‘O governo quer mudar a lei que indeniza brasileiros atingidos pela ditadura militar, por entender que a legislação criada no governo passado está promovendo indenizações e pensões milionárias. ‘O governo está conversando para mudar isso’, garante José Genoino, ex-guerrilheiro e presidente do PT. O secretário de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, diz que a Lei da Anistia ‘contém distorções graves, porque permite o enriquecimento de algumas pessoas com o dinheiro público que falta para programas sociais importantes’. Segundo ele, a conta das indenizações chega a R$ 4 bilhões.
O ex-deputado e advogado Airton Soares diz ter informações seguras de que o governo, embora incomodado pela delicadeza do tema e pelo simbolismo dos personagens, quer mudar os critérios para as indenizações. O advogado Belisário dos Santos Júnior, defensor de militantes de esquerda, quer a mudança e opina que ‘seria de esperar que as indenizações para vivos tivessem um limite, como as dos mortos’. ‘Foi um equívoco, deveria haver um limite’, opina Soares. ‘É uma discrepância que me espanta’, surpreende-se o advogado Marco Antônio Rodrigues Barbosa, defensor de vítimas da ditadura.
REABERTURA
As famílias dos mortos e desaparecidos da ditadura militar receberam indenizações que atingiram o valor máximo de R$ 150 mil – e eram casos de famílias que ficaram ao desamparo com a perda do chefe. Mas os atingidos pela ditadura que ficaram vivos ganharam uma legislação mais favorável, que lhes permitiu, desde 2001, requerer pensões vitalícias e indenizações retroativas sem qualquer incidência de impostos.
Essas indenizações compreendem uma prestação mensal vitalícia, equivalente ao salário que a pessoa teria quando atingisse o topo de sua carreira profissional, mais um valor bruto, pago em uma só parcela, correspondente a cinco anos de vencimentos retroativos, a contar do dia do recebimento do pedido pela Comissão da Anistia. Mediante este critério, os cálculos atingiram valores altíssimos: muitas pensões superam os R$ 10 mil e alguns retroativos chegam perto dos R$ 2 milhões.
O que o governo quer agora é forçar a reabertura da discussão de uma forma natural, de maneira a não parecer que existe uma posição contrária às vítimas vivas da ditadura. Logo no começo da gestão Lula o governo chegou a pensar em mudar a lei, mas acabou mudando de idéia porque a decisão iria parecer antipática e contra a esquerda militante. Adotou, então, a opção de ‘não aplicar a lei’, admite hoje Genoino, isto é, começa a pagar a pensão mensal, mas não paga o retroativo e não toca mais no assunto.
Genoino diagnostica que os problemas surgiram no governo passado, quando ‘as corporações se uniram, mudaram a lei e o ministro da Justiça aceitou’. José Gregori, ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Direitos Humanos no governo passado, confirma o presidente petista. Diz que quando chegou ao ministério mandou revisar o anteprojeto das indenizações, de forma a impor um limite. Isso foi feito, mas quando ele deixou o cargo, tempos depois, houve novas revisões e o teto foi retirado. Para Nilmário, ‘faltou mais debate na hora da elaboração do texto legal’.
‘O governo tem de buscar uma solução imediata para isso e, na minha opinião, a solução é impor um teto. O mais simples é mudar a perspectiva promocional, que permite atingir valores que extrapolam a realidade brasileira’, diz o presidente do PT. Ele fala a mesma linguagem do advogado Marco Antônio, que afirma: ‘O governo tem de estabelecer teto. O erro da lei atual é o critério da promoção incerta e não sabida, que acaba gerando pensões muito elevadas’, diz. Belisário dos Santos Júnior concorda. Para ele, o legislador ‘se descuidou de um indispensável limite pecuniário’. Teria sido perfeitamente possível fixar um limite, afirma.’
