Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carta Capital

‘O episódio da ‘confissão’ que não houve na revista Época, e a reação do resto da mídia, com raras exceções,é mais um emblema da hipocrisiae do cinismo dos donosdo poder e dos seus sabujos

O burburinho que antecipou a publicação da entrevista de Valdemar Costa Neto à revista Época levou o presidente Lula a atrasar por algumas horas o pronunciamento que fez à Nação na sexta-feira 12. Segundo vários comentaristas supostamente bem informados, Lula queria ler a entrevista antes de fazer seu discurso. O interesse do presidente foi atiçado pela principal chamada colocada abaixo do título A Confissão: ‘Lula sabia do acordo de R$ 10 milhões com o PL’.

A ‘denúncia’ não apenas atrasou o discurso presidencial, como teve ampla e imediata repercussão em toda a mídia – desde sites na internet até o Jornal Nacional, passando pelos principais jornais do País no dia seguinte -, além de impacto sobre o chamado mercado, com reflexos no dólar e na Bolsa de Valores.

Na edição de CartaCapital que circulou um dia depois de Época, a revista desmontou a suposta ‘confissão’. Em 30 de outubro de 2002, CartaCapital havia noticiado que quatro meses antes, em junho de 2002, Lula e José Alencar estiveram presentes em uma reunião na qual PT e PL selaram um acordo eleitoral com vistas à eleição presidencial. Um acordo político e financeiro no valor de R$ 10 milhões. Um acordo, então, dentro da legalidade, relatado em detalhes na reportagem assinada por Bob Fernandes.

Um detalhe pitoresco: dias antes da entrevista de Costa Neto à Época, a assessora de imprensa do PL esteve na Editora Confiança, que publica CartaCapital, para adquirir dois exemplares da edição 213, que noticiou o acordo entre os dois partidos em outubro de 2002.

A ‘confissão’ publicada em Época seria motivo de pilhéria não fosse o impacto que causou. Uma denúncia que não é denúncia foi capaz de afetar o horário do discurso do presidente do País, mexer com os humores do mercado financeiro e ser notícia em todos os meios de comunicação – com especial ênfase nos veículos das Organizações Globo, de alto a baixo, que valorizaram a ‘denúncia’ da revista da casa.

É estranho, para não dizer suspeito, o comportamento da mídia depois de CartaCapital ter tornado público o episódio. Pouca gente o considerou e a maioria fingiu que não leu. Registre-se, de cara, uma exceção, o site Blue Bus, noticiário on-line sobre mídia e publicidade, que notou: ‘Fraude na revista Época, quem enganou quem? Das duas uma, ou o deputado enganou a revista ou a revista enganou os leitores’.

Veículos especializados em mídia, como o site Comunique-se, ou jornalistas que acompanham o assunto diariamente em órgãos não especializados, como Nelson de Sá, dono de uma coluna chamada Toda Mídia, na Folha de S.Paulo, simplesmente ignoraram o caso. Ou seja, fingiram considerar que era um tema sem importância, diante de notícias como ‘Rádio Record anuncia novos nomes na cobertura esportiva’ (Comunique-se) ou com o fato de o programa Pânico na TV ter colocado um ator chamado ‘Lula’ no alto de uma plataforma e feito piada sobre o risco de ele ‘cair’ (Folha).

A notícia também passou por entre as pernas dos editores do Estadão, mas não de seu editorialista. Num texto intitulado ‘Ruim com ele, pior sem ele’, publicado no alto da página 3, na edição de sábado 13, depois de mais uma vez destilar preconceitos contra o ex-metalúrgico que virou presidente, o editorial lembra que a ‘denúncia’ da revista Época havia sido noticiada anteriormente por Bob Fernandes, em 2002. E só. Haverá algum veto ao nome desta publicação nas páginas do Estadão? Ou ao diretor de Redação desta revista, que trabalhou por quase quatro anos na empresa, sempre com empenho e lealdade, tendo fundado e dirigido a edição de esportes do Estadão e o Jornal da Tarde? Cartas para a redação. Aliás, se viu ilegalidade no acordo noticiado por CartaCapital, por que o Estadão não publicou nada a respeito?

A revista Imprensa, que cada vez faz menos jus ao nome, tratou o tema com desdém em seu portal na internet: ‘CartaCapital se queixa da concorrente por não receber os créditos das informações as quais a Época vendeu como exclusivas’.

