‘Leitores me perguntam o que eu penso sobre a abertura dos arquivos secretos ou sigilosos do Estado. Sou a favor da abertura, de todas as aberturas e de nenhuma fechadura, a não ser a própria, aquela que botamos nas portas e que fecha e dura. O acesso aos papéis higienicamente guardados pelos sucessivos governos servirão aos historiadores e a um ou outro interessado pessoal. Quando abriram os habeas-data nos Dops da vida, o que apareceu de besteira não foi mole. Um amigo ficou sabendo que havia deflorado a própria mãe. O agente que registrou o grave e assombroso incidente usou o verbo ‘deflorar’, que significa tirar a virgindade de uma mulher. No caso dos arquivos, por motivos legais e afetivos, é urgente e necessário saber o destino dos mortos e desaparecidos, por que, quando e como morreram ou desapareceram. É uma crueldade do Estado manter esse sigilo. Já bastam os ossos de Dana de Teffé, que ninguém até hoje sabe onde estão. Um país decente não pode guardar sua história nos porões de qualquer Estado ou de qualquer regime. Quem faz a nação é o povo, e não o Estado, muito menos o regime.
O cronista estará ausente por uns dias. Passarei o Natal com minha filha, que mora em Roma, ela não agüentou a barra aqui do Rio.
Faz frio na Cidade Eterna, um frio raro por lá, mas não choreis sobre mim e sobre meus pecados. Estarei, como diria Machado de Assis, ‘ao pé’ da lareira, como num conto de Dickens. Lareira que queimará o lenho perfumado dos pinheiros de Roma, pinheiros imortalizados por Ottorino Respighi, os mesmos que deram sombra a César e Brutus, a Cícero e Catilina. E, como ninguém é de ferro, tomando os bons vinhos que alegram o coração, o olhar e o gesto.’
Luiz Garcia
‘Queimar a verdade e os dedos’, copyright O Globo, 17/12/04
‘Aparentemente inocente, a expressão ‘queima de arquivo’ tem significado sinistro no mundo do crime: é a eliminação de quem sabe demais.
Na Base Aérea de Salvador, o termo tem significado menos sinistro – mas não deixa de ser uma tentativa de incinerar a verdade. Em terreno da instalação militar foi encontrada uma pilha de documentos parcialmente queimados. Eram prontuários de cidadãos considerados subversivos, do tempo do regime militar.
Dias depois, o comandante da Aeronáutica informou ter sido encontrada nova pilha de fichas de inimigos do regime, prontinha para o fogo. As buscas continuam.
Não há – pelo menos nos documentos recuperados – registro de torturas ou mortes. Mas é evidente a tentativa de destruir documentos de possível importância histórica. Isso, no momento em que o governo federal anuncia oficialmente a disposição de abrir a caixa da Pandora do regime militar. Por dois bons motivos: tentar descobrir o destino de pessoas desaparecidas e ajudar a contar a História do Brasil.
Não há no país clima de desforra. Abrir os arquivos tem objetivo precisamente oposto: é um gesto tanto de satisfação a parentes das vítimas da repressão como de busca da verdade histórica. Uma verdade, a propósito, que, neste ou naquele episódio, pode ser satisfatória ou incômoda para qualquer lado.
Os episódios de Salvador têm um tanto de ridículo, pela incompetência demonstrada, e outro tanto de sinistro. Mostram que a cicatrização é um processo em curso, mas talvez mais longe do fim do que se imaginava. Talvez bem mais distante do que as pessoas de boa vontade – nos dois campos – esperavam.
A identificação e punição pública dos responsáveis pelos episódios de Salvador é necessária para restabelecer a autoridade do Palácio do Planalto, abalada pelo episódio. Não muito, mas significativamente. E com essas coisas não se brinca.
