideologia, ou adentrar a prática da luta de classes e sua interpretação marxista sem enxergar o tipo de sociedade totalitária à qual este processo lentamente leva’, escreveu ele.
Depois de afirmar que a verdade única de Deus era trocada por um verdade partidária, Ratzinger diz que ‘(para a teologia da libertação) a participação na luta de classes é apresentada como um pré-requisito da própria caridade. (…) Se alguém afirma que uma pessoa não deve ser o objeto de ódio, é de qualquer forma afirmado que, se ela pertence à classe dos ricos, é, primordialmente, um inimigo de classe contra quem se deve lutar.’ Para Ratzinger, e João Paulo II, isso é anticristão.
Às mensagens da congregação se seguiram as represálias. Em maio de 1985, o então frei brasileiro Leonardo Boff recebeu uma ordem de silêncio. A ele se seguiram outras ações, que acabaram desarticulando o movimento, que ganhava força na América Latina.
Depois do combate aos bispos e padres progressistas, a polêmica seguinte seria contra os homossexuais. Alguns padres europeus e americanos estavam permitindo que gays e lésbicas comungassem e mesmo abençoando (se não os casando) uniões de pessoas do mesmo sexo. Isso irritou João Paulo II e fez Ratzinger usar mais uma vez sua escrita ferina: ‘Há uma clara consistência nas Escrituras sobre a questão moral do comportamento homossexual. A doutrina da Igreja a este respeito é, portanto, baseada não em frases isoladas para um argumento teológico fácil, mas em sólidas fundações de um testemunho bíblico constante’, escreveu ele, numa carta ao bispos de sua congregação em outubro de 1986.
Aids divide fiéis, mas doutrina é mantida
Uma triste novidade explodiu no Vaticano durante o pontificado de João Paulo II: a Aids. A doença foi descoberta no início da década de 1980 e poucos anos depois já se espalhava tanto em grandes metrópoles quanto no interior da África. A reação da Igreja foi peremptória: a única maneira moralmente aceitável de se combater a doença era a abstinência sexual e a fidelidade dentro do casamento. Numa carta ao arcebispo Pio Laghi, em maio de 1988, Ratzinger afirmou que os argumentos usados pelos defensores do uso de preservativos para conter a epidemia não deveriam ser ouvidos pelos sacerdotes.
‘Não parece pertinente apelar para o clássico princípio da tolerância com o mau menor por parte daqueles que exercitam a responsabilidade para o bem temporal da sociedade. (…) As escolas católicas estão obrigadas a dar sua própria contribuição para a prevenção da Aids, com uma total fidelidade à doutrina moral da igreja.’
É preciso, no entanto, lembrar que, sobre este assunto – métodos contraceptivos, como a camisinha -, o Papa João Paulo II já tinha posições bastante firmes desde a década de 1960. Ratzinger, no máximo, pode ter tentado acrescentar maior sustentação teológica a uma ordem que já fora dado pelo Papa. De qualquer forma, nada faz crer que, como Bento XVI, mudará alguma coisa nesta questão.
A última grande polêmica em que Ratzinger se envolveu foi também a que ele é acusado de ter tido a maior participação. Um dos marcos do papado de João Paulo era a aproximação com outras religiões, nos diálogos inter-religioso (com religiões diferentes, como judaísmo e islamismo) e ecumênico (com outras confissões cristãs). Mas, quando a saúde de Wojtyla já não permitia que ele participasse tanto das proposições doutrinárias, Ratzinger provocou fúria entre protestantes e anglicanos.
No documento oficial da congregação, Ratzinger afirma que os protestantes e anglicanos quebraram a sucessão apostólica – eximindo os ortodoxos do mesmo ‘erro’.
‘Assim como há somente um Cristo, existe um único corpo de Cristo: uma Igreja Católica e Apostólica apenas. (…) As comunidades eclesiais que não preservaram o episcopado válido e a genuína e integral substância do mistério da Eucaristia não são Igrejas propriamente ditas.’ A encíclica, divulgada em agosto do ano 2000, jamais foi criticada por João Paulo – que, no entanto, também não a defendeu.’
