‘Há uma relação subjacente entre a ameaça de morte e a agressão sofrida pelo jornalista Lúcio Flávio Pinto, o assassinato da Irmã Dorothy Stang e dos sindicalistas no oeste do Pará e a crescente pilhagem ambiental naquele Estado, entre os mais ricos de recursos naturais, onde vicejam pelo menos três grandes grandes grupos que disputam entre si o poder regional. De uma forma ou de outra, a atuação impune desses grupos está na origem do espancamento do repórter, do crime contra a religiosa e os sindicalistas e de engenharias econômicas que misturam o desvio de milhões de reais do orçamento público com a voracidade depredatória.
Há, ainda, mais uma dimensão dessa lógica de crimes. Ela diz respeito à sociedade brasileira em geral, mas aos jornalistas, em particular, porque se refere aos meios materiais onde vamos buscar o exercício de nossa profissão. Cada um desses esquemas de poder fundamenta-se no uso de sistemas de comunicação, alguns sob concessão do Estado brasileiro para a sua legitimação política e criação de anteparo contra a eventual utilização da lei para alterar este estado de coisas.
Lúcio e Irmã Dorothy há décadas combatem com palavras e determinação uma lógica que bota no mesmo nível a exploração desenfreada e científica dos recursos naturais, aí incluídos o contrabando de madeiras nobres, a exportação líquida de energia para outros países (sob a forma, por exemplo, do aço produzido com hidroeletricidade subsidiada) e o avanço das commodities agrícolas associadas à violência na ocupação de áreas de floresta, além do desprezo absoluto pela vida de quem se oponha a estas barbaridades.
A imprensa pátria há muito observa tudo com uma omissão criminosa e crescente, que beira a empáfia quando mais um assassinato, como a da Irmã Dorothy, vem à tona e passa a merecer páginas e mais páginas, preciosos minutos e mais minutos de cadeias de rádio e de tevê com capacidade para influenciar os omissos tomadores de decisão política encastelados na Disneilândia brasileira fabricada por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa.
E a empáfia continua em ritmo de motoserra: Irmã Dorothy dedicou seus últimos meses de vida a divulgar um dossiê relatando minuciosamente os crimes cometidos por grileiros, madeireiros e pistoleiros contra agricultores assentados em terras dedicadas à reforma agrária na região de Anapu. O texto diz que, na região, é pública uma lista de 12 sindicalistas, sem terra e religiosos marcados para morrer devido à resistência, mínima que seja, que impõem à ocupação ilegal de terras da União. Três deles já foram assassinados após a morte da religiosa. Os indícios dos mandantes do crime estão no dossiê, que vem sendo distribuído pela Comissão Pastoral da Terra.
Nenhum desses meios de informação cumpre seu papel político de questionador do poder na região norte. Parece que ela foi mesmo apagada do imaginário da imensa maioria da população do sul e do sudeste do Brasil, fenômeno que em boa medida deve ser creditado à falta de cobertura jornalística sistemática da metade setentrional do País pelos maiores conglomerados de comunicação. Nenhum desses grupos, que têm como influir na agenda política de Brasília, mantêm nas capitais amazônicas sucursais com capacidade de pautar suas matrizes e, dessa forma, minimamente questionar os poderes locais.
A morte de Irmã Dorothy e dos sindicalistas deve ser também atribuída à essa espécie de morte jornalística que atribuímos àqueles que dedicam suas vidas aos temas que nos recusamos a ver, porque diz respeito à nossa própria inércia. Exibir essa luta nos meios de informação é uma tarefa que em muito só depende da vontade dos jornalistas e não totalmente dos controladores das mídias. Não mostrá-la resulta na sucessão de mortes encomendadas a que assistimos desde sábado.
É bom lembrar que Lúcio Flávio Pinto também está ameaçado de morte, por Romualdo Maiorana, dono da repetidora da tevê Globo na terra da lei do mais forte em que se transformou o Pará. Não por que vai a campo, como Irmã Dorothy, mas porque a denúncia da depredação no Pará transformou-se no samba de uma nota só que vem tocando no seu Jornal Pessoal há cerca de 15 anos e que, assim, também o coloca na mira de quem detesta liberdade de imprensa.