Isso já ficou provado, há muito tempo, com outra besteira do gênero, cometida pelo também baiano Ruy Barbosa. Recorde-se a ordem que ele assinou, em 1890, quando ministro da Fazenda:
‘Considerando que a nação brasileira, pelo mais sublime lance de sua evolução histórica, eliminou do solo da pátria a escravidão – a instituição funestíssima que por tantos anos paralisou o desenvolvimento da sociedade, inficionou-lhe a atmosfera moral; considerando que a República está obrigada a destruir esses vestígios por honra da pátria, e em homenagem aos nossos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que pela abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira:
Resolve:
‘1º ) Serão requisitados de todas as tesourarias da Fazenda todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda, relativos ao elemento servil, matrícula dos escravos, dos ingênuos, filhos livres de mulher escrava e libertos sexagenários, que deverão ser sem demora remetidos a esta capital e reunidos em lugar apropriado na recebedoria.
‘2º ) Uma comissão composta dos Srs. João Fernandes Clapp, presidente da confederação abolicionista, e do administrador da recebedoria desta capital, dirigirá a arrecadação dos referidos livros e papéis e procederá à destruição imediata deles, que se fará na casa da máquina da alfândega desta capital, pelo modo que mais conveniente parecer à comissão.’
Ruy achava que a destruição dos registros salvaria a honra nacional. Em alguns anos, ninguém teria vergonha da vergonha que foi a escravidão – por ignorar que ela teria existido.
Deu no que deu. Os patéticos incêndios dos baianos de hoje darão no que darão.
Em tempo, nosso Departamento Baianês Também é Cultura informa que o verbo ‘inficionar’ usado por Ruy é uma forma pernóstica de ‘infeccionar’.’
Eliane Cantanhêde
‘Abertura já!’, copyright Folha de S. Paulo, 19/12/04
‘Enquanto ministros, jornalistas, acadêmicos e familiares das vítimas clamam pela abertura dos arquivos da ditadura, os papéis voam por aí, do Rio Grande do Sul à Bahia, passando por Brasília. Até um mês atrás, não havia papéis. Agora, eles surgem às centenas, milhares.
E deixam evidente que, se a ditadura era eficiente para torturar e obter ‘confissões’, era um desastre para produzir informes sobre pessoas e organizações. Os textos são primários, com informações precárias e não raro ridículas. São assim, por exemplo, os que sobraram do fogo na Base Aérea de Salvador e foram entregues pela Rede Globo à Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
Tratam uma jovem como ‘esquerdista perigosa’, por escrever e distribuir jornais semi-clandestinos e conclamar estudantes à greve e à derrubada do governo em assembléias. Acusam diplomatas soviéticos de serem agentes da KGB (serviço secreto da antiga União Soviética) com base em descrições hilárias: dirigiam carros sem placas diplomáticas, usavam fotos antigas nos passaportes e tinham curiosas ‘esposas auto-suficientes, falando idioma estrangeiro’.
Os órgãos ‘de inteligência’ se preocupavam até com o movimento feminista a favor da legalização do aborto. Conseguiam informar que os homens não tinham direito a voto nessas reuniões, mas não a identidade de quem as presidia.
Os papéis aparecem aos montes, mas são sempre acessórios, periféricos. Como se servissem de despiste para o que realmente interessa: os documentos sobre a repressão, as mortes e os desaparecimentos.
O fato é que, mais uma vez, o processo político brasileiro é à la Macunaíma. A discussão é meio covarde, o ritmo é preguiçoso, as coisas são emboladas e confusas, mas tudo vai acontecendo e surpreendendo.
Alguns papéis já estão na praça, outros virão por aí. Basicamente, vão confirmar o que todo mundo já está careca da saber, como a tortura. Só se espera, e se torce, para que as famílias finalmente saibam onde estão os desaparecidos da ditadura.’
Rodrigo César Pinho
‘Arquivos da ditadura e Ministério Público’, copyright Folha de S. Paulo, 19/12/04
Em todas as instituições serão encontradas pessoas que colaboraram com o regime autoritário e outras que, ao contrário, foram perseguidas por suas idéias e por sua militância política. Essa constatação vale para membros do Ministério Público de todo o país como também para advogados, juízes, médicos etc.