Folha de S. Paulo
‘Bento 16, Opção Ortodoxa’, Editorial, copyright Folha de S. Paulo, 20/04/05
‘A escolha de Joseph cardeal Ratzinger para suceder João Paulo 2º no trono de Pedro representa uma inequívoca vitória da ala mais conservadora da Igreja Católica. Ratzinger, que reinará sob o nome de Bento 16, é com certeza um dos sacerdotes intelectualmente mais preparados para a missão.
O novo papa, que domina dez idiomas, fez brilhante carreira acadêmica e lecionou teologia nas mais importantes universidades alemãs até sagrar-se arcebispo de Munique, em 1977, e, quatro anos depois, já em Roma, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o novo nome da velha Inquisição. Foi nesse posto que se tornou o braço direito de Karol Wojtyla e o cardeal mais influente da igreja, sempre a impor a mais fiel observância da ortodoxia doutrinária.
A eleição de Ratzinger evidencia a enorme capacidade de articulação de João Paulo 2º no encaminhamento de seu sucessor. Seu nome emerge de um colégio eleitoral cuja esmagadora maioria dos cardeais foi nomeada no papado anterior. As exceções são apenas três, sendo uma delas o próprio alemão.
A escolha não deixa, porém, de frustrar as expectativas dos setores mais liberais, que confiavam, se não na eleição de um papa identificado com seus anseios, ao menos na opção por um pontífice mais aberto à colegialidade (descentralização) e à rediscussão de pontos tidos como não-essenciais da doutrina (uso de preservativos, por exemplo). Decepciona também os que esperavam uma maior abertura geográfica da igreja, com a eleição de um pontífice latino-americano ou africano.
Ratzinger é o exato oposto disso tudo: europeu, centralizador, arquiconservador. É visto como a voz que inspirou João Paulo 2º em suas posições mais duras em relação à anticoncepção, ao aborto, à ordenação de mulheres, ao homossexualismo, ao divórcio, à pesquisa com células-tronco embrionárias. Tem relação de grande proximidade com prelazias tradicionalistas, como o Opus Dei.
Ao contrário de seu antecessor, porém, Bento 16 não parece ter um talento especial para lidar com a mídia. Também difere de João Paulo 2º ao demonstrar menor entusiasmo pelo diálogo inter-religioso. É apontado como o responsável pela edição, em 2000, do documento ‘Dominus Iesus’ (‘Senhor Jesus’), no qual o Vaticano reafirma uma superioridade do catolicismo sobre outras denominações cristãs (e mais ainda sobre outros credos). Foi uma ducha de água fria nos esforços ecumênicos que vinham sendo registrados desde o Concílio Vaticano 2º.
Membros da chamada ala progressista da igreja, alguns dos quais reagiram à escolha com os termos ‘devastadora’ e ‘catastrófica’, não têm de fato motivos para comemorações. Como prefeito da Congregação, Ratzinger fez a linha de frente na vitória sobre a teologia da libertação.
Embora o perfil do novo sumo pontífice prenuncie um período enérgico e polêmico, este é considerado um pontificado de transição. Hoje com 78 anos, é pouco provável que Bento 16 permaneça à frente da Igreja Católica por período comparável ao de seu antecessor.
O colégio de cardeais fez uma aposta de risco ao escolher Ratzinger como 265º papa. O aprofundamento da ortodoxia, que deverá ser a marca de seu pontificado, tende a afastar e não a agregar fiéis, num momento em que a igreja se ressente da falta de novas vocações sacerdotais e já encolhe em antigos bastiões como a Europa e a América Latina. Os escritos de Ratzinger condenando o rock, a música pop e as ‘showmissas’, que ele qualifica como ‘cultos profanos’, tampouco ajudam.
O problema não é de maneira alguma ignorado pelo próprio Bento 16, que tem consciência do que está em jogo, mas fez uma opção muito clara pelo que acredita ser o único caminho para a igreja. A visão do novo papa fica evidente em textos que levam a sua marca, como a encíclica ‘Fides et Ratio’ (‘Fé e Razão’), a penúltima do pontificado de João Paulo 2º, e na homilia que fez na missa ‘pro eligendo papa’ (para eleger o papa), que antecedeu o conclave. Lá, condenou com veemência o relativismo religioso e o materialismo e afirmou que a única saída para a igreja é a ‘fé clara’ -o que o aproxima de um fundamentalismo católico.’