Tentando proteger Lúcio, muitas entidades vêm indicando seu nome ao GTA ( Grupo de Trabalho Amazônico), uma rede com mais de 400 organizações populares, que vai premiar jornalistas ‘amigos dos povos da floresta’. Esse prêmio pode ajudar a formar um cordão de proteção em torno desse repórter da destruição ambiental no Pará.
Será que os jornalistas, capazes de dar ampla visibilidade ao problema, vão continuar a fingir que não vêem o que pode estar prestes a acontecer?’
Bia Barbosa
‘ANJ se cala sobre agressão de empresário a jornalista no Pará’, copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 16/02/05
‘O jornalista Lúcio Flávio Pinto é reconhecido nacionalmente como um dos profissionais mais especializados em Amazônia no país. Ganhou quatro prêmios Esso e outros internacionais por reportagens acerca do norte do Brasil. Outra bandeira sua é a defesa do jornalismo independente, que ele exercita, desde 1987, via edição do periódico Jornal Pessoal, de sua propriedade. No dia 21 de janeiro, Lúcio Flávio foi brutalmente agredido e ameaçado de morte em Belém pelo empresário Ronaldo Maiorana, diretor corporativo e sócio das Organizações Rômulo Maiorana, empresa proprietária do jornal O Liberal – o maior do Estado do Pará -, de várias emissoras de rádio e também do canal local afiliado da Rede Globo. A agressão teria sido uma reação à matéria ‘O Rei da Quitanda’, publicada no Jornal Pessoal, onde Lúcio Flávio reconstitui a trajetória do fundador do grupo, o empresário e jornalista Rômulo Maiorana, falecido em 1986, e acusa o grupo de impor ‘suas condições leoninas, interesses e caprichos tanto ao seu público quanto aos anunciantes e poderosos de ocasião’.
Enquanto almoçava com colegas no restaurante Restô do Parque, o jornalista foi surpreendido pelo empresário, que estava sentado em uma mesa atrás da ocupada por Flávio. Quando seus seguranças particulares – dois policiais militares – chegaram armados, Maiorana abordou o jornalista com um tapa nas costas. ‘Vais querer apanhar sentado ou em pé?’, perguntou. O empresário deu então uma ‘gravata’ no jornalista, jogou-o no chão quebrando sua cadeira, e ordenou que os PMs continuassem a surrá-lo – assim como os amigos que tentaram defender Lúcio Flávio. A agressão produziu escoriações e edemas nos braços e pernas e hematomas dos socos e pontapés nas costas do jornalista.
O caso reacendeu o debate sobre a liberdade de imprensa no Pará e provocou reações indignadas das entidades defensoras dos direitos humanos na região. Ronaldo Maiorana, além de dono de O Liberal, é conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil-Secção Pará (OAB-PA). Um grupo de advogados da entidade pediu o afastamento do empresário. A Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos divulgou uma nota de repúdio na qual afirma que ‘a certeza dos donos do dinheiro de que seus crimes ficarão impunes conduz a uma escalada cada vez maior de delitos que acabam sendo beneficiados pela morosidade da justiça ou pela flexibilização das penas aplicadas’.
‘Esse é um método usado por pessoas que são contra a divulgação de informações que não lhes agradam, ou que, de alguma forma, contrariam os seus interesses. A agressão é um crime que deve ser objeto de apuração’, declarou na época o presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Maurício Azêdo.
A diretoria do Sindicato dos Jornalistas do Estado do Pará foi mais contundente e afirmou que a violência cometida contra Lúcio Flávio Pinto não é um caso isolado, e sim apenas a ponta mais visível de uma situação de violência que atinge todos os jornalistas profissioanis do Estado. ‘Não é de hoje que os jornalistas vêm sofrendo violências pelos veículos de comunicação paraenses. Diante desta realidade, o cidadão, leitor dos jornais e receptor das notícias veiculadas por emissoras de TV e rádio do Pará, também é vítima de violência. O leitor é vítima porque é lesado no seu direito de ter acesso a uma informação de qualidade, balizada nos princípios éticos que regem a profissão de Jornalista’, diz o texto.