Um boletim informativo sobre a imprensa, Jornalistas & Cia, publicou uma entrevista com o autor da reportagem de Época, explorando ‘os bastidores da capa que elevou a temperatura da crise’. No texto diz-se que a publicação ‘foi seguida de um protesto da CartaCapital sobre ter publicado notícia semelhante em outubro de 2002, o que anularia a exclusividade de Época’. Texto mal escrito e ingênuo. Só podemos imaginar que Eduardo Ribeiro, jornalista sério, diretor da publicação, não participou da sua edição.

Jornais, emissoras de tevê e rádio que repercutiram a entrevista de Época não corrigiram a informação depois que se demonstrou publicamente que ‘a confissão’ era notícia velha, destinada, como parece, a ‘aumentar a temperatura da crise’. Apenas reafirmam uma tradição de soberba em relação aos próprios erros e de cumplicidade e corporativismo, exacerbada nestes dias em que o governo Lula é alvo de denúncias graves.

A desculpa da revista Época, além de pífia, beira o cinismo. ‘A passagem na qual o presidente do PL narra a reunião que teve com o presidente e o vice-presidente da República, então candidatos, e dirigentes do PT é apenas um dos elementos da entrevista – e não seu principal foco. Tanto que a repercussão desta matéria deu-se em função da declaração de que Lula sabia do acordo envolvendo dinheiro’, disse Aluizio Falcão Filho, diretor de Redação. Como assim? Desde que a edição 213 de CartaCapital circulou, era do conhecimento público que Lula sabia do acordo. Presenciou o acordo. Instruiu José Alencar sobre como se portar em relação ao acordo. Será que Falcão não leu a reportagem de CartaCapital? Será, como sugere Blue Bus, que Costa Neto enganou o diretor de Redação de Época?

O comportamento da revista das Organizações Globo também foi tema de dois textos do Observatório de Imprensa, um veículo especializado em media criticism, na internet. Um deles, intitulado ‘Receita de uma notícia requentada’, descreve o engodo e relembra que não é a primeira vez – muito pelo contrário – que uma notícia antecipada por CartaCapital é ignorada por seus concorrentes.

Em outro texto, ‘Da arte de comer mosca e imaginar-se pitbull’, o editor do site, Alberto Dines, culpa ‘o corporativismo e a indolência’ da imprensa pelo fato de uma série de notícias que ligam veículos de comunicação ao escândalo do Mensalão não ter prosperado. Depois diz que, ‘quando a CartaCapital, em 30 de outubro de 2002, contou parte da história sobre o acordo entre o PL e o PT, ninguém foi atrás. Nem a própria revista’.

As duas acusações não fazem justiça a CartaCapital. Esta revista noticiou, com chamada de capa, o jogo de chantagem entre as editoras Abril e Três a respeito da publicação de informações sobre a entrevista da secretária Fernanda Karina à revista IstoÉ Dinheiro (edição 348, 29 de junho de 2005). Noticiou que o jornalista Gilberto Mansur intermediou um encontro entre Domingo Alzugaray e Marcos Valério. Noticiou as diversas suspeitas que envolvem o jornalista Leonardo Attuch, autor da entrevista, no episódio… Também não é correto afirmar que ‘nem a própria revista’ foi atrás da história do acordo PT-PL na ocasião. Como já foi dito, em outubro de 2002, não havia indícios de ilegalidade no acordo.

Sem perder de vista em momento algum que todos os envolvidos em corrupção, arrecadação ilegal de recursos, tráfico de influência e quantos outros crimes forem descobertos devem ser punidos, CartaCapital não compartilha do sentimento, visível em quase toda a mídia, de que esta crise é uma oportunidade sem-par para destruir o PT, sangrar Lula e enterrar para sempre o sonho de um governo de esquerda no Brasil.’



Folha de S. Paulo

‘Ciclo expõe mal-estar e silêncio da academia’, copyright Folha de S. Paulo, 21/08/05

‘Antes de entrar, na noite de sexta-feira, na reunião de intelectuais convocada pelo PT, a filósofa e professora titular da USP Marilena Chaui disse mais uma vez à imprensa: ‘Não falo’.