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‘Grupo Opus Dei manifesta ‘grande felicidade’ pela eleição de Bento 16’, copyright Folha de S. Paulo, 20/04/05
‘O grupo católico conservador Opus Dei, que tinha forte apoio de João Paulo 2º, recebeu com alegria a eleição de Joseph Ratzinger como seu sucessor.
‘Este é um momento de grande felicidade’, disse ontem a autoridade máxima do Opus Dei, o bispo Javier Echevarría, prelado da entidade, em um comunicado no qual prometeu apoiar o novo pontífice.
Fundado na Espanha em 1928, o Opus Dei é o que se chama de ‘prelatura pessoal’, o que significa que ele não se subordina a um bispo local, embora precise de permissão para abrir um escritório em uma diocese.
Echevarría afirmou que ‘o novo papa conhece a missão da prelatura e sabe que pode confiar na dedicação dos padres e leigos que a compõem para servir a igreja’.
O Opus Dei possui mais de 80 mil membros em todo o mundo, a maioria leiga, mas também conta com centenas de padres e bispos. Atribui-se como missão conferir a pessoas leigas um maior papel na difusão da palavra de Deus. João Paulo 2º via o movimento como uma forma de confrontar a secularização da sociedade e reforçar sua doutrina conservadora.
Dois dos cardeais que votaram ontem no conclave são membros do Opus Dei, e acredita-se que vários outros o apóiem. Mas, segundo o teólogo espanhol Enrique Magdalena, não há notícia de que Ratzinger seja filiado a algum movimento no interior da igreja.
‘Ele é um homem com uma personalidade forte, então eu imagino que o Opus Dei irá analisar de perto suas reações nos próximos meses’, afirmou.
Daniel Thompson, professor de teologia da Universidade Fordham, em Nova York, disse que o Opus Dei só podia ficar satisfeito com a eleição de Ratzinger. ‘Suas pautas teológicas são bastante similares, e eles também têm a mesma opinião sobre o mundo contemporâneo, o que eu acredito ser ainda mais importante.’
Ambos possuem uma ‘visão bastante negativa’ da sociedade ocidental e de suas influências, diz Thompson, citando em particular a homilia que Ratzinger proferiu anteontem (leia texto abaixo), em que alertava contra uma ‘ditadura do relativismo’ e do liberalismo que permeiam a sociedade, ‘todos os ‘ismos’ do mundo contemporâneo que destroem a adesão à verdade do catolicismo’.
‘Acredito que o Opus Dei possua um pensamento similar sobre a necessidade de resgatar a Igreja Católica desse tipo de força e de manter a pureza da fé’, disse Thompson.’
O Estado de S. Paulo
‘O sucessor natural de Wojtyla’, Editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 20/04/05
‘Na apoteose de devoção popular em que se transformou o funeral de João Paulo II, a mensagem era clara. Num mundo atribulado por rápidas mudanças, atentados terroristas, relativização de valores morais, multiplicação de seitas, ascensão de fundamentalismos, o rebanho católico quer um timoneiro de mão firme no comando da barca de Pedro. Foi isso que João Paulo II representou em seu longo, profícuo e coerente pontificado e que as multidões aplaudiram. Multidões formadas em grande parte por jovens, de quem freqüentemente não se espera entusiasmo diante de autoridades morais.
A mensagem foi ouvida com clareza plena no colégio cardinalício. Com rapidez inédita na história da Igreja, os cardeais escolheram aquele que entre eles demonstra ter melhores condições para levar adiante a obra de João Paulo II, o alemão Joseph Alois Ratzinger, agora Bento XVI.
Pensador de extrema coerência, admirado por ex-alunos e respeitado pelos que pensam diferentemente dele, Ratzinger foi o conselheiro mais próximo de João Paulo II, contribuindo de maneira decisiva para o sucesso de sua missão. Não é difícil encontrar entre os biógrafos do polonês Karol Wojtyla aqueles que apontam como uma das principais decisões de seu papado, se não a principal, a escolha de Ratzinger para a chefia da Comissão para a Doutrina da Fé, em 1981. Também são freqüentes as afirmações de que Wojtyla admirava no companheiro de trabalho a capacidade intelectual e a firmeza que demonstrava na manifestação de suas opiniões.