‘Conclamamos a população a juntar-se aos jornalistas em busca de uma verdadeira liberdade de imprensa. Vamos lutar para acabar com a cultura de os donos de veículos de comunicação pensarem e agirem como se pudessem tudo. Inclusive restringir a liberdade de ação sindical, como acontece nas empresas do grupo Diário do Pará e em outras empresas de comunicação’, afirma o documento. Há mais de um ano, notícias referentes ao Sinjor-PA são proibidas de veiculação no grupo RBA e os diretores do Sindicato dos Jornalistas são impedidos de entrar na empresa.
Curiosamente, a Associação Nacionais de Jornais não se pronunciou sobre o fato. Desde 1997, a ANJ mantém o Programa de Defesa da Liberdade de Imprensa, com o objetivo de desenvolver ações para garantir a liberdade de informação e opiniões no Brasil e denunciar qualquer tipo de ameaça ao livre exercício da atividade de jornalismo. Segundo afirmou seu presidente Nelson Sirotsky durante o lançamento da Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa, nesta segunda (14) em São Paulo, o programa é hoje uma referência nacional e internacional, com relatórios anuais que denunciam violações praticadas contra esse princípio, contra seus profissionais e as empresas de comunicação. O código de ética da Associação também determina que os jornais brasileiros devem sustentar a liberdade de expressão, o funcionamento sem restrições da imprensa e o livre exercício da profissão, além de defender os direitos do ser humano, os valores da democracia representativa e a livre iniciativa.
‘Temos sido durante todos esses anos os porta-vozes diante dos resto do mundo de tudo aquilo que diga respeito à liberdade de imprensa no Brasil. A defesa intransigente da liberdade de imprensa é um compromisso histórico e fundamental da Associação Nacional dos Jornais’, declarou Sirotsky. É de se estranhar, portanto, que a ANJ não tenha se pronunciado sobre a agressão a Lúcio Flávio.
Seria uma explicação para tal o fato de o jornal O Liberal, de Ronaldo Maiorana, ser filiado à Associação e também um dos que colaboram financeiramente para o programa da ANJ de Defesa da Liberdade de Imprensa? Se sim, mais um entrave para o bom funcionamento da Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa que acaba de ser inaugurada. * Com informações da Agência de Notícias da UFPA.’
ESTATÍSTICAS MAQUIADAS
‘O fetiche das estatísticas criminais’, copyright O Estado de S. Paulo, 19/02/05
‘Estatísticas oficiais de criminalidade são utilizadas em todos os países para retratar a situação da segurança pública, mas devemos lembrar que devem ser interpretadas com prudência, pois estão sujeitas a uma série de limites de validade e confiabilidade: são antes um retrato do processo social de notificação de crimes do que um retrato fiel do universo dos crimes realmente cometidos num determinado local.
Para que um crime faça parte das estatísticas são necessárias três etapas sucessivas: deve ser detectado, notificado às autoridades policiais e, por último, registrado no boletim de ocorrência (B. O.). Pesquisas de vitimização realizadas no Brasil sugerem que, em média, os organismos policiais conhecem apenas um terço dos crimes ocorridos, porcentual que varia de acordo com o delito. Na média dos 20 países pesquisados pelo Instituto Europeu de Criminologia (Unicri), da UNU, entre 1988 e 1992, levando em conta dez diferentes tipos de crimes, cerca de 51% deles deixaram de ser comunicados à polícia. Assim, o que os governos têm em seus registros policiais é apenas uma estimativa parcial dos crimes ocorridos, estimativa que se sabe de antemão ser subestimada. O fenômeno da subnotificação, ainda que possa variar em grau de país para país, é algo que atinge a todos, assim como os erros de coleta, digitação, processamento e todos os possíveis equívocos que podem ocorrer na transformação do dado em informação.