Carlos Marchi e Eugênia Lopes
‘Reale defende teto para indenizações’, copyright O Estado de S. Paulo, 15/11/04
‘O professor Miguel Reale disse ontem que a legislação que regulamenta as indenizações para anistiados pode ser mudada sem qualquer ameaça à constitucionalidade, que fica garantida pelo ‘evidente interesse social’ da questão. Parlamentares da base aliada e do governo defenderam ontem a fixação de um teto para as indenizações e pensões. ‘Tem muito aproveitador entre os anistiados, que acabam recebendo antes das reais vítimas da ditadura’, reconheceu o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP).
‘O governo tem de mudar essa lei e, do ponto de vista legal, não precisa temer eventuais ações pretextando direito adquirido’, garantiu ao Estado ontem o professor Miguel Reale. Ele se disse ‘totalmente favorável’ à revisão da legislação da anistia. ‘Isso que está sendo feito não tem cabimento’, disse ele, aduzindo que ‘depois da anistia, não cabe onerar o Estado e a sociedade com indenizações de alto valor’.
O professor Reale disse que ‘a legislação das indenizações foi feita por determinados grupos com interesses específicos’, que mais tarde ‘cometeram abusos contra o povo e contra a Nação’. Para ele, ‘a mudança da lei, além de extremamente necessária, terá completa cobertura legal e constitucional’. ‘A lei é mais forte que a pretensão abusiva de alguns’, protestou o professor, que considerou haver ‘plena justificativa legal e social para mudar a lei’.
DISTORÇÕES
Parlamentares ouvidos pelo Estado avaliaram que a legislação que regula as indenizações e pensões dá margem a muitas distorções, como a concessão de benefícios para pessoas que nem chegaram a ser perseguidas políticas. O deputado Alberto Goldman (PSDB-SP) defendeu a revisão dos valores das indenizações e pensões pagas aos anistiados políticos. ‘A legislação deixou brechas para que isso acontecesse. A intenção foi a melhor possível, mas o resultado mostra que ocorreram exageros’, afirmou. Ele enfatizou, no entanto, que a melhor forma de reparação aos perseguidos pela ditadura seria a abertura dos arquivos secretos.
O deputado Greenhalg defendeu a fixação de um teto, ‘mas com o compromisso do governo de que vai pagar’. O governo não vem pagando os valores retroativos fixados pela Comissão da Anistia, como revelou o Estado ontem. Ele ressalva, no entanto, que esses valores estão sendo pagos 30 ou 40 anos depois dos prejuízos causados.
Outra distorção apontada por ele é a diferença das indenizações a vivos e a famílias de mortos e desaparecidos. ‘É uma injustiça que as famílias de mortos e desaparecidos recebam menos do que uma pessoa que está viva’, disse. As famílias de mortos e desaparecidos recebem uma indenização máxima de R$ 150 mil, enquanto os vivos ganham pensões vitalícias de até R$ 19.115 mensais e indenizações retroativas de até quase R$ 2 milhões, livres de impostos.
Greenhalgh condenou também o ‘jeitinho’, que permite a algumas pessoas furar a fila e receber antes de outros que estão há anos à espera do benefício. ‘Tem gente que entrou com o pedido há pouco tempo e já recebeu. A comissão tinha de seguir ordem cronológica, com prioridade para os mais velhos e os doentes’, disse.
O presidente nacional do PMDB, deputado Michel Temer (SP), é outro que defende a revisão do valor dos benefícios. ‘É preciso haver um redimensionamento do montante dos valores pagos’, disse. Mas ele ressalvou que, pela ótica jurídica, os benefícios estão sendo concedidos corretamente. O senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) se disse favorável à fixação de um teto. ‘Se há limites para os salários dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário é válido que tenhamos limites para o pagamento dessas pensões’, afirmou o tucano.’
Carlos Marchi
‘Leôncio Martins acha situação revoltante’, copyright O Estado de S. Paulo, 15/11/04
‘O professor Leôncio Martins Rodrigues, da USP, classificou como ‘revoltante’ a enxurrada de pensões milionárias concedidas a dezenas de pessoas com base na lei da anistia. Para ele, ‘um aspecto safado da nossa cultura acaba impregnando pessoas de vários matizes ideológicos’. E deu um diagnóstico: pessoas que lutaram contra a ditadura e foram derrotadas pelos militares acham agora que, por terem vencido a guerra ideológica, têm plena legitimidade para todo e qualquer ato.