‘Depois de João Paulo II, os cardeais elegeram um simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor’, disse o novo papa diante da multidão reunida na Praça de S. Pedro, logo após ter sido escolhido. Ele tem sido um incansável trabalhador a serviço da Igreja desde sua ordenação, há 53 anos.
Já era um conhecido professor de teologia, catedrático na Universidade de Bonn, quando foi chamado para atuar como peritus nos debates do Concílio Vaticano II, assessorando o cardeal reformista Josef Frings. Apoiou o espírito de aggiornamento daquele encontro, mas, depois das revoltas estudantis de 1968 e da crescente aproximação de alguns bispos e teólogos da ideologia marxista, começou a alertar para os excessos do concílio.
Em 1977, ajudou a fundar a revista Communio, com o objetivo de dar combate a uma linha de pensadores europeus, depois seguida por americanos e latinos, segundo a qual o Vaticano II criara um permanente espírito de mudança, que transcendia aquilo que o próprio concílio havia votado. Para esses pensadores, toda a doutrina da Igreja devia ser questionada, como se tivessem a intenção de reescrever o Evangelho.
Ratzinger e o grupo de teólogos alinhados com ele defendiam que a intenção de João XXIII não fora a de mexer nos depósitos da fé e alertavam para o risco de se transformar a Igreja numa espécie de parlamento. Seu esforço chamou a atenção de Paulo VI, que o designou para o comando da Arquidiocese de Munique, em 1977.
No ano seguinte, no conclave que elegeu o sucessor de Paulo VI, ele teve um papel fundamental, defendendo a escolha de alguém com autoridade moral para conter os excessos e capaz de promover uma nova evangelização, de acordo com o espírito do Vaticano II. Propôs o nome de Wojtyla.
No Vaticano, foi a força propulsora no combate à Teologia da Libertação. Em 1984, num longo debate que travou com Leonardo Boff, em Roma, disse a ele que não se podia subordinar a fé à ideologia marxista.
Combateu a relativização de valores morais no capitalismo e defendeu o diálogo com outras religiões, mas sem nunca perder de vista seu papel de guardião da doutrina, sem sucumbir a modismos que, em última instância, parecem destinados a adaptar a fé para ser melhor vendida no crescente mercado de religiões.
Em sua homilia na missa de abertura do conclave, que certamente influenciou os cardeais, lembrou o combate que travou ao lado de Wojtyla ao dizer: ‘A pequena barca com o pensamento cristão sofreu pela agitação das ondas, arrastada de um extremo a outro: do marxismo ao liberalismo até a libertinagem, do coletivismo ao individualismo mais radical, do ateísmo a um vago misticismo, do agnosticismo ao sincretismo.’ Para ele, ‘a fé adulta não segue modas’.
A decisão do colégio cardinalício não implica vencedores e vencidos no conclave. Mas, se fosse para apontar um grande vencedor, seria João Paulo II. Indubitavelmente.’
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‘‘Fé adulta não segue ondas da moda’’, copyright O Estado de S. Paulo, 20/04/05
‘Na segunda-feira, o então cardeal Joseph Ratzinger foi o presidente da celebração que abriu o conclave. A seguir, o texto da homilia, na íntegra. A homilia é o sermão com reflexão ou explicação do Evangelho. Este sermão em particular foi especial e decisivo para sua eleição: Ratzinger deixou a missa aplaudido.
‘Nesta hora de grande responsabilidade, escutamos com particular atenção aquilo que o Senhor nos diz com as suas próprias palavras. Das três leituras, queria escolher apenas algumas passagens que nos dizem diretamente respeito num momento como este.