A produção de estatísticas criminais utilizando como fonte o boletim de ocorrência tem, portanto, limitações amplamente conhecidas. O boletim de ocorrência reflete o momento inicial do caso, no qual o delegado registra o fato fundamentado nas informações de que dispõe a princípio, assim como o médico faz a hipótese diagnóstica no primeiro contato com o paciente. O curso das investigações pode levar à confirmação da hipótese ou à reclassificação do fato criminal na instauração do inquérito, do mesmo modo que exames complementares confirmam ou não a hipótese do médico. Portanto, a informação gerada a partir das ocorrências é apenas uma fotografia de um processo contínuo e longo, especialmente se for considerada também a fase judicial dos fatos criminais.
Reconhecidas as fontes de erro nos dados oficiais de criminalidade, resta a questão do que fazer. A julgar pelo exagero com que os erros são apontados, devemos, então, simplesmente ignorá-los como fonte de informação e planejamento e voltar a basear esse planejamento tão-somente na ‘intuição’ e no ‘faro policial’? A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), como as polícias em todo o mundo, optou por reconhecer a existência desses erros e minimizá-los – por meio de amostragem de boletins para o controle de qualidade, treinamento, manuais de coleta, aperfeiçoamento do sistema, publicação dos dados na Internet, realização de pesquisas de vitimização e diversos outros mecanismos. Os erros de ‘natureza’ do crime contido no B. O. estão hoje em aceitáveis níveis de 5% e vamos melhorá-lo a cada mês.
Em vez de simplesmente descartá-los, porque são passíveis de erro, preferimos encarar os B. Os. como fontes úteis, porque permitem o acompanhamento da tendência geral da criminalidade e, quando produzidos de forma ágil, subsidiam o planejamento operacional das atividades policiais. O pressuposto óbvio é o de que é melhor trabalhar com uma informação parcial do que com informação alguma.
É compreensível que a mídia exija dados que comprovem a crueza da realidade que é mostrada nos meios de comunicação, mas quem trabalha com números precisa ter muita responsabilidade e pouco fascínio. Apenas não se pode exigir das fontes de informação mais do que podem fornecer, nem imaginar ingenuamente que elas retratem a realidade com precisão milimétrica. Ter consciência das limitações dos B. Os. como fonte exclusiva de informações criminais e ir eliminando os erros são as únicas alternativas.
O sistema de informações criminais do Estado de São Paulo é o mais completo, funcional e confiável do País. Foi montado a duras penas, com uma determinação até hoje inimitável. Querer desacreditar esse sistema com base em eventuais erros é prestar serviço às forças obscurantistas – que não acreditam na ciência, no planejamento racional nem mesmo nas estatísticas. É favorecer os que alimentam teorias conspirativas inverossímeis, de que ‘os governantes’ ainda podem manipular os dados a seu favor, como se não existisse uma sociedade civil organizada capaz de revelar estratagemas ingênuos como esconder corpos debaixo do tapete.
Túlio Kahn, doutor em Ciência Política pela USP, coordenador de Análise e Planejamento da SSP-SP, foi diretor do Departamento Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça no governo FHC e coordenador de pesquisa do Ilanud. Publicou mais de 30 estudos e livros sobre o tema segurança, entre eles Nova e Velha Polícia e Cidades Blindadas’
CULTURA NA OMC
‘Ação contra a hegemonia’, copyright Último Segundo (www.ultimosegundo.com.br), 18/02/05
‘Durante 13 dias, fechados num edifício da praça de Fontenoy, sede da Unesco em Paris, representantes de 190 países imbuíram-se de uma missão ambiciosa e complexa: misturar, num mesmo caldeirão, direito internacional, acordos comerciais e rixas históricas para, disso tudo, extrair um documento em defesa da ‘diversidade cultural’.