Ele reconhece que, na questão das indenizações a vítimas da ditadura, ‘prevaleceu o velho modelo brasileiro: tudo para a elite e migalhas para os menos favorecidos’. Na fixação das indenizações e pensões, observou ele, enquanto os mais bem formados e bem relacionados ganharam indenizações milionárias, os mais pobres, de profissões mais humildes – que possivelmente se arriscaram mais na luta revolucionária – acabaram relegados a valores insignificantes.
Registra, ainda, uma segunda distorção que deveria ter profundo alcance ideológico para pessoas ‘de esquerda’: os mortos e desaparecidos, talvez os mais legítimos e indiscutíveis ‘heróis’ da luta contra a ditadura mereceram indenizações inexpressivas, entregues a suas famílias, enquanto os vivos embolsam fortunas.
Uma terceira distorção foi anotada por Leôncio: pessoas que pertenciam a carreiras regulares do Estado ficaram limitadas, em suas reivindicações, a seus antigos regulamentos funcionais e a dificuldades para comprovar as alegadas perseguições, ocorridas em ambiente fechado; já os de carreiras liberais, como os jornalistas, puderam solicitar fortunas, já que não atendiam a regulamentos funcionais estritos. ‘Muitos não foram notoriamente prejudicados’, diz.
A herança da legitimidade como compensação da luta contra a ditadura, diz Leôncio, é combinada com um pensamento dominante nas atuais elites do poder – a crença em princípios centralizadores, estatistas e nacionalistas. O raciocínio que rege tais movimentos, diz, põe o Estado no centro das decisões (logo, pode tomar sozinho a decisão de indenizar); é um inesgotável provedor-mor (logo, não lhe custa pagar pensões); e, por fim, como os beneficiários são nacionalistas, nada pode haver de errado nas indenizações.
‘Cria-se a falsa verdade de que é politicamente correto sangrar os cofres públicos para pagar essas pensões e indenizações absurdas’, diz. Ele, ademais, relembra que os beneficiários desses pagamentos garantidos pelo Estado de Direito lutaram por um regime que prometia ser totalitário. ‘É curioso que se faça agora um monumento a Marighella como um combatente da liberdade. Ele nunca combateu pela liberdade ou pelo Estado de Direito, mas por um Estado totalitário.’’
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‘Indenizações reproduzem desigualdades sociais do País’, copyright O Estado de S. Paulo, 14/11/04
‘A fórmula de indenização aos atingidos pela ditadura consagra o sistema de injustiça social do País, à medida que privilegia os que tiveram mais oportunidades em termos de escolaridade e carreira, que conseguem valores muito elevados, e reserva uma reparação irrisória aos mais humildes, observa Nilmário Miranda. Profissionais com formação acadêmica levam vantagem quando pedem sua indenização. Eles podem alegar que tiveram a carreira seccionada e, não fosse a perseguição, poderiam ascender ao topo. Com esse tipo de argumentação é possível conseguir valores astronômicos.
Já os operários sem formação ficam limitados ao ganho de suas profissões. Há os que se dedicavam em tempo integral à militância e nem trabalhavam; ou os estudantes que militavam na esquerda, também sem referência profissional. ‘No Brasil, operário sempre ganha menos que jornalista’, ironiza a enfermeira e ex-guerrilheira Criméia Telles, do Grupo Tortura Nunca Mais, que aguarda o julgamento de seu pedido para ganhar uma pensão de R$ 2.100 mensais.
CONSTRANGIMENTO
O governo sabe que ‘não aplicar a lei’, isto é, não pagar as boladas retroativas, vai redundar, num futuro próximo ou longínquo, em litígios na Justiça. Ao pagar as pensões vitalícias, o governo engabela os beneficiados. Nilmário Miranda acha que não é possível modificar a lei, porque a indenização já foi paga a muita gente, o que gera direito adquirido aos demais.