No Estado de São Paulo, conforme aponta a memória dos mais antigos, em um tempo em que a instituição possuía um número bem menor de integrantes, cinco colegas foram cassados, diversos investigados pelas denominadas CGI (Comissões Gerais de Inquérito) e muitos forçados a mudar de comarca, por incomodarem os poderosos do momento pela atuação em prol dos menos favorecidos. Obviamente, a história poderá constatar que membros do Ministério Público também integravam organismos de repressão. Mas, com todo o respeito, não é justo destacar uma única instituição, como fez o articulista Saulo Ramos, como a maior responsável pelos abusos cometidos durante os anos de chumbo.
Pois a história igualmente registra que outros profissionais, não só da área jurídica, colaboraram com os excessos cometidos durante a ditadura. Ilustres advogados e juristas que exerceram cargos relevantes nesse período – muitos deles como titulares do Ministério da Justiça- também contribuíram para o arbítrio em nosso país. Basta lembrar que o Ato Institucional nº 1, de abril de 1964, que teve por objetivo legitimar o golpe militar daquele ano, foi redigido por um dos maiores juristas de sua época, o advogado Francisco Campos, também autor, devemos recordar, da autoritária Constituição de 1937, outorgada para institucionalizar a ditadura do Estado Novo.
Essa presença, contudo, não pode ser estendida para toda uma categoria profissional. Merece destaque a lembrança de corajosos advogados de presos políticos que expuseram, muitas vezes, a própria liberdade para resguardar direitos de pessoas perseguidas por suas idéias e por sua militância. A Ordem dos Advogados do Brasil, na gestão do jurista e historiador Raymundo Faoro -que hoje honra com seu nome o palácio que sedia o Ministério da Justiça-, teve um papel fundamental na resistência democrática aos abusos contra os direitos fundamentais da pessoa humana verificados nesse período da história brasileira.
O próprio Ministério Público de São Paulo pode se orgulhar de, nos momentos mais críticos do regime militar, ter contado com altivos promotores públicos, entre eles o atual vice-prefeito de São Paulo, o jurista Hélio Bicudo, responsável pela investigação dos delitos perpetrados pelo chamado Esquadrão da Morte, organização criminosa que agia sob o manto do aparelho repressor do regime autoritário.
Na condição de procurador-geral de Justiça de São Paulo, chefe de uma instituição que congrega 1.710 membros na ativa, com uma média de idade relativamente jovem, asseguro que o Ministério Público não teme que os arquivos da ditadura sejam abertos. Ao contrário, os promotores e procuradores de Justiça do Estado de São Paulo aguardam que as informações nesses registros sejam amplamente divulgadas e levadas ao conhecimento do público e dos historiadores, para que nunca mais em nosso país se repitam os fatos lamentáveis que ocorreram em passado não muito distante, como mortes, torturas e violações de direitos fundamentais.
Deve-se registrar, a propósito, que o atual processo de abertura dos arquivos do regime militar decorre da iniciativa da um jovem membro do Ministério Público, procurador da República, que teve a sua pretensão acolhida em primeira instância e confirmada por instâncias superiores.
A história de nosso país precisa ser passada a limpo. Aos membros do Ministério Público, assim como a toda a sociedade, é importante que a verdade apareça. A colaboração, ou até mesmo a participação, de alguns de seus integrantes em excessos cometidos não pode servir de pretexto para impedir que a verdade venha a ser conhecida, retirando-se um dos véus que cobre o tema. Não temos o que temer. Há vítimas também a apresentar.
Mais do que isso, reafirmamos nosso compromisso com a construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, que assegure o respeito à dignidade do ser humano e uma absoluta transparência no trato da coisa pública. Este é o novo Ministério Público, em consonância com o perfil institucional que lhe foi conferido pela Constituição de 1988, de braço jurídico da sociedade civil. Rodrigo César Rebello Pinho, 48, é o procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo.’