A reunião, encerrada no sábado 12, mobilizou cerca de 500 delegados e foi rica em troca de farpas e impasses. Sobre as mesas, um documento intitulado Convenção de Proteção da Diversidade de Conteúdos Culturais e Expressão Artística, que será submetido a votação em setembro deste ano, promete alterar a maneira como a cultura é tratada no mundo.
Líderes desse projeto, França e Canadá querem assegurar, no papel, o direito de um governo promover e proteger os seus bens culturais da competição internacional – leia-se da hegemonia americana – e fazer com que a cultura não seja considerada um mercado como outro qualquer. Com o aval da Unesco, um país poderia, por exemplo, criar políticas de suporte público para a produção nacional e taxas sobre filmes estrangeiros sem ser acusado de violar regras comerciais.
Os norte-americanos, porém, defendem que a única maneira de garantir a diversidade cultural é deixar o mercado correr solto. E arriscam dizer que certas medidas não passam de protecionismo maquiado de ‘boa ação’. Louise Oliver, embaixadora dos EUA na Unesco, já declarou publicamente: ‘Não somos a favor de nada que impeça a troca livre e desimpedida entre culturas, já que causa uma redução de escolha’.
Enfileirados diante dessa posição aparecem países como Japão, Austrália, Nova Zelândia e Cingapura. Segundo produto de exportação mais importante para os EUA – só atrás da indústria bélica -, o entretenimento tornou-se um assunto de Estado. Não à toa, depois de 18 anos de boicote à Unesco, o país retornou à entidade assim que teve início a redação dessa convenção, em outubro de 2003.
Na visão de alguns membros, essa presença americana, ao contrário de positiva, vai apenas atrapalhar as negociações. O canadense Garry Neil, diretor-executivo da Rede Internacional para a Diversidade Cultural, presente em 71 países, é um dos que vêem com pessimismo essa suposta vontade de dialogar por parte dos Estados Unidos.
‘O que eles querem é enfraquecer a convenção o máximo que puderem, agindo de modo duro para que o documento não contenha certas coisas e, depois, simplesmente, não assiná-lo’, avalia Neil, que falou com CartaCapital de seu escritório, em Ottawa. ‘Veja o que fizeram com o Protocolo de Kyoto’, compara, referindo-se ao tratado que objetiva controlar a emissão global de gases que comprometem o meio ambiente.
O ativista canadense observa que, apesar do discurso de que serão apenas vigilantes, os americanos têm adotado uma postura obstrucionista, o que o faz duvidar, e muito, da obtenção de um consenso. ‘Eu não tenho esperança de que os americanos assinem e, na verdade, se eles assinarem será um sinal de que não negociamos uma convenção efetiva.’
Neil ressalta que, a partir da globalização, os riscos de que as culturas nacionais evaporem tornaram-se gigantescos. Como antídoto à homogeneidade, acrescenta, só mesmo mudanças nas relações comerciais, já que, atualmente, são comuns os acordos bilaterais que incluem a produção cultural em suas linhas.
Marrocos, Chile, cinco países da América Central, Cingapura e Austrália são alguns dos que têm acordos comerciais com os Estados Unidos que limitam seus poderes de ação na área cultural. O acordo agrícola com o Chile, por exemplo, prevê que nenhuma nova medida de proteção à cultura seja criada. ‘O Chile não pode mais regular produtos ou serviços que o país produz ou distribui. Eles abriram mão de todo o futuro de sua cultura com o acordo.’
Uma das principais peças desse xadrez jogado na Unesco diz respeito, justamente, ao poder que terá a convenção e de que modo ela irá se relacionar com outros instrumentos internacionais. Seu mais polêmico artigo, o de número 19, tem uma versão que causa calafrios nos EUA: ‘Esta Convenção não afetará direitos e obrigações de nenhum Estado Membro (…), exceto quando o exercício desses direitos e obrigações causar sérios prejuízos ou constituir ameaça à diversidade de expressões culturais’.
Leonardo Brant, diretor do Instituto Diversidade Cultural (IDC) do Brasil – integrante da rede capitaneada por Neil -, observa que reside nesse ponto o grande nó da discussão. ‘A erosão do texto da convenção é feita sob a lógica de que ele não deve representar um tratado comercial’, afirma.