Mas o governo conta com o constrangimento de uma discussão aberta sobre as indenizações milionárias, que certamente vai inibir os beneficiados na cobrança dos retroativos. Como a morte do beneficiário extingue o direito, que não é transferido a herdeiros, o mais provável é que os retroativos se transformem num imenso ‘esqueleto’, que ficaria guardado no mesmo armário das lembranças tristes da ditadura – uma porta que as pessoas se sentem desestimuladas a abrir.’
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‘Estes ainda não viram um centavo’, copyright O Estado de S. Paulo, 14/11/04
‘Num estalo, a vida de Mário Kozel e sua mulher, Teresinha Lana Kozel, mudou quando o filho mais velho, Mário Kozel Filho, de 18 anos, explodiu junto com uma bomba colocada numa perua Chevrolet, em frente ao QG do Exército, no Ibirapuera, em 25 de junho de 1968. Onze anos depois, Sidney, o irmão mais novo do soldado Mário, morreria de câncer aos 25 anos. O casal ficou só com a filha Suzana. E nunca – nunca, sublinha Mário – recebeu um só centavo de indenização ou pensão pelo filho, promovido post-mortem a 3.º sargento.
Situação parecida é a de Orlando Lovecchio Filho, hoje com 58 anos, que perdeu a perna na explosão de uma bomba colocada por três militantes de esquerda junto à porta do consulado dos EUA, na Avenida Paulista, no dia 19 de março de 1968 e teve de abandonar a profissão de piloto comercial. Orlando não tinha lado: não era de esquerda, nem de direita. Acabou perseguido pelos dois. Pela esquerda, que via nele um herói sem causa; e pelos órgãos de segurança que o prenderam três vezes, desconfiados de que ele era o autor da explosão.
Seu Mário aguarda pacientemente pelo dia em que vai receber pela primeira vez a pensão de R$ 330 que o governo lhe concedeu. Só que concedeu por projeto de lei, que tramitou lentamente no Congresso, até ser sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em julho deste ano, trinta e seis anos depois da morte do filho. Já com a saúde debilitada, pediu ao neto Fernando para ir receber. Ele foi ao Ministério da Justiça, que o mandou para o Ministério do Exército, que o remeteu para o INSS, que o devolveu ao Ministério da Justiça.
No governo passado Orlando conseguiu arrancar do Ministério da Justiça um projeto de lei que determinou o pagamento de uma pensão de R$ 500 mensais. O projeto foi finalmente sancionado por Lula em julho, mas até hoje ele não viu a cor do dinheiro. Recorreu também à Comissão da Anistia, já que é uma vítima evidente do período ditatorial, embora tenha sido mutilado por uma ação da esquerda.
Fernando terminou sua romaria. O Ministério da Justiça concordou em dar andamento ao caso da pensão mensal de seu Mário e dona Teresinha. Só que lhe pediu um rosário de documentos – RG, CPF, título de eleitor e comprovante de residência dos dois, mais certidão de casamento, identidade militar e certidão de óbito do filho. Trinta e seis anos depois, foi difícil juntar tanto documento. Mas semana que vem tudo estará aviado e Fernando vai correndo ao ministério.
Orlando teve seu recurso à Comissão da Anistia indeferido no dia 19 de outubro, mesmo data em que foi publicada a portaria que dá uma pensão de R$ 23.187,90 mensais e uma indenização retroativa de R$ 1,4 milhão ao escritor Carlos Heitor Cony. Para a comissão, o caso de Orlando não se enquadra no espírito da lei, já que não foi atingido pela repressão, mas pelos que lutavam contra a repressão. Ele até argumentou que, segundo os médicos, a perda da perna se deu, muito provavelmente, pela pressão que os militares fizeram sobre ele, ainda hospitalizado, por acharem que era o autor do atentado. Não adiantou.