A Primeira Leitura oferece um retrato profético da figura do Messias – um retrato que ganha todo o seu significado quando Jesus lê este texto na sinagoga de Nazaré, e diz: ‘Hoje cumpriu-se este passo da Escritura’ (Lc 4, 21). No centro deste texto profético, encontramos uma palavra que – pelo menos à primeira vista – parece contraditória. O Messias, falando de si mesmo, diz que foi enviado ‘a proclamar o ano da graça do Senhor, o dia da vingança da parte do nosso Deus’ (Is 61, 2). Escutemos, com alegria, o anúncio do ano da misericórdia: a misericórdia divina põe um limite ao mal – disse-nos o Santo Padre. Jesus Cristo é a misericórdia divina em pessoa: encontrar Cristo significa encontrar a misericórdia de Deus. O mandato de Cristo tornou-se o nosso mandato, através da unção sacerdotal; somos chamados a promulgar – não só com palavras, mas com a vida, e com os sinais eficazes dos sacramentos, ‘o ano de misericórdia do Senhor’.
Mas o que é que Isaías quer dizer quando anuncia o ‘dia da vingança do nosso Deus’? Jesus, em Nazaré, na sua leitura do texto profético, não pronunciou estas palavras – concluiu anunciando o ano da misericórdia. Foi talvez este o motivo do escândalo que se gerou depois da sua pregação? Não o sabemos.
De qualquer modo, o Senhor ofereceu o seu comentário autêntico relativamente a estas palavras com a morte na cruz. ‘Ele levou os nossos pecados em seu corpo, sobre o madeiro…’, diz São Pedro (1 Pe 2, 24). E São Paulo escreve aos Gálatas: ‘Cristo resgatou-nos da maldição da Lei, fazendo-se ele mesmo maldição por nós, pois está escrito: ‘Maldito seja todo aquele que é suspenso no madeiro’. Isto para que a bênção de Abraão chegasse até aos gentios, em Cristo Jesus, para recebermos a promessa do espírito, por meio da fé’ (Gl 3, 13 ss.). A misericórdia de Cristo não é uma graça que se pode comprar por baixo preço, não supõe a banalização do mal. Cristo carrega no seu corpo e na sua alma todo o peso do mal, toda a sua força destruidora. Ele queima e transforma o mal no sofrimento, no fogo do seu amor sofredor. O dia da vingança e o ano da misericórdia coincidem no Mistério Pascal, em Cristo morto e ressuscitado. Esta é a vingança de Deus: Ele mesmo, na pessoa do dilho, sofre por nós. Quanto mais somos tocados pela misericórdia do Senhor, tanto mais entramos em solidariedade com o seu sofrimento – tornamo-nos disponíveis para completar na nossa carne ‘o que falta ao sofrimento de Cristo’ (Cl 1, 24).
Passemos à Segunda Leitura, à Carta aos Efésios. Aqui, trata-se, essencialmente, de três coisas: em primeiro lugar, dos ministérios e dos carismas na Igreja, como dons do Senhor ressuscitado e que subiu ao céu; em seguida, trata-se do amadurecimento da fé e do conhecimento do filho de Deus, como condição e conteúdo da unidade no corpo de Cristo; e, por fim, trata-se da participação comum no crescimento do corpo de Cristo, isto é, da transformação do mundo na comunhão com o Senhor. Detenhamo-nos apenas sobre dois pontos.
O primeiro é o caminho para ‘a maturidade de Cristo’ – assim diz o texto italiano, simplificando um pouco. Segundo o texto grego, devemos mais precisamente falar da ‘medida da plenitude de Cristo’, à qual somos chamados a atingir, para sermos realmente adultos na fé. Não devemos permanecer crianças na fé, em estado de minoridade. E em que é que consiste ser crianças na fé? Responde São Paulo: significa ser ‘batidos pelas ondas e levados ao sabor de qualquer vento de doutrina…’ (Ef 4, 14). Uma descrição muito atual! Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decênios, quantas correntes ideológicas, quantos modos de pensamento… A pequena barca do pensamento de muitos cristãos foi não raro agitada por estas ondas – lançada de um extremo ao outro: do marxismo ao liberalismo, até ao ponto de chegar à libertinagem; do coletivismo ao individualismo radical; do ateísmo a um vago misticismo religioso; do agnosticismo ao sincretismo e por aí adiante.
NOVAS SEITAS
Todos os dias nascem novas seitas e cumpre-se assim o que S. Paulo disse sobre o engano dos homens, sobre a astúcia que tende a induzir ao erro (cf. Ef 4, 14). Ter uma fé clara, segundo o credo da Igreja, é freqüentemente catalogado como fundamentalismo, ao passo que o relativismo, isto é, o deixar-se levar ‘ao sabor de qualquer vento de doutrina’, aparece como a única atitude à altura dos tempos atuais. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que usa como critério último apenas o próprio ‘eu’ e as suas vontades.