Brant observa que, para os países que apóiam os Estados Unidos, interessa que a convenção seja, simplesmente, uma ferramenta política, uma referência conceitual. ‘Eles insistem que a convenção deve estar subordinada aos acordos já existentes, sem abrir exceção para bens e serviços culturais.’
Nas pontas opostas desse cabo-de-guerra estão as palavras ‘proteção’ e ‘promoção’. A primeira é defendida pelo time dos franceses e canadenses; a segunda, pelos americanos. Na última versão do texto, o verbo proteger aparece entre parênteses, ou seja, não é difícil que desapareça na próxima rodada de conversas, agendada para 21 de maio.
Na opinião de Didier Lebret, vice-diretor para o Audiovisual do Ministério das Relações Exteriores da França e um dos representantes do país na discussão, sem a palavra ‘proteção’ o documento perde sua razão de ser. ‘Não precisamos de mais uma declaração de intenções, mas de um documento forte que possa ajudar os países a ter suas políticas culturais’, observa.
O diplomata tenta esclarecer que a proteção apregoada pela convenção não tem nada a ver com mero protecionismo comercial. ‘Muitos países estão confundindo as coisas. A proteção é um elemento fundamental da convenção. A cultura faz parte da herança que os países deixam para a humanidade, por isso tem de ser protegida, seja com medidas comerciais, seja preservando um edifício histórico. Uma política deve ser medida pelos resultados e não pelo tipo de medidas que adota.’
Lebret recorda que os Estados Unidos aceitariam tais medidas caso elas se restringissem à cultura que não é de massa. ‘Mas de que adianta proteger apenas museus, dança ou a cultura no sentido da educação?’, questiona. ‘Eles argumentam que entretenimento é indústria. Sim, mas é cultura também. A grande dificuldade da convenção é lidar com as indústrias culturais.’
Nesse ponto, entra também o que, num texto de Alan Riding, no The New York Times, foi chamado de ‘posição ambígua’ do Brasil. O País tem, de um lado, tradições populares a ser protegidas e, de outro, uma máquina audiovisual que gira em ritmo industrial. Leonardo Brant ressalta, inclusive, que a própria hegemonia cultural acontece aqui em duas frentes.
‘Temos uma hegemonia interna, exercida pela Globo, que, além de não permitir a concorrência, também forja a nossa identidade. É natural que isso influencie a nossa posição internacionalmente’, expõe. ‘No fim, ou vamos com a Globo ou vamos com a Fox e com a Warner.’
Em situação similar ao Brasil está o México, que tem a poderosa Televisa. Tanto a empresa mexicana quanto a Globo não só exportam suas ficções como recheiam suas grades com filmes americanos. A novela A Escrava Isaura, vendida para mais de 80 países, ou o programa mexicano Chaves e Chapolin, que também correu o mundo, estão na origem desse meio-fio em que tentam se equilibrar os dois países. ‘Outra ambigüidade do Brasil é que o ministro Gil defende com veemência a diversidade cultural e o Itamaraty, que é a voz oficial na Unesco, adota um discurso mais economicista’, completa Brant.
Márcio Meira, secretário de Articulação Institucional do Ministério da Cultura (MinC), nega o desencontro entre os dois órgãos do governo e diz que essa avaliação não passa de mal-entendido. De acordo com ele, os comentários brasileiros à convenção foram feitos em conjunto pelo MinC e pelo Itamaraty e a posição do País não tem nada de ambígua: ‘O Brasil apóia integralmente o documento da Unesco. Queremos que seja uma convenção que facilite a afirmação da cultura dos países pobres’.
A seguir, porém, Meira pondera: ‘Mas também não adianta ser rígida demais e, no fim, não existir na prática. Também não podemos perder de vista que o Brasil, ao mesmo tempo em que tem 200 línguas indígenas a ser protegidas, tem tecnologia de ponta e novelas que são exportadas. Temos, ao mesmo tempo, o que têm os países africanos e o que tem o Primeiro Mundo’.