DÚVIDAS
Fernando soube pelo Estado que o governo Lula enviou um novo projeto de lei ao Congresso, reajustando a pensão que nunca foi paga para R$ 1.440 mensais. No primeiro momento, não soube avaliar se a notícia era boa ou ruim. Duas dúvidas o assaltaram: uma é que terá de voltar aos balcões do Ministério da Justiça para mais uma jornada de comprovações e documentos difíceis de obter; outra é que o avô já tem 81 anos e, pelo menos uma vez por mês, dorme no hospital por causa de pequenos problemas que vão e voltam – será que a saúde dura para um dia ter esse dinheiro na mão?
Orlando vai recorrer à Comissão de Anistia. Divorciado, uma filha de 20 anos, ele nunca mais pilotou aviões; vive medianamente bem em Santos graças a alguns imóveis alugados de seus pais, hoje com 86 e 83 anos. Faz uma pergunta que ninguém responde: por que as vítimas que militavam na esquerda são beneficiados com MPs, que têm efeito imediato, e as vítimas como ele e Kozel esperam anos a fio pelas longas tramitações de projetos de lei?
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‘As viúvas pedem justiça, apenas’, copyright O Estado de S. Paulo, 14/11/04
‘‘Essas indenizações são absurdas’, revolta-se Clarice Herzog, de 63 anos, viúva de Vladimir Herzog e símbolo da luta pela anistia. ‘Tanto dinheiro só se justifica se a pessoa ficou com alguma seqüela’, diz Teresa de Lourdes Martins Fiel, 72, viúva de Manoel Fiel Filho, com sua proverbial humildade encanecida pelo sofrimento. ‘No Brasil, as pessoas importantes recebem sempre na frente’, protesta com suavidade Eunice Paiva, 75, viúva de Rubens Paiva, que carrega a dor adicional de nunca ter recebido o corpo do marido.
As três eram relativamente jovens quando ficaram viúvas – Clarice, com 34, em 1975; Teresa, com 44, três meses depois; Eunice, com 35, em 1971. Clarice recebeu duas indenizações: uma depois de longo processo na Justiça e outra da Comissão da Anistia, os tais R$ 100 mil a que têm direito as famílias dos mortos.
Teresa também foi à Justiça e ganhou uma indenização de pouco mais de R$ 300 mil, além de uma reparação da Prefeitura de São Paulo, no valor de R$ 90 mil. Do governo federal, recebeu uma pensão mensal de R$ 900 até a data em que seu marido completaria 76 anos. Por engano, o INSS pagou-lhe alguns meses a mais e depois, como um ferrabrás, obrigou-a a devolver o dinheiro. Ela teve de vender um velho Gol 1000 para ressarcir o INSS. Eunice nunca recebeu um mísero centavo.
ADMIRAÇÃO
As três orgulham-se de algo que ninguém poderá contestar – criaram seus filhos sozinhas, com o reconhecimento e a admiração da sociedade, mas sem nenhuma ajuda do Estado que um dia lhes subtraiu os maridos. ‘Acho que deviam pagar a todas as viúvas’, opina Teresa, hoje vivendo em Bragança Paulista. ‘Quem ficou vivo, só deve receber se tiver alguma seqüela que atrapalhe o trabalho’, completa.
‘Nunca quis mais nada’, diz Clarice, hoje dona de uma próspera empresa de consultoria. ‘Num país miserável e desigual como o nosso, ninguém pode aceitar indenizações desse porte’, afirma ela. Eunice também foi à luta depois que o marido desapareceu no Rio (depois se soube que havia sido assassinado pela repressão, tendo a boca enfiada à força no cano de descarga de um veículo militar) – formou-se em Direito e começou a advogar, o que lhe permitiu educar os cinco filhos. ‘Nem sei como consegui’, desabafa hoje.
Serena, ela diz que não se preocupa em encaminhar um pedido à Comissão da Anistia. Sua ação na Justiça ainda tem bons anos pela frente (está hoje no Tribunal Federal de Recursos da 2.ª Região, Rio), mas ela já nem faz questão de receber: ‘Gostaria de um dia ver meus filhos receberem.’ A Justiça decidiu que o Estado deve lhe pagar uma indenização de R$ 3 mil por ano de expectativa de vida de Rubens, mais 350 salários mínimos para cada filho.