Nós, pelo contrário, temos um outro critério: o filho de Deus, o verdadeiro homem. É ele a medida do verdadeiro humanismo. Não é ‘adulta’ uma fé que segue as ondas da moda e a última novidade; adulta e madura é antes uma fé profundamente enraizada na amizade com Cristo. É esta amizade que se abre a tudo aquilo que é bom e que nos dá o critério para discernir entre o que é verdadeiro e o que é falso, entre engano e verdade.
Devemos amadurecer esta fé adulta. A esta fé devemos guiar o rebanho de Cristo. E é esta fé – e somente a fé – que cria unidade e se realiza na caridade. Em contraste com as contínuas peripécias daqueles que são como crianças batidas pelas ondas, São Paulo oferece-nos a este propósito uma bela palavra: praticar a verdade na caridade, como fórmula fundamental da existência cristã. Em Cristo, verdade e caridade coincidem. Na medida em que nos aproximamos de Cristo, assim também na nossa vida, verdade e caridade se fundem. A caridade sem a verdade seria cega; a verdade sem a caridade seria como ‘um címbalo que tine’ (1 Cor 13, 1).
AMIGO DO SENHOR
Passemos agora para o Evangelho, de cuja riqueza queria extrair apenas duas pequenas observações. O Senhor dirige-nos estas maravilhosas palavras: ‘Já não vos chamo servos… mas chamei-vos amigos’ (Jo 15, 15). Tantas vezes sentimos que somos – e é verdade – apenas servos inúteis (cf. Lc 17, 10). E não obstante isto, o Senhor chama-nos amigos, faz-nos seus amigos, dá-nos a sua amizade. O Senhor define a amizade de um duplo modo. Não existem segredos entre amigos: Cristo diz-nos tudo quanto escuta do pai; dá-nos toda a sua confiança e, com a confiança, também o conhecimento. Revela-nos o seu rosto, o seu coração. Mostra-nos a sua ternura por nós, o seu amor apaixonado que vai até à loucura da cruz. Confia-se a nós, dá-nos o poder de falar com o seu eu: ‘Isto é o meu corpo…’, ‘Eu te absolvo…’. Confia o seu corpo, a Igreja a nós.
Confia às nossas débeis mentes, às nossas débeis mãos a sua Verdade – o mistério de Deus Pai, Filho e Espírito Santo; o mistério do Deus que ‘amou tanto o mundo que lhe deu o seu filho unigênito’ (Jo 3, 16). Fez de nós seus amigos – e nós, como respondemos?
O segundo elemento, com que Jesus define a amizade é a comunhão das vontades. ‘Idem velle – idem nolle’, era também para os romanos a definição de amizade. ‘Vós sereis meus amigos, se fizerdes o que vos mando’ (Jo 15, 14). A amizade com Cristo coincide com aquilo que o terceiro pedido do Pai-Nosso exprime: ‘Seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no céu’. Na hora do Getsêmani, Jesus transformou a nossa vontade humana rebelde em vontade conforme e unida à vontade divina. Sofreu todo o drama da nossa autonomia – e é exatamente pondo a nossa vontade nas mãos de Deus, que nos dá a verdadeira liberdade: ‘Não se faça como Eu quero, mas como Tu queres’ (Mt 26, 39). Nesta comunhão das vontades, realiza-se a nossa Redenção: ser amigos de Jesus, tornar-se amigos de Deus. Quanto mais amamos Jesus, tanto mais o conhecemos, tanto mais cresce a nossa verdadeira liberdade, cresce a alegria de ser redimidos. Obrigado Jesus, pela tua amizade!
O outro elemento do Evangelho que queria acenar é o discurso de Jesus sobre o dar fruto: ‘Fui Eu que vos escolhi e vos destinei para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça’ (Jo 15, 16). Aparece aqui o dinamismo da existência do cristão, do apóstolo: Escolhi-vos para que vades… Devemos animar-nos nesta santa inquietação: a inquietação de levar a todos o dom da fé, da amizade com Cristo. Em verdade, o amor, a amizade de Deus foi-nos dada para que chegue também aos outros. Recebemos a fé para a dar a outros – somos sacerdotes para servir outros. E devemos dar um fruto que permaneça.