O embaixador Edgar Telles Ribeiro, chefe do Departamento Cultural do Itamaraty, que esteve nessas duas semanas em Paris participando da redação do documento, também responde à definição de ‘ambíguo’ que passou a andar atrelada ao Brasil. ‘Não é ambigüidade. Mas achamos que é possível acomodar todas as posições’, desvia.
Telles Ribeiro observa que não se pode abrir exceções brutais e ir no sentido contrário de uma série de compromissos que também foram assumidos pelo Brasil no âmbito da OMC. ‘Estamos procurando, na cultura, uma espécie de Terceira Via. Mas, de qualquer modo, o que está acontecendo na Unesco é um grande ato de reflexão, como jamais houve na história’, aposta. ‘Mesmo que o assunto fique na OMC, todas as discussões, daqui para a frente, estarão imbuídas dessa experiência. Não haverá mais possibilidade de tratar a cultura de maneira só mercenária, como se tratam sapatos e automóveis.’
O debate travado hoje na Unesco remonta ao início dos anos 90, quando o conceito de ‘exceção cultural’ veio à tona – encampado por França e Canadá. Ao que tudo indica, é um tema que entrou na agenda para não mais sair. Por trás da importância das manifestações culturais de cada país está, no fundo, uma feroz batalha econômica, que se dá, essencialmente, no mercado audiovisual.
Na apresentação do texto sobre diversidade cultural, a Unesco destaca, por exemplo, que 88 dos 190 países membros jamais tiveram uma produção cinematográfica própria. E reside na França a única indústria cinematográfica próspera da Europa. Lá, Hollywood abocanha 65% da bilheteria. Nos demais países, a média é de 90%.
‘Vamos começar a ter pendências no campo cultural’, aponta Meira, do MinC. De fato, vários países que tentaram criar regras para proteger os cinemas nacionais da avalanche hollywoodiana enfrentaram embates judiciais, como o México e a Coréia. E ninguém garante que o Brasil, caso o projeto da Ancinav não tivesse esmorecido, teria se livrado de ações por parte das majors. ‘Existe uma fragilidade jurídico-institucional que dificulta a autonomia da nossa identidade. Esta convenção, no mínimo, servirá como parâmetro ético e moral para os debates na OMC e nos tribunais’, conclui Meira.
Debret, do Ministério das Relações Exteriores da França, também está certo de que, mesmo que não se alcance o consenso, a convenção sairá e servirá de margem de manobra com os países pobres. ‘Os países poderão ser mais ambiciosos em suas políticas. Eles terão mais amparo contra a pressão dos Estados Unidos’, aposta o diplomata francês. Na teoria, parece funcionar. Na prática, ainda é cedo para dizer.
O QUE ESTÁ EM JOGO
BASE
Liderados por França e Canadá, países da União Européia, da América Latina e da África do Sul tentam estabelecer, na Unesco, uma base jurídica internacional que permita aos Estados determinar suas políticas culturais em defesa dos conteúdos nacionais sem entrar em choque com as regras estabelecidas pela Organização Mundial do Comércio (OMC).
TÍTULO
Provisoriamente chamado de Convenção de Proteção da Diversidade de Conteúdos Culturais e Expressão Artística, esse documento começou a ser escrito em outubro de 2003 e será submetido à votação dos 190 países membros da Unesco em setembro deste ano.
DÚVIDA
Como a convenção da Unesco se articulará com os instrumentos internacionais já existentes ainda é um mistério. Para os Estados Unidos, é inadmissível que o documento afete acordos comerciais de bens e serviços já existentes. O país refuta, por exemplo, a presença da palavra ‘proteção’ no documento.
BRASIL
Visto, na Unesco, como um ator importante nessa discussão, o Brasil alinhou-se à França e ao Canadá, mas tem feito ponderações a respeito de eventuais barreiras comerciais. A diplomacia brasileira pontua, em todas as reuniões, que se há uma cultura indígena a ser protegida, há também novelas a ser exportadas.’