Tanto quanto Clarice, Eunice não está atrás de dinheiro, mas de reparação. ‘Para mim, a indenização que o Estado brasileiro um dia vai pagar a meus filhos tem uma natureza moral, é um símbolo a reparar o nosso sofrimento’, afirma ela. ‘Eu não preciso de nada, tenho os cinco filhos criados, cinco netos lindos. Quero a reparação moral’, insiste.
E ela conta exatamente por quê: ‘As coisas foram se encaixando pouco a pouco. Só restou a saudade. Morro de saudades, de Rubens até hoje. Morro de saudades.’’
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‘Genoino: lei abriga quem nem levou tapa’, copyright O Estado de S. Paulo, 14/11/04
‘‘É legal e é moral’, defende o ex-deputado e advogado de presos políticos Marcelo Cerqueira, um dos redatores, no governo FHC, da lei que indeniza brasileiros atingidos pela ditadura militar. ‘É legal, mas não é moral’, ataca Elizabeth Vargas, secretária-executiva da Comissão de Mortos e Desaparecidos no governo passado. Cerqueira diz que errada está a indenização dos mortos e desaparecidos, que tem limite.
Genoino contrapõe: ‘Do jeito que está, é ruim para a bandeira da anistia e é ruim para as bandeiras da esquerda’. Cerqueira diz que ‘a lei não tem grande novidade. ‘Ela apenas consolida o que os tribunais consagraram em sucessivas jurisprudências.’ Na época em que o anteprojeto foi redigido, ele tentou criar tetos para as pensões, mas não teve êxito.
O assunto acabou sofrendo muitas interferências, inclusive porque o então ministro da Defesa, Geraldo Quintão, reclamou porque os militares não tinham sido ouvidos sobre o texto que seria aprovado mais adiante. A aprovação final só viria bem mais adiante, perto do fim do governo FHC.
A grande questão que fica sem resposta é: por que a lei estabelece um benefício projetado no futuro para indenizar um prejuízo do passado? Por que não uma indenização única que compensasse os males do passado? ‘Não sei responder a esta pergunta. São valores excessivos? Pode ser. Mas é excessivo torturar e matar.’
Para o advogado Belisário dos Santos Júnior, a conta paga aos vivos deve ter um limite, tanto quanto tem a indenização paga às famílias de mortos e desaparecidos. ‘Se não houver limite, você não sabe onde a conta vai parar’, ironiza. E insiste: ‘A lei foi bem em não fixar um limite temporário, mas foi muito mal em não fixar um limite pecuniário.’ E defende que haja critérios para facilitar o julgamento caso a caso.
O secretário de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, diz que o valor das indenizações pagas a pessoas vivas ‘não poderia jamais ser superior à aprovada para os familiares dos mortos e desaparecidos’. Genoino vai além: lamenta que a lei tenha deixado brechas que serviram para abrigar ‘gente que nem chegou a levar um tapa, que não sofreu um peteleco’.
CRITÉRIO SOCIAL
O advogado Marco Antônio Rodrigues Barbosa acha que algum critério de necessidade social deveria ter sido adotado, para tornar a ação indenizatória da anistia mais justo. Para Nilmário, obrigar o Estado a pagar reparações por danos causados a pessoas perseguidas pela ditadura tem um sentido: ‘Serve para que nunca mais alguém seja torturado ou perseguido em nosso país’.
Ele diz que, quando pedir sua reparação, optará pela parcela única (de até R$ 100 mil) atribuída a quem não tinha carteira assinada quando sofreu perseguição. Genoino diz que pediu para engavetar seu pedido. Seria indenizado em, no máximo, R$ 60 mil. ‘Tem gente mais necessitada do que eu. Não quero ganhar dinheiro, só uma reparação justa’, diz Nilmário. Ele alega que não quer julgar os que reivindicaram valores elevados. ‘Não julgo as pessoas, ainda mais militantes perseguidos por lutar pela democracia. Elas têm direito a reparação e uma Nação com Estado de Direito democrático não pode negá-la.’’