Todos os homens querem deixar um rasto que permaneça. Mas o que é que permanece? O dinheiro não. Os edifícios também não; muito menos os livros. Após um certo tempo, mais ou menos longo, todas estas coisas desaparecem. A única coisa que permanece eternamente é a alma humana, o homem criado por Deus para a eternidade.
O fruto que permanece é, portanto, aquilo que semeamos nas almas humanas – o amor, o conhecimento; o gesto capaz de tocar o coração; a palavra que abre a alma à alegria do Senhor. Então vamos e rezemos ao Senhor para que nos ajude a dar fruto, um fruto que permaneça. Somente assim a terra se transforma de vale de lágrimas, no jardim de Deus.
Enfim, voltemos mais uma vez, à Carta aos Efésios. A Carta diz – com as palavras do Salmo 68 – que Cristo, tendo subido ao céu, ‘distribuiu dons pelos homens’ (Ef 4, 8).
O Vencedor distribui dons. E estes dons são apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres. O nosso ministério é um dom de Cristo aos homens, para construir o seu corpo – o mundo novo. Vivamos o nosso ministério assim, como dom de Cristo para os homens! Mas nesta hora, sobretudo, rezemos com insistência ao Senhor, para que depois do grande dom do papa João Paulo II, nos dê novamente um Pastor segundo o seu coração, um Pastor que nos leve ao conhecimento de Cristo, ao seu amor, à verdadeira alegria. Amém.’’
O Globo
‘Enigmas romanos’, Editorial copyright O Globo, 20/04/05
‘Os conclaves que escolhem os Papas têm, quase todos, um modo peculiar de fugir do convencional. Neste de agora, não faltou quem predissesse a vitória rápida do cardeal Joseph Ratzinger, braço direito do Papa João Paulo II. Mas eram igualmente numerosos os que diziam que Ratzinger não seria eleito – pela idade, por ser uma figura muito marcada, de perfil rígido etc.
Prevaleceu a primeira linha. E a velocidade da escolha induz a algumas conclusões: Ratzinger de fato impressionou os demais cardeais, com o seu saber teológico e a sua personalidade forte; mais que isso, o que continua valendo são a figura e o legado de João Paulo II, sacramentados pelo rio de gente que afluiu para a Praça São Pedro durante os seus momentos finais.
O que a escolha tão rápida de Ratzinger parece dizer é que, diante de um fenômeno religioso que alguém chegou a comparar a uma tsunami, não houve força nem vontade para mudar o curso do rio. O novo Papa está sendo eleito como uma continuação do pontificado de João Paulo II, de que ele foi o mais fiel dos colaboradores.
De que maneira isso vai ser lido pelas multidões de católicos, ao redor do mundo, é uma questão em aberto. Talvez uma parte desses católicos faça a ligação mencionada acima; mas há poucas semelhantes entre o exterior expansivo do falecido Papa e a severidade do seu sucessor.
Ratzinger pode não ser (certamente não é) o Grande Inquisidor que emerge de algumas análises correntes. Seu saber teológico e sua seriedade de propósitos estão fora de dúvida. A pergunta que fica no ar é se este seria o nome mais indicado para atender às atuais expectativas de católicos e não católicos em face da Igreja de Roma. Depois de reinados muito longos, o desejo de mudança é o que há de mais humano; mas, aparentemente, o ex-cardeal Ratzinger vem para continuar, e não para mudar.
Cada Papa tem o seu enigma pessoal. O segundo reinado mais longo da história da Igreja – o de Pio IX, no século XIX – começou como uma lua-de-mel com a opinião pública. Alguns anos depois, tudo isso tinha mudado, e o Papa foi considerado como o epítome do reacionarismo. Em tempos recentes, João XXIII foi eleito um simples Papa de transição – mas coube a ele empurrar a Igreja para a aventura da modernidade. Paulo VI, o antigo cardeal Montini, foi escolhido sob aclamações gerais, pela sua inteligência e abertura de espírito. Poucos anos depois, era um Papa angustiado, aflito com o desenrolar dos assuntos da Igreja.