O silêncio de Chaui sobre a crise política pode acabar -ou não- amanhã, quando a filósofa faz a palestra ‘Intelectual engajado, figura em extinção?’, que abre o ciclo de debates chamado, a esta altura ironicamente, de ‘O Silêncio dos Intelectuais’, projeto do Ministério da Cultura organizado por Adauto Novaes e patrocinado pela Petrobras.

São eles próprios, mesmo os historicamente ligados ao PT, que, sem chegar a ocupar os espaços públicos com tentativas de compreensão de maior fôlego da crise, reconhecem haver não só desconforto, mas, de fato, silêncio: ‘Há muito aborrecimento entre os intelectuais. Há realmente um silêncio’, diz o geógrafo Aziz Ab’Saber, que durante a campanha de 2002 fazia parte do grupo de acadêmicos que se reunia regularmente com o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva.

Ab’Saber afirma que a ausência de manifestações incomoda não só pela falta de reflexão, mas, mais simplesmente, pela falta de crítica e cobrança daqueles que se mantiveram próximos ao presidente.

‘O que me causa surpresa é que os professores universitários, os intelectuais mais conhecidos na comunidade, estão silentes. Não cobram aquilo que lhes foi prometido em muitas ocasiões. Esse silêncio é uma demonstração de muita educação com respeito a Lula mas, ao mesmo tempo, de muita indignação’, diz. ‘Os que permanecem fiéis ao governo são muito poucos. E outros, que querem pensar em alternativas, nunca serão ouvidos.’

Para o professor de filosofia da USP Renato Janine Ribeiro, mais que silenciosos, os intelectuais de esquerda estão ‘constrangidos’. ‘Eles sentem que têm de rever uma série de conceitos, vão ver que toda uma série de valores que defenderam está em crise, que o partido ao qual muitos se vincularam -alguns se filiando, como a Marilena, mas eu não posso falar por ela, e outros que nunca foram filiados, como eu- está em crise. Esses intelectuais têm, de alguma forma, de dizer o que causou os problemas. Não sei se eles têm, necessariamente, de dizer algo… De qualquer forma, há problemas’, diz. ‘Até ter uma apuração cabal de tudo, é muito difícil dizer o que causou a crise.’

Ab’Saber não participa do ciclo de debates, mas Janine, como Chaui, sim. ‘O Intelectual e o Cientista’ será o tema do professor de filosofia da USP.

Já o diplomata e cientista político Sérgio Paulo Rouanet falará sobre o tema ‘A Crise dos Universais’, enquanto o sociólogo Francisco de Oliveira, fundador do PT, rompido com o partido desde 2003, falará sobre intelectuais, marxismo e política. O jornalista e colunista da Folha Marcelo Coelho fará a conferência ‘Contra as Paixões Políticas’.

Diagnóstico

Na noite de sexta, o presidente do PT, Tarso Genro, se encontrou com um grupo de intelectuais na Fundação Perseu Abramo, em São Paulo, convocados por ele para discutir a crise e o futuro do PT.

Significativamente, a manifestação pública de Tarso, em que se fez porta-voz dos intelectuais, foi a mais severa com o próprio partido. O presidente do PT afirmou que o diagnóstico coletivo era de que ‘o partido, principalmente depois da chegada de Lula ao governo, interditou o debate’.

Em sintonia com Tarso, Ab’Saber disse à Folha que ‘os intelectuais foram marginalizados desde o início’ do governo. O crítico literário Alfredo Bosi, um dos cerca de 30 intelectuais que atenderam ao chamado do partido na sexta, disse, no entanto, que ainda há ‘um fio de esperança’.

‘Foi uma reunião sem violência, mas com extrema severidade em relação ao partido, ao governo. Se houve uma conclusão -e me parece ser a posição do presidente [Tarso Genro]-, é de aprofundar essas discussões, essas reuniões, sempre na esperança de refundar o partido’, disse.

Depois do encontro -do qual participaram também, entre outros, a crítica literária Walnice Nogueira Galvão, o economista Paul Singer e os sociólogos Lúcio Kowarik, Amélia Cohn e Gabriel Cohn- Tarso fez uma promessa pública ao grupo: ‘Vamos reincorporar a intelectualidade brasileira na reelaboração do nosso projeto estratégico’.