É difícil prever, neste momento, o que será o pontificado do Papa Bento XVI. Talvez seja interessante examinar a história do Papa Bento que o precedeu – porque, na Igreja, a escolha do nome nunca é gratuita. Bento XV foi o Papa da Primeira Guerra Mundial, cujo término ele tentou desesperadamente antecipar. Foi um Papa de rápido reinado, e desprovido de carisma – o que chamou mais a atenção por vir depois dos ilustres pontificados de Leão XIII e Pio X.
Será este o programa de vida do novo Papa – simplesmente dar sequência à herança de João Paulo II?
É bem possível, a julgar por tudo o que ele tem sido até agora. No longo diálogo que ele manteve com Peter Seewald, e que se transformou num livro – ‘O Sal da Terra’, já lançado no Brasil – há algumas indicações para o que pode ser o futuro imediato da Igreja. Nesse quadro – que não se deveria reduzir apenas aos rótulos de sempre, ‘progressista’ ou ‘conservador’ – há elementos para um primeiro retrato do Papa Bento XVI. E há um ponto, ali, em que Bento XVI se distancia de João Paulo II.
Se João Paulo foi o homem que decididamente saiu do Vaticano à procura de novas ovelhas, Bento XVI não está preocupado com a expansão e nem mesmo com a conservação do número de católicos romanos. Ele raciocina (não é o primeiro a fazê-lo) com a possibilidade de uma Igreja menor, ao mesmo tempo que mais consciente da sua identidade. É um Papa – à maneira de Paulo VI – que se angustia com o estado geral da Humanidade, e que não poupa advertências. Ele acha, por exemplo, que assim como o uso desordenado dos recursos naturais levou o nosso planeta à beira do esgotamento, existe também uma ecologia espiritual que seria preciso purificar de numerosos miasmas – como a crença numa liberdade absoluta em que o ser humano se propõe como entidade autônoma, cego e surdo à inspiração que poderia vir do Alto. Em termos modernos, esta seria a descrição de um Papa ‘conservador’. Nos termos da tradição da Igreja, remete à linhagem dos profetas antigos que, em certos momentos, não poupavam termos duros para convocar o ser humano ao seu destino espiritual. Resta saber como a imensa multidão de católicos reagirá a esta mensagem.’
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Nascido no Dia de São Bento‘, copyright O Globo, 20/04/05‘Bento ou Benedito vem do latim benedictus, que significa ‘abençoado’. Acredita-se que o cardeal Joseph Ratzinger deva ter escolhido o nome Bento XVI por ter nascido em 16 de abril de 1927, Dia de São Bento. O dia de seu nascimento também é o mesmo número que o acompanhará como Papa, já que é o 16 chefe da Igreja Católica a levar esse nome.
Ratzinger surpreendeu com a escolha do nome, segundo alguns especialistas, pois muita gente esperava que assumisse plenamente o legado de seu antecessor e reinasse como João Paulo III.
Para Paul Collins, autor de uma história dos papas intitulada ‘Upon this Rock’ (Sobre esta pedra), o cardeal Ratzinger pode ter tentado indicar com a adoção deste nome – o terceiro mais utilizado na História da Igreja Católica – que não será necessariamente uma continuidade do Papa que ajudou a eleger em 1978 e cuja doutrina contribuiu para estabelecer.
Ratzinger pode ter desejado, por outro lado, homenagear seu antecessor onomástico, o italiano Bento XV, evocando a defesa da paz e o afã evangelizador que caracterizaram seu pontificado. Bento XV guiou a Igreja Católica durante e após a Primeira Guerra Mundial. Ganhou o apelido de Papa da Paz, apesar do fracasso de seus esforços para mediar a guerra. Tentou em vão conseguir uma trégua entre os beligerantes. Além disso, Bento XV, como Ratzinger, era uma espécie de estrategista doutrinal, e soube levantar o ânimo da comunidade cristã após a guerra.
O nome escolhido por Ratzinger pode também ser uma homenagem a São Bento, o fundador da ordem monástica dos beneditinos no século VII e padroeiro da Europa.’