Apesar de ‘silêncio dos intelectuais’ ecoar imediatamente a atual crise do governo Lula, Adauto Novaes diz que os debates começaram a ser pensados há pelo menos um ano.

O tema, afirma, vai além das vicissitudes do Brasil e da política brasileira. Relaciona-se com uma crise do pensamento e da identidade do intelectual como protagonista do debate público: ‘A questão é superior e anterior à crise. É um fenômeno brasileiro e mundial. Queremos perguntar por que os intelectuais saíram de cena’, afirma.

Os motivos do recolhimento também serão abordados nos debates. A omissão ou a conivência da intelectualidade de esquerda diante de atrocidades e genocídios cometidos em nome do comunismo e de utopias coletivistas ao longo do século 20 é certamente um dos temas centrais do debate. Novaes ainda enumera outros: ‘A crise dos valores universais, o relativismo dominando o cenário social, cultural e político, onde tudo se equivale’.

No caso atual, no entanto, é do PT que se trata. E, apesar de a intelectualidade ter sido uma das vertentes que constituíram o partido, a intelligentsia sempre teve uma face pública preponderante no partido: a de Marilena Chaui. Quando se fala em ausência de discussão hoje é em grande medida do silêncio de Chaui que se trata. Pode acabar amanhã.’



Época

‘Esperança e medo’, copyright Época, 23/08/05

‘No dia 27 de outubro de 2002, segundo turno da eleição presidencial, o cineasta Marcos Guttmann reuniu sua equipe e foi para as ruas do Rio de Janeiro. Confiou nos prognósticos de pesquisas eleitorais que davam como certa a vitória de Lula e entrevistou 60 pessoas na boca-de-urna. ‘Estávamos vivendo um momento único e precisávamos registrá-lo’, diz Guttmann.

O cineasta documentou a percepção desses brasileiros sobre a própria história, o futuro presidente e o Brasil. Eles estavam embalados pela esperança que sacudia o país. De lá para cá, a equipe de Guttmann vem acompanhando a vida de quatro desses eleitores. Já fez entrevistas com cada um, flagrando a mudança de suas opiniões ao longo do governo. Durante a próxima campanha presidencial, a equipe pretende voltar a entrevistar os 60 eleitores. O filme deverá estar nas telas em outubro de 2006, às vésperas do pleito.

O documentário, batizado de Urna de Esperanças, é inspirado na obra russa Anna dos 6 aos 18, de Nikita Mikhalkov, e pretende mostrar as coincidências e as contradições nos depoimentos dos personagens ao longo de quatro anos, período do mandato presidencial. O motorista Fernando Pereira, por exemplo, que chegou a chamar Lula de ‘salvador da pátria’, agora se mostra decepcionado. A vida dele não mudou nada. Fernando continua vivendo em Cidade de Deus, na zona oeste carioca, e trabalhando duro. Já a médica Cristiane Rosa trocou de emprego e de apartamento. Mas não mudou de opinião. ‘Para lidar tanto com o sucesso quanto com a crise, é necessário ter experiência. E o PT não tem.’

Fernando Pereira, motorista, votou em Lula

1° de janeiro de 2003

‘Espero uma mudança boa, a começar pelo nosso presidente. O povo tem aquela fé. Mas só o amanhã vai dizer. A vontade é boa, mas dizem que, depois que sobem aquela rampa, mudam, né? O problema são os bastidores, onde a gente não tem acesso’

Agosto de 2005

‘Só confio na força dos meus braços e do meu trabalho. Não acredito no time que está governando o país. Nunca esperei nada deles. Mesmo assim, votei no Lula porque não concordo com voto em branco e nulo. Mas agora estou decepcionado’

Cristiane Rosa, médica, votou em Serra

1° de janeiro de 2003

‘Acho que daqui a quatro anos o Brasil estará melhor porque entramos num processo de crescimento e melhora que não tem volta. E Lula parece confiável. Não posso dizer que sua eleição me trouxe esperança. Mas reconheço que trouxe para outras pessoas’

Agosto de 2005

‘Não sou ingênua a ponto de achar que caixa dois e dinheiro na cueca são novidade. A diferença é que isso apareceu agora. A inexperiência colocou o PT numa situação delicada. O partido caiu na vida e viu que ser governo é diferente de ser oposição’’